CAMINHO PRESIDENCIAL
Se nas presidenciais tivermos, como caminham as coisas, Cavaco e, talvez, Alegre, o confronto pode ser politicamente interessante e as eleições "pregnantes", como se diz de algumas ideias. Sendo Portugal o que é, a probabilidade de ser interessante é sempre mais pequena do que o seu contrário, mas mesmo assim existe. Aqui interesse significa não só vitalidade política, capacidade de falar sobre os nossos problemas por cima do discurso institucional, mobilizar mais a inteligência da política e dar utilidade à candidatura e à campanha para resolver os problemas nacionais.
Cavaco parece como um candidato certo e Alegre como provável, mas não menosprezo Alegre, como fazem muitos dos seus companheiros do PS. Alegre é um homem feito pela vida, bom tribuno, exagerado e retórico, mas com capacidade de mobilizar determinados sectores, embora com o preço de afastar outros, com a mesma intensidade. Claro que há sempre a interpretação malévola de que Sócrates quer que Cavaco ganhe e entrega-lhe de bandeja o candidato que melhor garante essa vitória.
Mas onde os cínicos vêem uma intenção perversa, eu vejo uma dificuldade política genuína do PS: sem Guterres não tem candidato que compita com Cavaco a partir do mesmo "lugar" político. Daqui decorre uma disfunção que o PS tem que gerir e que é a da não correspondência do "lugar" em que quer ter o Governo e o "lugar" onde tem que travar o combate presidencial. Um problema semelhante pode surgir em Lisboa.
Como é que o confronto pode vir a perder interesse, é fácil de perceber. É torná-lo mais um remake serôdio do confronto esquerda-direita, um teatro que não tem os personagens certos, nem o palco certo. Alegre vai fazer o esforço para arrastar a campanha para aí, sua força e fragilidade, mas nem Cavaco é um homem de direita, nem Alegre pode esquecer que é o candidato de Sócrates, um homem à direita no PS, como não se cansou o próprio Alegre de dizer no passado. Acresce que, fora do par do antigo PP com o BE, que usam a dicotomia esquerda-direita tomando-a a sério, como factor de identidade, o modo como se move a opinião e a vontade política em Portugal está longe de se reduzir a esses termos. O dilema liberalismo-estatismo é francamente mais promissor, até porque baralha os protagonistas de forma mais complexa e criativa.
Do lado de Cavaco também há ambiguidades, que ganham em ser discutidas para não se acumularem na campanha, ainda por cima favorecidas pela impressão de uma vitória inevitável, o que está longe de acontecer. Que Cavaco não se deixará enlear no canto de sereia esquerda-direita, isso parece-me quase certo. Cavaco não é o candidato da revanche dos derrotados de 20 de Fevereiro, e, se o fosse, perdia a eleição. Felizmente para todos, os verdadeiros derrotados de 20 de Fevereiro não se revêem em Cavaco e vão criar todas as dificuldades à sua candidatura, por isso nem sequer a colagem de oportunidade será muito de recear.
Cavaco colherá junto da opinião pública e do eleitorado os méritos da sua demarcação em relação ao Governo Lopes-Portas e pode falar por cima das tentações de usar as presidenciais para corrigir as legislativas. As legislativas e a crise que trouxeram ao PSD e ao PP só terão correcção por dentro dos respectivos partidos, o que Marques Mendes e Ribeiro e Castro sabem. Maus resultados eleitorais de uma natureza só se superam face a bons resultados eleitorais da mesma natureza. No entanto, ambos os partidos podem beneficiar da temática da candidatura de Cavaco, como aliás sectores do PS também o podem fazer e este efeito é inelutável e não diminui, só amplia, o significado da sua candidatura.
Cavaco falará por cima e ao lado desse dilema reducionista esquerda-direita, mas pode cair na tentação de exagerar o carácter institucional da sua candidatura, desvalorizando o seu significado político. Ora só uma coisa pode dar substância à candidatura de Cavaco e essa coisa é construir a sua candidatura a partir de uma meditação sobre as ingovernabilidades do sistema político e do papel presidencial na sua superação, mais do que numa noção abstracta dos poderes presidenciais de per si.
O conteúdo reformista da sua candidatura só pode ser este - Cavaco Silva trabalhará usando a sua "magistratura de influência" e os seus poderes para aperfeiçoar e ajudar a superar os bloqueios institucionais e políticos que impedem o "bom governo". É, aliás, este o seu magistério político dos últimos anos, desde que deixou de ser primeiro-ministro, presente nas críticas ao "monstro" do défice, à "má moeda" que expulsa a "boa", e às suas intervenções de "economia política" como o artigo do PÚBLICO de ontem. Colocando-se numa plataforma que acentue estes temas, beneficiando de ser o primeiro candidato presidencial que alia a formação económica à experiência de governante, Cavaco pode e deve trabalhar neste sentido com o Governo socialista e com a oposição, tendo tantas mais possibilidades de sucesso quanto for reforçada a clareza da sua plataforma eleitoral e legitimada e pelo voto dos portugueses.
A tentação do vazio é o pior adversário de Cavaco, essa forma peculiar de vazio que gera a nossa obsessão com o "consenso" e a nossa aversão ao confronto político. Se as coisas correrem muito mal, alguém acabará por encher esse vazio; se, mesmo assim, correrem bem, o novo Presidente fica condenado ao dilema clássico entre o Mário Soares do primeiro mandato "influente" e o Mário Soares do segundo mandato "interveniente". Este tipo de esquizofrenia política não beneficia ninguém, nem a Cavaco, nem ao país.
José Pacheco Pereira
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