segunda-feira, 16 de maio de 2005

CAVACO EM BELÉM?


Os anos de 80 reatribuíram ao nosso viver a atmosfera densa e opaca que fora uma das características do Portugal de antes de Abril. Sou avesso às grandes classificações ...
Sou avesso às grandes classificações; mas a ascensão de Cavaco Silva ao poder serviu de sincronia para definir um sistema e as estruturas de um pensamento sufocante, com infelizes tradições na nossa história.

Assistiu-se à repetição das misérias morais. Numerosos foram os que, procedentes da Esquerda, «aderiram» à nova ordem, beneficiando de empregos, sinecuras, favores e atenções do Governo. Afinando pelo credo recente, registaram-se sórdidos casos de «adaptação», por alguns daqueles que, com a queda de Cavaco, mudaram, outra vez, de carril.

Está por fazer o rigoroso estudo da década de Cavaco, e das sequelas que essa limitada visão do mundo provocou. É um combinatório complexo, no qual a relação com a realidade obedece a uma lógica que fabrica os seus próprios conceitos. Os panegiristas dessa época, e os próprios textos do antigo primeiro-ministro são frustres no esclarecimento «ideológico» das políticas aplicadas, e, amiúde, abaixo do medíocre quando pretendem estabelecer analogias com o objecto (e os objectivos) que simbolizam.

Um facto é certo: os anos «cavaquistas» foram deprimentes, e estimularam a promoção de uma burguesia ignara, primária, incapaz de mostrar as razões funcionais da sociedade que desejava construir. A medonha imagem de Cavaco Silva a comer um pedaço de bolo traduz a dimensão daquilo que constituía (e constitui) a sua representatividade. Estaremos condenados a aceitar a repetição da dose - e, desta feita, com o senhor implantado em Belém, por catatonismo de uma Esquerda cuja desordem começa a deixar de ser, apenas, parcial?

A verdade é que as desavenças em Lisboa são de molde a prever o pior. E a corrida de Manuel Maria Carrilho à Câmara não satisfaz vastos sectores do PS, nos quais se inclui o próprio Sócrates. Este detesta o antigo ministro da Cultura de Guterres, e o seu estilo beligerante: megalómano, egotista, autoritário. O PCP apresenta o seu candidato: Ruben de Carvalho. Grande jornalista, grande estudioso, primoroso no debate político, Ruben encarna uma certa consciência do comunismo que se não reduz aos guetos dos especialistas. Porém, não é um vencedor. Sá Fernandes, apoiado pelo Bloco, vai, também, ajudar a desfalcar os votos da Esquerda.

O panorama é desolador. Acentuam-se as discórdias, em nome de um absurdo e abstruso hegemonismo. Os sistemas dos três partidos de Esquerda possuem razões internas que pouco têm a ver com a «ideologia», mas sim com as particulares «esferas de influência» de cada um deles. O drama habita nessa pluralidade de conceitos, de qualquer forma intermediária entre a lógica e a experiência. O conceito prolonga-se, continua-se, mas a experiência divide-o permanentemente.

O reflexo dessa situação está na enraizada perspectiva da Direita em sustentar a inevitabilidade da candidatura de Cavaco Silva às presidenciais. E a Esquerda dá uma preciosa ajuda. Passo a passo, Cavaco vai abonando sinais de si. Pontualmente, através da Imprensa escrita, expõe as suas opiniões sobre o estado do País. Nunca acrescenta coisa alguma àquilo que já sabemos. Com inquietante regularidade repete o que anteriormente disse. Mas assinala presença. O que ele deseja é comparecer.

Anteontem, o «Público» inseriu nas suas páginas, com chamada na primeira, um outro, e sempre o mesmo, texto do antigo primeiro-ministro. Os temas são cansativos, por banais de conteúdo e deploráveis no estilo. Na mesma edição, o matutino incluiu (sem chamada na primeira página!) um notabilíssimo artigo da excelente historiadora Maria de Fátima Bonifácio.

Enquanto Cavaco Silva nos trata como beócios, Fátima Bonifácio respeita-nos como adultos. O primeiro insiste na competitividade como irrevogável norma, e permite-se aconselhar os «políticos» a fazer aquilo que ele realmente ignorou, quando chefe do Governo. A segunda critica e argumenta sobre as próprias críticas, analisando o comportamento do Executivo Sócrates. Relaciona, endossa, chama a nossa atenção, exige a nossa curiosidade activa.

Cavaco é igual ao que sempre foi: arrumadinho, esquemático, nada criativo. Em Belém, este homem?

Baptista-Bastos