UM CASO, UMA AMEAÇA E UM "AYATOLLAH"
1. O caso: obviamente o da investigação desencadeada ao negócio da Portucale em Benavente. Qualquer juízo, neste momento, além de extemporâneo, equivaleria a precipitar-se em especulações envolvendo o nome de pessoas, de instituições e matéria que é puro dinamite na credibilidade do funcionamento do sistema democrático. Pode-se apenas desejar veementemente que não estejamos perante mais um caso de foguetório vão, em que ao grande estardalhaço inicial das investigações se segue o embaraço da incapacidade de provar e dar seguimento ao que se anunciou. Deixemos então que a justiça siga. Mas, desde já, é possível extrair algumas conclusões políticas, sem as quais não haveria caso algum:
- a insustentável demora que em Portugal se verifica entre a convocação de eleições e a entrada em funções de um novo governo delas saído. Esses três a quatro meses que sempre se perdem com a maior das naturalidades são um imenso no man"s land propício a que os governos de gestão, mesmo de boa-fé, tenham de decidir entre paralisar o Estado, o país e a actividade económica ou extravasarem os seus poderes de mera gestão corrente;
- a tentação que sempre ocorre a um ministro, a um secretário de Estado, a um gestor público, de se aproveitarem dos últimos dias de poder para praticarem actos cuja urgência não se entende, deixando minado o terreno para quem vier a seguir e deixando a pairar a pior das suspeições sobre as suas concepções de serviço público: não o serviço da coisa pública, mas o do interesse particular. Não há governo algum isento desta infecção, de tal modo que é possível dizer, por exemplo em matéria de ordenamento do território, que não há período mais perigoso do que o dos governos de gestão. Algumas das maiores malfeitorias feitas ao ambiente e ao território foram justamente cometidas por governantes a dias de saírem;
- a incapacidade, assim demonstrada, da Presidência da República de acompanhar à lupa, como se impõe, todos e cada um dos actos de um governo de gestão, matando à nascença a criação de direitos e encargos públicos constituídos por mero oportunismo de circunstâncias;
- os malefícios que resultam de uma legislação ambiental e de ordenamento de território onde há regras compulsivas para os pequenos e excepções às regras para os grandes. Data também dos últimos dias de governo de um secretário de Estado de Cavaco Silva a excepção chamada dos "projectos estruturantes", ao abrigo da qual, nas zonas da REN (Reserva Ecológica Nacional) e da RAN (Reserva Agrícola Nacional), onde todos os entraves são colocados ao corte de dois sobreiros ou à ampliação em 20 metros quadrados de uma construção já existente, é possível, todavia, cortar dois mil sobreiros ou edificar várias centenas de habitações novas se alguém com o poder para tal resolver que se trata de um "projecto estruturante" para a economia portuguesa. Onde há excepções permitidas à lei geral, há sempre um poder discricionário concedido a alguém para as declarar; e, onde existe tal poder, existe sempre a possibilidade de o influenciar e, em último análise, de o corromper. Ao contrário do que disse Lobo Xavier, o problema aqui não é de excesso de Estado: em todos os países civilizados existe legislação que veda a construção em áreas de especial aptidão agrícola ou de especial sensibilidade ecológica. O mal não é haver Estado que as defenda, o mal é haver demasiados interesses particulares que se habituaram a viver do favor e da excepção do Estado. E repito que não estou a concluir que tal se aplique ao caso presente: estou apenas a dizer que ele nem se colocaria se houvesse uma lei clara, inflexível e igual para todos. E não é por acaso que não existe e que nenhum governo se tem mostrado interessado em que exista.
2. A ameaça é a do aeroporto da Ota, dado já como facto decidido pelo actual ministro das Obras Públicas. No mesmo dia em que Cavaco Silva explicava que o crescimento económico não pode continuar a assentar nas grandes obras públicas e na dependência da construção civil dos contratos com o Estado, mas sim da modernização e internacionalização das nossas empresas, Mário Lino correu a sossegar os industriais das empreitadas públicas que se queixam de que não há mais pontes, nem Expos, nem estádios nem Casas da Música no horizonte. De novo e sempre, apelo ao favor do Estado.
E o ministro respondeu-lhes que sim, em nome do Estado. "Lisboa precisa e vai ter um novo e grande aeroporto!", disse ele, todo contente. E depois, não fossem os autarcas do Oeste terem ouvido mal, esclareceu ainda: "Não é o aeroporto de Lisboa, é o aeroporto da Ota!"
Excelente, maravilhoso: a Ota como novo hub ibérico, destronando Madrid, como eles dizem, sem se escangalhar a rir. Só não percebo uma coisa: se o novo e grandioso aeroporto de Lisboa-Ota é uma reivindicação dos autarcas e das forças vivas do Oeste, será que Lisboa não tem nada a dizer sobre o assunto? Pegam no aeroporto e propõem-se levá-lo para 50 quilómetros de distância, e os lisboetas, os seus autarcas, os candidatos a tal, não precisam de ser consultados, não têm voto na matéria?
Temo pelo anunciado plano de grandes investimentos públicos, que nos anunciam para Junho. Olho para os estádios do Euro (todos os que foram construídos com dinheiros exclusivamente públicos estão vazios e às moscas, ou até encerrados, como o de Faro) e pergunto-me se nunca mais aprenderemos a lição. Prometerem-nos um governo que basearia o crescimento na educação, nas novas tecnologias, na modernização do Estado e do sector produtivo. E querem-nos dar afinal a receita de sempre: mais e mais betão, mais e mais investimentos públicos megalómanos pagos pelos impostos e pela dívida, mais e mais turismo de massas, mais e mais Estado e clientelismo à sua volta.
3. O "ayatollah" Daniel Oliveira escreve no Expresso e faz pregação no Bloco de Esquerda - onde estão os evangelistas da política portuguesa. No sábado passado, ele acusou-me de homofobia e propôs-me para fundador de um "Dia do Orgulho Grunho". Vale a pena ver porquê, para perceber a má-fé e o preconceito destes pregadores.
Em crónica anterior, eu pronunciei-me contra o entendimento do Tribunal de Ponta Delgada, que julgou a rede pedófila local, de que o artigo 175º do Código Penal é inconstitucional, na medida em que discrimina o acto sexual praticado com adolescente, conforme ele seja praticado por homem com rapaz ou por mulher com rapaz. Ao que parece, também anteontem o Tribunal Constitucional se pronunciou no mesmo sentido - o que em nada me faz mudar de opinião. O que este entendimento implica, como então escrevi, é que o direito à orientação sexual do pedófilo prevalece sobre o da própria vítima menor, o que eu acho um duplo abuso. E, quando perguntei se os juízes imaginarão que o trauma de um rapaz abusado sexualmente por um homem será igual ao de ser abusado por uma mulher, o politicamente correcto Oliveira responde que "não há pior preconceito do que o que se mascara de senso comum". Talvez: fiquei a saber que, para ele seria igual ser abusado por um homem ou por uma mulher, em criança ou em adulto. Pois, para mim, não, e não é por estar do lado do senso comum que vou meter a viola ao saco.
Mas a questão não é a de saber o que penso eu ou o que pensa ele. E também não é a de respeitar a orientação sexual do abusador. A questão é a de olhar pelo ponto de vista da vítima e punir efectivamente os danos sofridos. Por isso é que, quando Daniel Oliveira pergunta, estupidamente, se eu aplico o mesmo critério a uma rapariga abusada por uma mulher, a resposta que tenho para lhe dar demonstra a sua própria falta de razão: também aí os danos são menores do que os que seriam causados por um pedófilo-homem. Porque o que interessa, exactamente, não é a orientação sexual do pedófilo, mas a natureza do acto em si e a sua capacidade acrescida de causar traumas, provavelmente irrecuperáveis. Não é preciso entrar em pormenores escabrosos nem fazer apelo ao senso comum para entender isto. Basta estar de boa-fé e não prestar vassalagem a cartilhas bem-pensantes.
Confundir isto com homofobia é uma desonestidade intelectual premeditada. É o que faz Daniel Oliveira, quando me acusa de ser "obcecado com o tema", dando como exemplo ter eu, há tempos, "explicado a anormalidade da homossexualidade" com "exemplos retirados do reino animal". Esta afirmação é falsa e caluniosa: nunca me pronunciei sobre a normalidade ou anormalidade da homossexualidade, nem sequer alguma vez me coloquei o assunto nesses termos, a mim mesmo.
Pelo contrário (e os arquivos deste jornal servir-lhe-ão de prova, caso o deseje), escrevi várias vezes defendendo a igualdade de direitos entre as uniões de facto de homossexuais e o casamento e, mais além, julgo ter sido das primeiras pessoas a defender publicamente o direito ao casamento dos homossexuais. Na sua leviandade argumentativa, ele fez confusão com outra coisa, que essa, de facto, não defendo: o direito à adopção de crianças por casais homossexuais, homens ou mulheres. E não defendo, porque, outra vez, entendo que o factor decisivo a ter em conta não é o direito à orientação sexual dos adoptantes, mas o direito da criança adoptada. E, aí sim, escrevi e mantenho que essa adopção é antinatural e fatalmente não deixará de criar danos na criança adoptada. De facto, nunca vi, no reino animal, uma cria adoptada por dois machos ou duas fêmeas e, que eu saiba, o homem é um animal. Mas talvez esteja errado.
E, com esta, é a terceira vez que vejo alguém ligado ao Bloco de Esquerda deturpar deliberadamente posições minhas, em matérias de que se julgam os guardiões da fé. Já são coincidências a mais. Suficientes para começar a achar que esta gente não é séria.
Miguel Sousa Tavares
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