O ÚLTIMO LEOPARDO
O programa chama-se O Caminho Faz-se Caminhando, centra-se em Mário Soares e é exibido mensalmente na RTP. Uma senhora por lá desfila roupas e futilidades, expondo um provincianismo cosmopolita sem remédio e demonstradamente patusco. Mário Soares merecia outro interlocutor. À vista desarmada, logo nos apercebemos de que a senhora não está à altura da circunstância. Não compreende, talvez por indiferença histórica, ignorância ou módico conhecimento dos factos, o que Paris representou no percurso político, intelectual, cultural e ideológico de Soares.
Ele nomeou pessoas, referiu episódios, indicou lugares que são capítulos fundamentais da resistência antifascista portuguesa. Forneceu pistas, espalhou indícios. A senhora passou alegremente ao lado, adornando o sumptuoso desconhecimento com inexplicáveis risadas. Quem foram Ramos da Costa e Barradas de Carvalho? E Maria Lamas, cujo quarto de hotel estabeleceu o lugar de solicitude, quando tudo parecia perdido? Um faustoso rol de gente, da qual a passeante não curou de saber quem era, quem tinha sido, para conhecimento e instrução dos telespectadores. Deixando escapar a oportunidade de revelar o elo unificador das várias correntes antisalazaristas, e de também noticiar as desavenças e os atritos entre exilados e conspiradores, a prazenteira senhora passeou outro casaco de peles e sacudiu as mãos. Não sem chamar de você o homem sábio, paciente e efusivo, que a tratava com educada cortesia.
Pode-se gostar ou não dele: as injustiças do ódio conduzem a comportamentos insensatos e a impulsos condenáveis por insultuosos. Mas o País alguma coisa, e não pouca, lhe deve. A Mário Soares perdoa-se tudo o que a outros nada se esquece. É verdade. Todavia, nos alvoroços da política, nas surpresas da História ou no indefinido perfil dos movimentos sociais, nunca Mário Soares cometeu o delito de ferir a liberdade. Infracção de que nem todos os que dela falam estão imunes.
A infelicidade do programa começa no título, inspirado no belíssimo poema que o espanhol Antonio Machado escreveu, como desdobramento entre o papel social e os acasos da fortuna. Inadequado à trajectória de Soares, cuja expressão pessoal não se limitou a uma obediência às casualidades, mas sim em desenhar o seu próprio destino histórico. A reivindicação de uma particular autenticidade corresponde aos diversos papéis interpretados, nos últimos 60 anos, pelo fundador do PS. Depois da morte de Álvaro Cunhal, ele é o último leopardo de uma grande geração de políticos, que criou a ilusão da mudança.
A senhora passeante pelo programa não percebe nada destas coisas. E nós não percebemos o que anda ela por ali a fazer.
B.B.
Ele nomeou pessoas, referiu episódios, indicou lugares que são capítulos fundamentais da resistência antifascista portuguesa. Forneceu pistas, espalhou indícios. A senhora passou alegremente ao lado, adornando o sumptuoso desconhecimento com inexplicáveis risadas. Quem foram Ramos da Costa e Barradas de Carvalho? E Maria Lamas, cujo quarto de hotel estabeleceu o lugar de solicitude, quando tudo parecia perdido? Um faustoso rol de gente, da qual a passeante não curou de saber quem era, quem tinha sido, para conhecimento e instrução dos telespectadores. Deixando escapar a oportunidade de revelar o elo unificador das várias correntes antisalazaristas, e de também noticiar as desavenças e os atritos entre exilados e conspiradores, a prazenteira senhora passeou outro casaco de peles e sacudiu as mãos. Não sem chamar de você o homem sábio, paciente e efusivo, que a tratava com educada cortesia.
Pode-se gostar ou não dele: as injustiças do ódio conduzem a comportamentos insensatos e a impulsos condenáveis por insultuosos. Mas o País alguma coisa, e não pouca, lhe deve. A Mário Soares perdoa-se tudo o que a outros nada se esquece. É verdade. Todavia, nos alvoroços da política, nas surpresas da História ou no indefinido perfil dos movimentos sociais, nunca Mário Soares cometeu o delito de ferir a liberdade. Infracção de que nem todos os que dela falam estão imunes.
A infelicidade do programa começa no título, inspirado no belíssimo poema que o espanhol Antonio Machado escreveu, como desdobramento entre o papel social e os acasos da fortuna. Inadequado à trajectória de Soares, cuja expressão pessoal não se limitou a uma obediência às casualidades, mas sim em desenhar o seu próprio destino histórico. A reivindicação de uma particular autenticidade corresponde aos diversos papéis interpretados, nos últimos 60 anos, pelo fundador do PS. Depois da morte de Álvaro Cunhal, ele é o último leopardo de uma grande geração de políticos, que criou a ilusão da mudança.
A senhora passeante pelo programa não percebe nada destas coisas. E nós não percebemos o que anda ela por ali a fazer.
B.B.
Etiquetas: Televisão
2 Comments:
Através de um artigo de B.B. e de uma conversa à mesa, cheguei ao conteúdo do primeiro programa da tv pública com Soares e Clara Ferreira Alves.
A RTP levou a dupla a Paris onde o antigo exilado reviveu os lugares por onde passou, entremeado por comentários aparentemente despropositados (sigo BB) da jornalista envolta em casacos de peles.
Há muito que Soares faz parte da paupérrima iconografia da democracia portuguesa.
Ele, Cunhal e vaga e tragicamente Sá Carneiro, é o que existe.
Nos militares, e por muito que isso custe aos jacobinos do regime e aos "soaristas" mais frívolos, haverá sempre Ramalho Eanes.
Resmas de programas em praticamente todos os canais, têm sido protagonizados por Mário Soares, nas suas diversificades encarnações.
Já estamos, por isso, bem servidos, muito obrigado.
Todavia, talvez a RTP queira "redimir-se" e, por tabela, "recuperar" simbolicamente Soares como contraponto à iconografia salazarista em que a mesma RTP participou com o concurso da D. Elisa.
Mário Soares nunca teria sido quem foi no país se não tem ocorrido Oliveira Salazar.
Todos os "ícones" do "25 de Abril" são o outro lado da moeda cunhada pelo morto de Santa Comba Dão. Adubou-os a todos, sem excepção. Todos "cresceram" politicamente por causa de Salazar, muito mais do que apesar dele.
O esquizofrénico resultado final do concurso da D. Elisa e da RTP, se calhar, não foi tão esquizofrénico assim.
Quer Salazar, quer Soares, mostraram que efectivamente "o caminho se faz caminhando".
Nem que se seja em sentido contrário.
Portugal
Eu tenho vinte e dois anos
e tu às vezes fazes-me sentir
como se tivesse oitocentos
Que culpa tive eu que D. Sebastião
fosse combater os infiéis ao norte de África
só porque não podia combater a doença
que lhe atacava os órgãos genitais
e nunca mais voltasse?
Quase chego a pensar que é tudo uma mentira
que o Infante D. Henrique
foi uma invenção do Walt Disney
e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação
do Príncipe Valente
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto
quando ouço o hino nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar poker com o velho do Restelo
(anda na consulta externa do Júlio de Matos)
Deram-lhe uns electrochoques e está a recuperar
à parte o facto de agora me tentar convencer
que nos espera um futuro de rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos
a ver se contraía a febre doImpério
mas a única coisa que consegui apanhar
foi um resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso
sem lograr uma pérola que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
Portugal
Vou contar-te uma coisa
que nunca contei a ninguém
Sabes?
Estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
Como me pude apaixonar
por um velho decrépito e idiota como tu
mas que tem o coração doce
ainda mais doce que os pastéis de Tentúgal
e o corpo cheio de pontos negros
poder espremer à minha vontade
Portugal, estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete
Salazar estava no poder
(nada de ressentimentos)
o meu irmão foi para a guerra
(nada de ressentimentos)
um dia bebi vinagre
(nada de ressentimentos)
Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como os da minha mãe
Portugal
gostava de te beijar
muito apaixonadamente
na boca
Jorge Sousa Braga
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