domingo, 2 de dezembro de 2007

OUTRA VEZ OS REGIONALISTAS?

Na minha juventude, aconteceu-me trabalhar dois anos para o Estado, como consultor jurídico no gabinete do ministro da Educação.
Ao princípio, acabado de licenciar, achei fascinante a possibilidade de trabalhar junto de um centro de decisões políticas, onde as coisas aconteciam e poder até desempenhar um papel nisso.
Mas, ao fim de um tempo, comecei a perceber como é que funcionava na prática o processo de decisão, ao nível do Estado. E percebi que muito pouca coisa acontecia, de facto.
Havia toda uma máquina montada para tornar inócuas as decisões políticas e para evitar que as práticas administrativas instaladas pudessem ser
alteradas - para melhor ou para pior, tanto fazia, era igualzinho ao Yes, Minister. Mas não era apenas isso que evitava que nada de substancial pudesse acontecer. Os próprios destinatários das decisões nunca se conformavam, quando estas não satisfaziam as suas pretensões.
Analisado um processo ou uma reclamação e decidida esta em contrário do reclamado, eis que o interessado voltava à carga passados uns meses e lá ia a Secretaria-Geral do Ministério abrir novo processo para decisão. E o novo processo, que eu já havia analisado e já fora decidido pelo ministro, aterrava-me outra vez em cima da mesa, obrigando-me a repetir o trabalho já feito. Ou seja, percebi que grande parte do trabalho dos funcionários do Estado consiste em repetir o que já havia sido feito antes - uma espécie de lei do eterno retorno administrativo.

Vem isto a propósito do regresso à cena e ao discurso político dos apelos à regionalização.

Para quem não se lembra, a regionalização foi derrotada por cerca de 65% dos portugueses consultados em referendo e, muito embora a votação tenha falhado por pouco a margem de 50% de votantes, que tornaria o referendo vinculativo para sempre, foi a mais participada de todas as consultas não-eleitorais.
Tomara o Governo que um eventual referendo sobre a Constituição Europeia tivesse uma participação semelhante!

Na altura (creio que já lá irão uns nove anos), eu achei, como muitos outros, que o assunto regionalização estava definitivamente morto e enterrado - depois de uma clara maioria de portugueses a ter rejeitado, numa luta que, aliás, foi desigual e exemplar, pois que quem venceu foram grupos de cidadãos civis, enfrentando todo o establishment político, sindical e corporativo.
Achei que tirando os cíclicos assomos regionalistas do algarvio Mendes Bota e de algumas almas penadas do norte, ninguém de bom-senso se lembraria de tentar ressuscitar um cadáver ainda tão fresco.

Mas há, de facto, muitos interesses escondidos à espera da regionalização. Muitas almas por esse país fora que não estão verdadeiramente interessadas numa descentralização administrativa, mas sim em se verem ungidos de uma legitimidade política própria, ganha em eleições regionais, e que eles julgam, e bem, que automaticamente lhes daria acesso a uma profusão de dinheiros públicos para gastarem como caciques locais, assim reproduzindo pelo país fora os piores vícios da regionalização insular.

Já se sabe que Sócrates adiou a consideração do assunto para a próxima legislatura e que Luís Filipe Menezes, recém-convertido à causa, também acha melhor não criar ondas antes das eleições de 2009: aliás, já se imaginou que mau aspecto daria ver o PSD unido ao PS a defender as regiões antes de ambos se defrontarem nas urnas?
Mas, se os chefes têm de manter estrategicamente um discurso de prudência, muitos dos seus acólitos já andam para aí a pregar as estafadas e desmascaradas virtudes da regionalização, para criarem uma suposta vaga de fundo nacional que depois possa justificar o golpe.

E a primeira coisa que se deve dizer sobre o golpe que anda a ser congeminado é que ele reflecte um profundo desprezo dos seus mentores pelas regras democráticas.
Não que um referendo não possa nunca ser repetido, passado um adequado período de nojo. Mas há referendos e referendos e causas de repetição que umas são compreensíveis e legítimas outras não.
O referendo à despenalização do aborto foi repetido, mas, nesse caso, toda a gente sabia que a derrota do ‘sim’ no anterior referendo não reflectia o pensamento maioritário dos portugueses na matéria e apenas a irritação e o alheamento a que muitos se votaram, depois de assistir à estupidíssima campanha do sim. E também aí não houve, ao contrário do que sucedeu com o referendo às regiões, uma total desigualdade das posições em confronto.
É essa desigualdade que faz os regionalistas terem esperanças que novo referendo, com todo o establishment político e todos os interesses instalados a defenderem o sim não irá encontrar desta vez a mesma resistência da sociedade civil.
Porque não é fácil ter de travar duas vezes a mesma luta de David contra Golias, mobilizar outra vez cidadãos que têm a sua vida e o seu trabalho e que têm de pagar do seu bolso as despesas de campanha, contra um exército profissional, organizado, instalado no terreno, sem problemas de orçamento e até, como se viu então, sem pudor em recorrer aos meios e dinheiros do Estado para fazer campanha.

Mesmo assim, gato escaldado de água fria tem medo.
Há regionalistas que acham - já achavam antes - que isto do referendo, como se viu, é um contratempo democrático sem sentido.
Dizem que, se a Constituição de 1976 (reflectindo a demagogia e a irresponsabilidade dos tempos de então) continua a ter inscrita a regionalização, ela deve ser feita de qualquer maneira - se não foi com referendo, agora deve ir sem.
Mas como, entretanto, a Constituição passou também a exigir um referendo, eles não se acanham: faça-se uma revisão constitucional ad hoc, para de lá retirar a obrigatoriedade do referendo.
Reparem na espantosa lógica democrática deste raciocínio: como a Constituição manda que haja regiões; como também manda que elas só possam ir avante depois de um referendo vinculativo; e como os portugueses já disseram que não queriam regiões, o que se faz?
Tiram-se as regiões da Constituição, para dar cumprimento à vontade expressa pelos portugueses?
Não, tira-se o referendo, para que as regiões se possam fazer por simples vontade dos partidos na Assembleia e à revelia da vontade dos portugueses.

Quem isto defende pode ser um grande regionalista, campeão da sua terra. Mas o que nunca será é um democrata recomendável.


Miguel Sousa Tavares

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3 Comments:

At 2 de dezembro de 2007 às 16:14, Blogger Antonio Almeida Felizes said...

São muitas as vezes em que concordo com as análises e ideias do Miguel Sousa Tavares. Todavia, nesta matéria, estou em completo desacordo.

Fraudulenta foi a revisão constitucional de 1997, no que toca à alteração constitucional que passou a impor a obrigatoriedade do referendo para a instituição das regiões administrativas. Isto sim, isto é uma ilegalidade e uma originalidade portuguesa, submeter a referendo normas constitucionais e leis da república.

Para quem não se lembra, recordo que o referendo de 1998 foi levado a cabo num contexto de grande confusão - a Madeira e os Açores, que são há muito regiões autónomas, votaram esmagadoramente contra as regiões administrativas portuguesas (mais de 85% Não). Lisboa votou a favor e o Norte contra.

Seja como for, contrariamente ao que diz o MST, não há realidades políticas imutáveis, se assim fosse, os governos nunca mudavam, pois foram sufragados pela maioria dos portugueses. Era tudo eterno...

Cumprimentos,
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Regionalização
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At 2 de dezembro de 2007 às 17:23, Anonymous Anónimo said...

O Senhor do último comentário não concorda com MST nesta matéria, e está muito bem não concordar...mas também não devia concordar noutras...Olhe que o MST não está ao corrente das coisas..muitas coisas...logo não devia dar conselhos nen fazer análises sobre qualquer matéria...Lembra-se quando ele veio à Televisão dizer que os funcionários Públicos recebem Diuturnidades quando isso já tinha acabado à mais de 10 Anos??? tem dito e continua a dizer outras parecidas....Certo??

 
At 5 de dezembro de 2007 às 16:52, Blogger templario said...


Concordo inteiramente com o que escreveu o Sr. MST

Devemos recordar, ou chamar a atenção dos que não viveram esse período da nossa história, que a questão da Regionalização foi inscrita na Constituição de 1976 por forte pressão externa, particularmente a ex-urss como expediente para dividir políticamente o país. Era uma espécie de golpe contra a democracia nascente.

Um outro aspecto significativo é o facto de os defensores da regionalização não se aterem à nossa própria história, cujos reconhecidos e aquilatados historiadores definem o nosso país como a-regional. Remetem-se a comparações despropositadas, dando como exemplos Bélgica, Alemanha, Espanha.

O que está em marcha não é o desejo de regionalizar, mas sim centralizar para que a divisã dos lugares de poder seja agora por uma elite de patamar superior, onde, obviamente se incluiem grupos económicos (e não só).

Cá para mim, a sociedade civil, pelo sim, pelo não, tem de se organizar contra um certo lumpen político que está a seu utilizado por certos líderes.
"camaradita.blogs.sapo.pt"

 

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