domingo, 2 de março de 2008

LONGE DO PODER

Ciclicamente, o Porto gosta de desatar a interrogar-se sobre si próprio, numa espécie de catarse que às vezes chega a ser masoquista. Nenhuma outra cidade ou região de Portugal gasta tanto tempo a interrogar-se sobre a sua identidade e viabilidade como o Porto. Cidades como o Funchal, Braga, Viseu, Évora, bem ou mal, fazem e avançam; o Porto não faz e vive a atormentar-se para descobrir a razão. É certo que terá de haver razões, porque o diagnóstico é incontroverso: nos últimos anos, na última década, claramente, o Porto perdeu poder, influência e rentabilidade económica. Custe a quem custar, há hoje, praticamente, uma só marca em toda a cidade que é sinónimo de progresso, modernidade e prestígio, aquém e além-fronteiras: a marca FC Porto.

Inevitavelmente, também, estas sessões públicas de autoflagelação terminam com a conclusão recorrente: ou se faz a regionalização ou não há futuro para o Porto. Mesmo gente que até aqui sempre recusou deixar arrastar-se pelo canto de sereia da regionalização, portuenses para quem a defesa legítima dos interesses e de maior protagonismo local não justifica a implosão do Estado, parecem agora não convencidos, mas rendidos. Se nada parece resultar e se a desmoralização alastra, venha então a regionalização, para vermos no que dá. Se for avante, vai dar desastre, como é inevitável - para o Porto e para o país inteiro.

Que o Estado é demasiado centralizado, todos concordamos: é inútil e prejudicialmente centralizado. Mas que terá de haver sempre um Estado central, sob pena de, no limite absurdo em que pretenderam fazer a regionalização, nos transformarmos numa Federação de Kosovos, isso também é evidente - para todos, excepto para os oportunistas e aventureiros políticos. Mas, salvo melhor opinião, não me parece que o centralismo estatal seja a origem profunda dos males de que se reclamam os portuenses. No passado, um Estado ainda mais centralizador não impediu que o Porto conquistasse a sua autonomia. O Porto foi liberal quando o Estado era absoluto, foi culto e próspero quando o regime, sediado em Lisboa, era obscurantista e de compadrio político-económico.

Os tempos mudaram, sem dúvida. Mas eu continuo a acreditar que os avanços nas sociedade se fazem de baixo para cima e não de cima para baixo. Não há divisão político-administrativa, feita por decreto experimentalista, que possa dar vida e pujança a uma região onde as forças locais não sintam que a mudança tem de começar por elas próprias e pela alteração de mentalidades e atitudes ultrapassadas. Não se é moderno por decreto nem o progresso está em encostar-se às benesses do Estado e esperar que tudo corra pelo melhor. A única região de Portugal onde se julga que a independência passa por viver à custa do Estado é a Madeira. Mas basta olhar para as elites locais para perceber que não têm outra alternativa.

Ao contrário, eu penso desde há muito que a razão profunda para o atraso estrutural português está na crença desmedida de que o Estado há-de acorrer a todos os nossos problemas e dificuldades. É uma crença e um mal que vêm do tempo das Descobertas e do monopólio da Coroa (Colombo descobriu a América financiado por investidores e comerciantes da Andaluzia...), que se agravou com Pombal e, nos tempos modernos, encontrou o seu apogeu no salazarismo, no PREC e nos dinheiros europeus. E é um mal que vem de cima a baixo: existe entre os habitantes da Aldeia da Luz - que, em lugar de serem simplesmente expropriados para a construção de Alqueva, viram o Estado reconstruir-lhes minuciosamente, mas com infra-estruturas modernas que nunca tinham tido, a mesma aldeia, uns quilómetros ao lado - e mesmo assim se queixam porque os azulejos da cozinha não são exactamente iguais ou porque falta fazer o centro de dia, sem que lhes ocorra fazê-lo eles mesmos; e existe entre os grandes empresários de obras públicas, por exemplo, que consideram um direito adquirido ter empreitadas que custam sempre 50, 100 ou 200% a mais do que o orçamentado.

Ora, no fim-de-semana passado, o Porto lá se reuniu para mais uma dessas sessões de psicoterapia de grupo, sob a candente questão até onde irá o Norte continuar a empobrecer? Dando de barato que o Porto e o Norte sejam uma e a mesma coisa e que as situações e problemas sejam semelhantes, o debate, tanto quanto li, resumiu-se à situação das empresas: se as empresas estão mal, o Norte está mal. E estão mal porquê? Pois, aqui é que a discussão se tornou interessante.

Entrou em cena um lisboeta, António Pires de Lima, recém-retirado da política activa mas ainda dirigente do PP, e agora administrador de empresa, ao que percebi com residência no Porto. Começou ele por dizer algumas coisas acertadas e evidentes, como o facto de os empresários do Norte não terem acreditado (se bem que muito avisados...) que a globalização da economia era a sentença de morte para empresas assentes na mão-de-obra barata e não qualificada e com uma gestão familiar, ligada à propriedade e não à competência. Mas logo, alinhando pelo caderno de encargos destes encontros, veio o piscar de olho à regionalização ou descentralização (que é o seu púdico sinónimo). Porque, afirmou ele com conhecimento de causa, o poder político é uma condição fundamental para que o poder económico possa florescer - (vide o Casino Lisboa, digo eu).

Indo ao pormenor, Pires de Lima saiu-se com este desabafo do fundo da alma e da experiência, para justificar os problemas dos empresários do Norte: almoçam em casa ou na cantina da fábrica, enquanto que os de Lisboa vão todos ao mesmo restaurante. E explicou ainda para quem não tivesse entendido, que, para certos campeonatos empresariais, é preciso investir nas competências relacionais, ou seja, em pessoas capazes de abrir as portas do poder político. Preto no branco, eis o elogio da promiscuidade, (para não chamar pior), entre poder político e iniciativa privada. Mais de quinhentos anos depois das Descobertas ainda há quem defenda que não há vida fora da corte.

Este é o tipo de discurso que os propagandistas da regionalização política adoram ouvir. Se as oportunidades de negócio, de progresso, dependem das competências relacionais e estas estão lá longe em Lisboa, nada melhor que dividir Portugal em seis ou oito Terreiros do Paço e outros tantos restaurantes em cujas mesas se distribuam os dinheiros públicos pela iniciativa privada. Infelizmente, o dr. Pires de Lima não está errado nem mentiu aos seus anfitriões do Norte: é mesmo assim que as coisas se passam. Só é pena que um responsável político, em lugar de combater e denunciar o sistema, trate antes de o recomendar.


Miguel Sousa Tavares

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domingo, 2 de dezembro de 2007

OUTRA VEZ OS REGIONALISTAS?

Na minha juventude, aconteceu-me trabalhar dois anos para o Estado, como consultor jurídico no gabinete do ministro da Educação.
Ao princípio, acabado de licenciar, achei fascinante a possibilidade de trabalhar junto de um centro de decisões políticas, onde as coisas aconteciam e poder até desempenhar um papel nisso.
Mas, ao fim de um tempo, comecei a perceber como é que funcionava na prática o processo de decisão, ao nível do Estado. E percebi que muito pouca coisa acontecia, de facto.
Havia toda uma máquina montada para tornar inócuas as decisões políticas e para evitar que as práticas administrativas instaladas pudessem ser
alteradas - para melhor ou para pior, tanto fazia, era igualzinho ao Yes, Minister. Mas não era apenas isso que evitava que nada de substancial pudesse acontecer. Os próprios destinatários das decisões nunca se conformavam, quando estas não satisfaziam as suas pretensões.
Analisado um processo ou uma reclamação e decidida esta em contrário do reclamado, eis que o interessado voltava à carga passados uns meses e lá ia a Secretaria-Geral do Ministério abrir novo processo para decisão. E o novo processo, que eu já havia analisado e já fora decidido pelo ministro, aterrava-me outra vez em cima da mesa, obrigando-me a repetir o trabalho já feito. Ou seja, percebi que grande parte do trabalho dos funcionários do Estado consiste em repetir o que já havia sido feito antes - uma espécie de lei do eterno retorno administrativo.

Vem isto a propósito do regresso à cena e ao discurso político dos apelos à regionalização.

Para quem não se lembra, a regionalização foi derrotada por cerca de 65% dos portugueses consultados em referendo e, muito embora a votação tenha falhado por pouco a margem de 50% de votantes, que tornaria o referendo vinculativo para sempre, foi a mais participada de todas as consultas não-eleitorais.
Tomara o Governo que um eventual referendo sobre a Constituição Europeia tivesse uma participação semelhante!

Na altura (creio que já lá irão uns nove anos), eu achei, como muitos outros, que o assunto regionalização estava definitivamente morto e enterrado - depois de uma clara maioria de portugueses a ter rejeitado, numa luta que, aliás, foi desigual e exemplar, pois que quem venceu foram grupos de cidadãos civis, enfrentando todo o establishment político, sindical e corporativo.
Achei que tirando os cíclicos assomos regionalistas do algarvio Mendes Bota e de algumas almas penadas do norte, ninguém de bom-senso se lembraria de tentar ressuscitar um cadáver ainda tão fresco.

Mas há, de facto, muitos interesses escondidos à espera da regionalização. Muitas almas por esse país fora que não estão verdadeiramente interessadas numa descentralização administrativa, mas sim em se verem ungidos de uma legitimidade política própria, ganha em eleições regionais, e que eles julgam, e bem, que automaticamente lhes daria acesso a uma profusão de dinheiros públicos para gastarem como caciques locais, assim reproduzindo pelo país fora os piores vícios da regionalização insular.

Já se sabe que Sócrates adiou a consideração do assunto para a próxima legislatura e que Luís Filipe Menezes, recém-convertido à causa, também acha melhor não criar ondas antes das eleições de 2009: aliás, já se imaginou que mau aspecto daria ver o PSD unido ao PS a defender as regiões antes de ambos se defrontarem nas urnas?
Mas, se os chefes têm de manter estrategicamente um discurso de prudência, muitos dos seus acólitos já andam para aí a pregar as estafadas e desmascaradas virtudes da regionalização, para criarem uma suposta vaga de fundo nacional que depois possa justificar o golpe.

E a primeira coisa que se deve dizer sobre o golpe que anda a ser congeminado é que ele reflecte um profundo desprezo dos seus mentores pelas regras democráticas.
Não que um referendo não possa nunca ser repetido, passado um adequado período de nojo. Mas há referendos e referendos e causas de repetição que umas são compreensíveis e legítimas outras não.
O referendo à despenalização do aborto foi repetido, mas, nesse caso, toda a gente sabia que a derrota do ‘sim’ no anterior referendo não reflectia o pensamento maioritário dos portugueses na matéria e apenas a irritação e o alheamento a que muitos se votaram, depois de assistir à estupidíssima campanha do sim. E também aí não houve, ao contrário do que sucedeu com o referendo às regiões, uma total desigualdade das posições em confronto.
É essa desigualdade que faz os regionalistas terem esperanças que novo referendo, com todo o establishment político e todos os interesses instalados a defenderem o sim não irá encontrar desta vez a mesma resistência da sociedade civil.
Porque não é fácil ter de travar duas vezes a mesma luta de David contra Golias, mobilizar outra vez cidadãos que têm a sua vida e o seu trabalho e que têm de pagar do seu bolso as despesas de campanha, contra um exército profissional, organizado, instalado no terreno, sem problemas de orçamento e até, como se viu então, sem pudor em recorrer aos meios e dinheiros do Estado para fazer campanha.

Mesmo assim, gato escaldado de água fria tem medo.
Há regionalistas que acham - já achavam antes - que isto do referendo, como se viu, é um contratempo democrático sem sentido.
Dizem que, se a Constituição de 1976 (reflectindo a demagogia e a irresponsabilidade dos tempos de então) continua a ter inscrita a regionalização, ela deve ser feita de qualquer maneira - se não foi com referendo, agora deve ir sem.
Mas como, entretanto, a Constituição passou também a exigir um referendo, eles não se acanham: faça-se uma revisão constitucional ad hoc, para de lá retirar a obrigatoriedade do referendo.
Reparem na espantosa lógica democrática deste raciocínio: como a Constituição manda que haja regiões; como também manda que elas só possam ir avante depois de um referendo vinculativo; e como os portugueses já disseram que não queriam regiões, o que se faz?
Tiram-se as regiões da Constituição, para dar cumprimento à vontade expressa pelos portugueses?
Não, tira-se o referendo, para que as regiões se possam fazer por simples vontade dos partidos na Assembleia e à revelia da vontade dos portugueses.

Quem isto defende pode ser um grande regionalista, campeão da sua terra. Mas o que nunca será é um democrata recomendável.


Miguel Sousa Tavares

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