quarta-feira, 18 de maio de 2005

A GESTÃO DA RAN E DA REN E O MONTADO



Conspiração contra o interesse público





Fazer prevalecer o interesse público contra os interesses privados é a obrigação mais elementar de todo o decisor público. Patrocinar interesses particulares contra o interesse público constitui a violação mais qualificada da sua missão. Independentemente dos seus eventuais aspectos penais (que não estão aqui em causa), o caso do despacho ministerial sobre os sobreiros de Benavente é condenável a todos os títulos, desde logo pela descarada prevalência dada aos interesses do empreendimento turístico privado sobre o interesse público florestal e ambiental.
Antes de mais, a decisão é duplamente ilegal. Ilegal, em primeiro lugar, por ter sido emitida por ministros de um "governo de gestão", há muito tempo demitido, sabendo-se (por que a Constituição ela própria o estabelece) que os governos nessa situação só podem praticar os actos "estritamente necessários" para assegurar a gestão dos negócios públicos (e não os negócios privados...). Ora, não só não foi evocado nenhum motivo para não adiar a prática de tal acto, deixando o dossier para o governo seguinte, como muito menos se vê razão para tanta pressa como a revelada. "Estritamente necessário" só pode ser aquilo que é imprescindível para o interesse público e que se apresenta como inadiável. Manifestamente, nenhuma dessas condições se verificava no caso concreto, sobretudo numa questão que desde há muitos anos apresentava contornos mais do que discutíveis.
Acto ilegal, em segundo lugar, por não se encontrarem preenchidos os requisitos para autorizar excepcionalmente o abate de milhares de sobreiros, nomeadamente a especificação da "imprescindível utilidade pública" de que fala a lei. O único interesse em favor do deferimento era o interesse particular do promotor turístico e imobiliário, descontando o ordinário interesse do município respectivo em realizar mais receita por via das taxas e impostos imobiliários. Mas, na falta de demonstração concludente da tal "imprescindível utilidade pública", o elevado interesse público que justifica a protecção legal da floresta de sobreiros militava frontalmente contra os interesses adversos, incumbindo ao Governo defendê-lo.
Além de ilegal, o despacho dos três ex-ministros é politicamente imoral, sobretudo pelas circunstâncias em que foi praticado. Mesmo que não estivessem constitucionalmente limitados os poderes dos governos de gestão, a verdade é que a simples moralidade política levaria a prescindir da prática de actos tão controversos como aquele em vésperas de eleições (ou até depois delas, segundo informa o Expresso, que diz que duas das assinaturas ministeriais são já posteriores!...), na iminência de um novo governo. O que já se sabe do atabalhoado procedimento administrativo, incluindo os sucessivos pareceres técnicos negativos, a mudança do "dossier" para outros serviços, a incrível celeridade que o processo teve nas vésperas do seu desfecho favorável, numa verdadeira corrida contra o tempo, tudo isto mostra à saciedade, sem margem para dúvidas sérias, que houve um deliberado propósito de precipitar a todo o custo uma decisão favorável aos interesses privados que há mais de dez anos perseguiam debalde esse desiderato.
E a explicação só pode ser uma: sendo certa a mudança de governo, que seguramente manteria a recusa de luz verde para o projecto, do que se tratava era de aproveitar a disponibilidade de ministros "amigos dos negócios" para abrir a estrada real para a iniciativa. O que mais choca no despacho triministerial é ele ter sido agenciado pelo próprio ministro do Ambiente, a quem cabe supostamente a defesa dos valores ecológicos, e assinado também pelo ministro da Agricultura, a quem devia caber a defesa das florestas protegidas. O único ministro cujo interesse se poderia compreender era naturalmente o do Turismo, estando em causa um empreendimento do seu sector. No caso do ministro do Ambiente, porém, vê-lo como campeão dos interesses turístico-imobiliários contra os valores ambientais que lhe cabe proteger é motivo de surpresa e de perplexidade, um verdadeiro fenómeno contra-natura, que sempre daria lugar a fundadas especulações e a escabrosas suspeitas sobre o caso, mesmo que não houvesse o desenvolvimento em curso no foro penal.
Este lastimável episódio vem mais uma vez confirmar a fragilidade das garantias de defesa dos valores ambientais contra os interesses privados, que mantêm sobre os decisores públicos uma enorme pressão, tal é a mais-valia associada a esses projectos. Volta meia volta, lá vem mais uma notícia da autorização ou da legalização de atentados em áreas protegidas, mesmo contra a oposição dos serviços técnicos, por meio de um salvífico despacho ministerial. Por todo o lado, vemos a invasão da reserva agrícola nacional e da reserva ecológica nacional por operações urbanísticas ou empreendimentos industriais, quase sempre com o apoio dos municípios (e ainda houve quem tivesse a demencial ideia de lhes entregar a gestão da RAN e da REN!...) e com a utilização laxista de cláusulas legais que constituem os alçapões por onde entram os casos justificados e também todos os favores.
As coisas não podem continuar assim. Se as leis do ambiente não podem deixar de conter cláusulas de salvaguarda para situações excepcionais, utilizando "conceitos relativamente indeterminados", importa garantir que se trata mesmo de situações excepcionais e de decisões devidamente fundamentadas e transparentes, de modo a limitar o abuso e a banalização das excepções. Justifica-se que nesses casos haja necessariamente um procedimento público e que a eficácia dessas decisões seja temporalmente diferida, de modo a permitir o accionamento de medidas de impugnação administrativa ou judicial que se justifiquem, antes da consumação dos atentados ou da consolidação de posições jurídicas irreversíveis.
Nenhum governo levou tão longe como o anterior o desprezo pelos limites constitucionais dos poderes dos governos demitidos. Apesar de demitido juntamente com a convocação de eleições antecipadas, o Governo e os seus membros dedicaram-se prolificamente à aprovação de legislação sobre tudo e mais alguma coisa e à tomada das decisões políticas e administrativas mais delicadas e controversas, desde a adjudicação de contratos de milhões de euros (como o do SIRESP) até à concessão de várias centrais de produção de energia eléctrica, passando pela aprovação de vários grandes projectos turístico-imobiliários ambientalmente sensíveis.
Se o direito de veto do Presidente da República e a posterior fiscalização de constitucionalidade podem ser remédio bastante contra a legislação indevidamente produzida (mesmo assim não afastando situações de facto consumado, que acabam por prevalecer), já assim não sucede com as decisões administrativas, cujos efeitos podem ser muito mais devastadores para o interesse público, dadas as limitações de fundo e de tempo quanto à revogação de actos administrativos geradores de vantagens para os particulares, sem falar na criação de factos consumados, como sucedeu agora com o fulminante abate de centenas de sobreiros, antes que uma rápida providência judicial lhe pusesse termo.
Urge por isso também aperfeiçoar legalmente as garantias contra actos praticados por "governos de gestão", impedindo que eles possam lesar irreversivelmente o interesse público ou possam consolidar posições juridicamente inatacáveis para os seus indevidos beneficiários. Só assim se criará um antídoto contra as tentações dos interesses à espreita destas oportunidades de negócios furtivos e dos governantes menos zelosos da causa pública.

Vital Moreira