segunda-feira, 1 de agosto de 2005

A POLITIZAÇÃO DAS CONTAS

Este é mais um exemplo de um dos principais males da vida política portuguesa.

Segundo as notícias que vão chegando à opinião pública, a Assembleia da República e o Banco de Portugal estariam em estreita colaboração a preparar um novo organismo que assumiria a responsabilidade de acompanhar as contas públicas e fornecer a análise independente e rigorosa que alegadamente tem faltado. Sob a responsabilidade política do Parlamento e com a competência técnica do Banco de Portugal, acabariam as controvérsias quanto aos verdadeiros valores do ‘deficit’, da execução orçamental, etc. A ideia é péssima.

Em primeiro lugar, este é mais um exemplo de um dos principais males da vida política portuguesa. Se não se está satisfeito com o desempenho de algum organismo ou departamento do Estado, cria-se um novo. Reformar o que existe é um esforço sem esperança. Mais vale começar de novo. Mas como também não se pode pôr fim a nenhuma instituição, a nova e a antiga ficam a funcionar em paralelo, com duplicação de funções e total desperdício.

Depois, é no mínimo estranho que se pretenda obter uma avaliação independente das contas públicas quando ela fica sob a responsabilidade política do Parlamento. A Assembleia da República é, constitucionalmente, o mais político de todos os órgãos de soberania, aquele em que a lógica partidária é mais forte e onde a perspectiva estritamente política mais peso tem. Vê-se bem como, em todas as questões importantes, as decisões da Assembleia ou das suas Comissões seguem linhas estritamente partidárias. A Assembleia existe para dar voz às posições diferentes dos vários partidos, não para gerar consensos ou visões independentes.

É certo que nos Estados Unidos da América a análise das contas públicas e as projecções orçamentais são feitas por um organismo do Congresso. Mas o paralelo não se aplica a Portugal. Nos EUA o orçamento é da responsabilidade do Congresso, os congressistas têm um papel extremamente activo na sua preparação e nas inúmeras modificações que introduzem e não poderiam seriamente fazer esse trabalho político sem ter ao seu dispor um órgão profissional que os apoiasse. Ora em Portugal, como em todas as democracias europeias, o orçamento não é elaborado da mesma forma: é preparado pelo Governo e apresentado à Assembleia, que eventualmente vota modificações que têm de novo de ser estudadas e preparadas pelo Governo.

Há ainda um elemento muito negativo no envolvimento do Banco de Portugal na análise das contas públicas em conjunto com a Assembleia da República. O Banco de Portugal está hoje isento de influência política directa e conquistou uma merecida e importante reputação de seriedade e de independência. O seu envolvimento em questões de uma sensibilidade política extrema não é desejável, sobretudo se feita sob a orientação da Assembleia, onde a perspectiva política nunca pode estar ausente. O banco central provavelmente já ultrapassou o limite do que seria prudente, ao pronunciar-se de forma tão comprometida sobre as ”verdadeiras contas públicas” de 2001 ou o ”verdadeiro orçamento” de 2005. A forma como as suas análises são utilizadas e as controvérsias a que essa utilização dá origem não contribuem para manter a imagem de isenção e independência do Banco de Portugal que é absolutamente essencial ao Pais.

É muito deplorável que o País aceite sem pestanejar que a Administração Pública não é de confiar e que, sujeitos a pressões políticas, os funcionários públicos são incapazes de fazer trabalho honesto: no caso concreto das contas públicas, por maioria de razão, uma vez que várias entidades independentes se têm de pronunciar sobre elas. Desde logo o Ministério das Finanças, que centraliza toda a informação; depois, o Banco de Portugal que, no contexto da sua responsabilidade de análise económica e financeira e de produção de estatísticas monetárias e financeiras, tem uma perspectiva separada e insubstituível; e, por último, o Instituto Nacional de Estatística, a quem compete produzir contas nacionais isentas, rigorosas e a tempo.

Todos aqueles que não estão contentes com o actual estado de coisas, no que respeita à fiabilidade da informação sobre as contas públicas, fariam melhor em insistir na independência do INE, dotá-lo de meios e responsabilizá-lo pelos resultados do seu trabalho, ao mesmo tempo que deveriam insistir na seriedade dos departamentos do Ministério das Finanças e na colaboração estreita com o Banco de Portugal, fora de pressões políticas de qualquer natureza.

António Borges