quinta-feira, 11 de novembro de 2004

A ILUSÃO DO DIRECTO


Na comunicação audiovisual, nomeadamente na reportagem televisiva, o directo pretende induzir uma garantia de autenticidade, de credibilidade. De realidade. Não será tanto assim...Imediato, conotado com o terreno e a cor local, vivo e quente, o directo ocuparia assim um espaço privilegiado. Um sabor autêntico, apaixonado. A paixão, entregue a ela própria, pode no entanto fazer de um homem bom um criminoso. Vejamos as coisas de um modo um pouco mais distanciado, para não cair numa primeira leitura, numa leitura primária: Basta não haver enquadramento contextual dos factos e dos acontecimentos relatados em directo, ser esse enquadramento insuficiente ou orientado, para haver desde logo manipulação. A colagem aos factos não os credibiliza automaticamente. Os factos não são assim entidades naturais pois já foram “trabalhados” e instrumentalizados pelo dispositivo do directo, em vista àquilo a que se chama o “efeito- verdade”. Uma pseudo autenticidade.

“Directos” houve no passado que deram brado, como o do jornalista comodamente instalado num grande hotel de Marbela, em Espanha, a enviar à Redacção do seu quotidiano uma série de reportagens sobre a guerra entre Vietnamitas e Khmers Vermelhos em 1981. Reportagens povoadas de detalhes dos confrontos no teatro da guerra, isto é no teatro do Hotel! A pressão da concorrência mediática assim o exigia, a obrigar à notícia quente, em primeira mão, mesmo que meios humanos e logísticos não houvesse.

O caso mais grotescamente notável foi, um pouco mais tarde, o de um canal televisivo francês que fez viver aos seus telespectadores, mais uma vez “em directo”, dias a fio, os acontecimentos da revolução romena de 1989, que culminaram com execução sumária do ditador Ceausescu e de sua mulher. Não havia jornalistas franceses no terreno? Pas de problème! Lançou-se mão da informação transmitida pela televisão romena, entretanto já ocupada e controlada pelos “revolucionários”, uma informação que o canal francês portanto caucionou sem averiguar da sua veracidade e de que se fez cúmplice... O resultado foi o bluff da notícia dessa imensa vala comum de cadáveres de Timisoara que depois se verificou ser pura invenção...

Serão estes casos extremos. O directo é, no entanto, quase sistematicamente uma operação de ilusionismo. A guerra do Golfo foi disso bom exemplo... O peso da imagem, aliado ao impacto do som que o directo sabe bem manipular, acabam por significar, falar por si próprios, em vez de apenas darem o contributo que devia ser o seu, em vez de ilustrar ou contribuir para o significado global. O significado e a compreensão da guerra passam ao lado quando a imagem quente e o som ensurdecedor da metralha dominam a informação. Os significantes ocupam o espaço do significado. O resultado é um cenário mais vistoso, mas uma Informação empobrecida e neutralizada. Quanto ao jornalista, o agente desta operação, ele apaga-se, um subalterno praticamente limitado ao passador de imagens, com pouca ou sem intervenção específica no processo. A reflexão, essa é curto- circuitada ou relegada para segundo plano

O directo, de modo geral, leva ainda a que o acontecimento se resuma ao acontecimento televisivo. Já lá vai o tempo em que a Tv estava presente porque o acontecimento era importante. Hoje, o acontecimento é importante porque a Tv estava lá. É ela, em última análise que significa a Informação, apenas pela sua presença nos locais. O directo molda assim, perversamente, a percepção do telespectador, ao lhe fazer acreditar que a presença do repórter nos “locais do crime”, no terreno de uma tragédia, ou duma guerra, confere, por si só, credibilidade à informação veiculada. Esta a doença infantil da Informação. As verdades do directo deixam pois muito a desejar. Como se fosse necessário colar às coisas, aos acontecimentos para eles terem efectivamente existência. É evidente a submissão ao monopólio e à ditadura dos significantes, esvaziados de significado, em benefício de uma estratégia sensacionalista, mercantil.

A.B.

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