sexta-feira, 19 de novembro de 2004

O TEXTO QUE ACABEI DE ESCREVER


Na semana passada, mostrei à minha mãe um texto que tinha acabado de escrever. A minha mãe foi buscar os óculos e sentou-se. Segurou as folhas e começou a ler. Eu esperava que acabasse e, às vezes, olhava para ela. Durante o tempo em que esteve a ler, vi o seu rosto a mudar muitas vezes de expressão. Depois da última linha, pousou as folhas sobre a mesa e olhou para mim sobre as lentes dos óculos como se não precisasse de dizer nada, como se fosse óbvio aquilo que tinha para dizer. Depois desse instante, disse-me "não podes publicar isto." Como se perguntasse, disse-me "o que é que as pessoas vão pensar?" Eu olhei para a minha mãe e ri-me. Expliquei-lhe que ela não estava a entender bem. Tentei explicar-lhe que, obviamente, as pessoas ao lerem "eu" não iriam pensar que estava mesmo a falar de mim. Do mesmo modo, ao lerem "a minha mãe" não iriam pensar que estava mesmo a falar dela. A minha mãe tem o cabelo muito encaracolado e eu, como exemplo, mostrei-lhe uma frase que dizia "a minha mãe tem o cabelo muito liso". A minha mãe disse-me "mas essas pessoas não me conhecem e vão pensar que tenho o cabelo liso e que digo essas coisas que aqui escreveste". Eu perguntei-lhe porque é que ela se importava tanto com a opinião de pessoas que não a conhecem. A minha mãe passou as mãos pelos cabelos e disse que as pessoas que encontra na rua também não a conhecem mas que, mesmo assim, não deixa de se pentear quando sai à rua.
Nada disto é verdade. A minha mãe não disse nada disto. Eu mostrei- -lhe o texto, ela leu-o e disse-me "as pessoas vão pensar que eu tenho o cabelos encaracolado e que brigo contigo por causa dos textos que escreves". Eu disse-lhe que não fazia mal porque ambos sabíamos que ela tem os cabelos lisos e que nunca brigou comigo por causa de nenhum texto. Ela ficou meio triste e disse "sim, nós sabemos isso, mas as pessoas vão pensar de outra maneira". Eu tentei consolá-la, passei- -lhe a mão pelos cabelos e mostrei-lhe as frases onde estava escrito: "Nada disto é verdade. A minha mãe não disse nada disto." A minha mãe perguntou-me se eu acreditava mesmo que as pessoas iam achar que eu e ela não tínhamos dito tudo o que estava descrito naquele texto só porque tinha escrito em duas frases em que dizia que nada daquilo era verdade. Nesse momento, como se me deixasse a pensar nisso, a minha mãe levantou-se e foi fumar um cigarro para a janela.
Que eu saiba, a minha mãe nunca fumou um cigarro na vida. Só com um grande esforço da imaginação, consigo pensar na ideia de algum dia a minha mãe acender um cigarro e fumá-lo. Quando lhe mostrei o texto que tinha acabado de escrever, a minha mãe disse-me "nem penses em publicar isto". Poucas vezes vi os seus olhos tão furiosos. Disse-me "se eu souber que publicaste isto, esqueço-me que tenho filho e nunca mais te quero ver a pisar o chão desta casa". Olhei para ela sem entender de onde vinha toda aquela fúria. Continuou a falar. Era por causa de ter escrito que ela tinha ido fumar um cigarro para a janela. Falou em falta de respeito. Disse-me "não te esqueças que já tenho cinquenta e três anos, não sou nenhuma rapariga da tua idade". Disse-me "se te esqueceres disso, pelo menos não te esqueças que sou tua mãe". Voltou a falar em falta de respeito e, quando saiu, bateu a porta com toda a força.
"O que é que as pessoas vão pensar?", sussurou a minha mãe. "De certeza, vão achar que eu ando por aí com ataques de fúria, a bater com as portas". Olhou para mim preocupada e disse "pensarem que eu ando a fumar ainda é o menos". A sua preocupação era um sentimento constante que permanecia no seu rosto. "De certeza que as pessoas vão pensar que eu estou sempre a pensar naquilo que elas poderão ficar a pensar". Tentei explicar-lhe que, obviamente, as pessoas ao lerem "eu" não iriam pensar que estava mesmo a falar de mim. Do mesmo modo, ao lerem "a minha mãe" não iriam pensar que estava mesmo a falar dela. Tentei convecê-la que, num texto como aquele, "eu", "a minha mãe" eram conceitos abstractos, eram personagens de um mundo onde eu e a minha mãe entrávamos apenas muito ligeiramente. Expliquei-lhe que só eu e ela pensávamos de facto um no outro enquanto líamos aquelas palavras. As outras pessoas não nos conhecem, por isso ao lerem "eu" pensarão em si próprias, ao lerem "a minha mãe" pensarão nas suas próprias mães. Eu gosto muito da minha mãe. Saber que a minha mãe está preocupada cria em mim uma angústia muito grande. Por essa razão, segurei as páginas e apontei para a frase onde estava escrito: "Eu gosto muito da minha mãe." A minha mãe olhou para mim e sorriu um sorriso inocente.
Quando acabou de ler, a minha mãe pousou as folhas sobre a mesa, pousou os óculos sobre as folhas, olhou para mim e riu-se. "Que texto mais estranho que tu escreveste", disse-me. Por contágio, ri-me também, mas fui parando devagar porque não entendia bem a razão porque me ria. Perguntei-lhe porque achava o texto "estranho". A minha mãe disse-me que quem o lesse ficaria sem saber se ela tem o cabelo encaracolado ou se tem o cabelo liso, se fuma ou não, se é nervosa ou calma, se fica preocupada com aquilo que as outras pessoas pensam ou não. Eu disse-lhe que isso não tornava o texto estranho, disse-lhe que as pessoas ficariam sem saber isso mas que, de qualquer modo, isso seria sempre algo que nunca poderiam saber através de qualquer texto. A minha mãe perguntou-me "então, para que é que escreveste este texto?" Senti-me ofendido e humilhado. Não era evidente o motivo porque tinha escrito aquele texto?
A minha mãe, a minha mãe, a minha mãe. Atirou as páginas para cima da mesa e disse "estou muito decepcionada contigo". Fiz olhos de criança e perguntei-lhe porquê. "Então tu queres que as pessoas pensem que sou uma mãe que fica decepcionada com o filho só porque escreveu um texto?" Olhei para ela sem entender. "O que é que as pessoas vão pensar?" Ainda com olhos de criança, tentei iniciar uma frase que não sabia muito bem qual poderia ser. A minha mãe, com o mesmo olhar severo, perguntou-me "então tu queres que as pessoas pensem que sou uma mãe com um olhar severo que se preocupa com as coisas que as outras pessoas pensam depois de ler um texto?" Eu não sabia o que dizer ou o que pensar. A minha mãe gritou "então tu queres que as pessoas pensem que eu sou uma mãe que começa a gritar só por causa de um texto em que as pessoas pensam que estou a gritar por causa de elas pensarem que estou a gritar?" A minha mãe olhava para mim e já tinha acabado de dizer o que tinha para dizer. Finalmente, entendia-a. A minha mãe era muito mais do que uma mãe com um olhar severo ou com um olhar doce. A minha mãe era muito mais do que uma mãe com os cabelos encaracolados ou lisos. Dizer apenas que a minha mãe se preocupa com as coisas que as outras pessoas podem pensar é dizer muito pouco sobre a minha mãe. Finalmente, entendi-a. Agarrei as folhas. Nunca as publiquei em lado nenhum. Em vez disso, agarrei-as e rasguei-as em muitos quadrados pequenos de papel. O que é que as pessoas poderiam pensar? Eu próprio não sei o que pensar sobre esse texto que nunca publiquei. Era estranho. Não sei se era um texto sobre a minha mãe. Não sei se era um texto que não era sobre a minha mãe. Ainda assim, lembro-me da primeira frase desse texto: "Na semana passada, mostrei à minha mãe um texto que tinha acabado de escrever."

José Luís Peixoto