sexta-feira, 3 de dezembro de 2004

GALVEIAS

Lembro-me exactamente do dia em que o meu pai me disse que Galveias fica a oitenta quilómetros de Portalegre e a oitenta quilómetros de Évora. Lembro-me da sua voz e, se parar um pouco, lembro-me do seu rosto: do seu cabelo, dos seus lábios, da maneira como olhava para mim. Talvez oitenta quilómetros não sejam a distância certa. Talvez Portalegre seja um pouco mais próximo de Galveias do que Évora, mas eu lembro-me exactamente do dia em que o meu pai me disse essas palavras e eu prezo mais a memória do que a verdade.Quando eu era pequeno, ia a Ponte de Sor com a minha mãe. Ìamos à feira ou ìamos simplesmente às lojas: ao A. B. Carvalho, à Casa das Noivas, à Casa Regional. Se alguém perguntava, nós dizíamos que éramos de Galveias e toda a gente sabia. Alguns anos depois, em excursões da escola ou da cataquese, em terras mais distantes – Fátima, Serra da Estrela, Nazaré –, as pessoas perguntavam-me de onde era. Eu respondia simplesmente: «Galveias», e achava estranha a estranheza com que as pessoas me olhavam. Quando eu era pequeno, pensava que toda a gente conhecia as Galveias. Depois, aprendi a dizer: «Galveias é uma vila no concelho de Ponte de Sor». Quando, mesmo assim, encontro estranheza, acrescento: «No distrito de Portalegre».Nasci em Galveias. Nasci na rua da Machuqueira. Por ser transversal à rua de São João – que é a rua que liga a vila ao campo, ao monte da Torre, à fonte da Moura – eu e os outros rapazes da minha idade víamos os homens que vinham da cortiça ao fim da tarde, no Verão. Saltavam dos tractores no alto de São João e desciam pela rua com sacas ao ombro, com rostos de suor e de pó. Nós jogávamos à bola, usando balizas feitas com duas pedras e medidas com seis passos. Parávamos o jogo se por acaso vinha algum carro, e páravamos o jogo quando passavam os rebanhos de ovelhas. As mulheres passavam e diziam: «estes cachopos não param quietos». Sabíamos as árvores onde haviam ninhos e não nos aproximávamos para as mães não engeitarem os ovos. Sabíamos as árvores onde haviam as melhores laranjas ou os melhores figos. E, com os cotovelos a escorrerem sumo de laranja, fugíamos à frente dos donos das hortas, e lavávamos os lábios na fonte do Vale das Mós para não rebentarem por causa dos figos. Conhecíamos os cães na rua e conhecíamos todos as pessoas.Depois, comecei a ir para a escola. A minha mãe acordava-me com um prato de nestum, vestia-me a bata e eu, de mala às costas, caminhava pelas ruas. O sol entrava pela janela da sala de aula. Éramos todos pequenos e tínhamos todos batas iguais. A Dona Arcângela também tinha uma bata do mesmo tecido e ensinava-nos coisas que nunca haveremos de esquecer. Lembro-me do dia em que nos ensinou a letra «t». Nessa tarde, cheguei a casa e, com um lápis, escrevi várias vezes a letra «t» na parede da cozinha do quintal. A minha mãe zangou-se um bocadinho. Às vezes, a minha mãe ou a Dona Arcângela zangavam-se um bocadinho, mas nunca se zangavam mesmo, e eu era feliz. A ir para a escola e a regressar a casa, conheci o largo da fonte e a Deveza. Às vezes, regressava a casa, vindo pelo caminho do terreiro. Passava pela casa da minha madrinha. A minha madrinha estava viva e dava-me fatias de bolo, pacotes pequenos de bolacha Maria e, às vezes, uma ou duas moedas brancas de cinco escudos ou de vinte e cinco tostões. No terreiro, eu entrava no Café do Senhor João de Oliveira e comprava cromos de jogadores de futebol. O Chalana, o Jordão, o Gomes. O Estoril Praia e o Amora estavam na primeira divisão. Chegava a casa e, com um tubo de cola Pica-pau, colava os cromos na caderneta.Duas vezes por semana, ía ao Jardim de São Pedro para correr. Eram os treinos de atletismo da Casa do Povo. Corríamos à volta do jardim, fazíamos exercícios em frente à capela de São Pedro e, quando já era maior, quando já andava na telescola, quando já ficava sentado na minha carteira a ouvir ora as lições da televisão, ora as lições do professor Américo, ia ao Jardim de São Pedro e o professor Laranjeira, vestido com um fato de treino azul, dizia-nos: «Vão pela Azinhaga do Espanhol, dão a volta ao São João, entram pela rua do lagar, descem pela fonte, sobem pela rua da Sociedade, atravessam o terreiro e vêm aqui ter.» E nós corríamos, e todas as pessoas com que nos cruzávamos nos diziam boa tarde, e nós entre a respiração de correr dizíamos boa tarde a todas as pessoas.Nascer em Galveias, significa lembrar-se de histórias passadas em todos os lugares de Galveias: na capela de São Saturnino, no nicho, no Bairro do Queimado ou no terreiro. Nascer em Galveias significa nunca esquecer as pessoas, e ter histórias para contar com todas elas: com o Russo, pai de mais de vinte filhos; com o meu padrinho velho, que viveu mais de cem anos ou com o Caleiro, que vendia fisgas e rebuçados. Nascer em Galveias é saber que agora, neste instante em que estou aqui, estão aqui comigo todos os homens que saltam dos tractores ao fim da tarde no alto de São João, estão aqui todas as mulheres que carregam alguidares de roupas para lavar nos tanques da fonte, estão aqui todos os rapazes e raparigas que iam comigo para a escola, está aqui a rua de São João, o adro da igreja, o Largo do Terreiro, porque nunca quererei deixar de ser alguém que nasceu em Galveias
José Luís Peixoto

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3 Comments:

At 9 de outubro de 2006 às 17:48, Anonymous Anónimo said...

é bonito ler coisas assim duma terra de que se gosta mesmo, evocando as suas memórias.

gostava que me pudesse mandar à cobrança, se existir, uma mapa da sua terra, fiquei com muita curiosidade, para elém doutros artigos que já li.

eduardo cambra
rua passos manuel, 137
4000-385 porto

 
At 14 de outubro de 2007 às 23:42, Blogger Hildeber said...

Adorei ler o seu texto sobre as Galveias, uma vila realmente maravilhosa, que por acaso também é a minha terra e da qual sinto imensas saudades, tenho somente pena de ver a nossa vila com tantas potencialidades, riquezas e uma historia de vida lindíssima, a morrer lentamente e cada vez mais lançada no esquecimento.

Um abraço,

Hildeberto Valdoleiros

 
At 25 de abril de 2009 às 22:40, Blogger João Pombinho said...

È bonito como ja disseram noutros comentarios a sua paixao por essa terra tão bonita e tao rica nao só em valores munetarios mas tambem culturais como é galveias, só é pena nem todas as pessoas que são de galveias apoiarem e abrirem a mente para novas mentalidades, mesmos vindo de pessoas que não são da terra ou simplesmente nao tem raízes daí, mas que sentem por essa maravilhosa localidade um carinho enorme, se toda a população puchasse para o mesmo lado talvez as galveias ganhasse mais em todos os sentidos, temos que tentar mudar essas mentalidades antiquadas, e para quem nao é de galveias e tem alguma curiosidade em conhecer a vila pode fazelo no primeiro domingo de maio que se realiza a feira anual da vila, nao e uma feira grande nem por ai tao perto mas se começarmos a ivulgar esse invento, quem sabe se daqui a meia duzia de anos não esta o dobro ou o triplo do tamanho.
João Pombinho
Lisboa
cumprimentos

 

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