domingo, 5 de dezembro de 2004

O TAPETE COR-DE-ROSA

Não se iludam os socialistas com as sondagens de encher o olho que lhes atribuem maioria absoluta. Santana Lopes venderá cara a pele. Encostado à parede pelo Presidente da República, já iniciou a propaganda eleitoral. Fará campanha dura. Não poupará esforços, nem economizará palavras. Discurso a discurso, comício a comício, lutará para permanecer na cena política. Jogará tudo ou nada.
Não é necessário conhecer a pessoa do primeiro-ministro para compreender que, sentindo-se acossado, dentro e fora do partido, dentro e fora da coligação, não cruzará os braços. Dará livre curso àquilo a que Clara Ferreira Alves designou por "voluntarismo impulsivo" (Diário Digital). Elevará ao rubro o tom da campanha. Usará todos os recursos disponíveis no Governo de gestão. Mobilizará as "bases". Apelará ás portuguesas e aos portugueses.
Com fracas possibilidades de vencer, fará da campanha o lugar do ajuste de contas com os "seus" e com os "outros", sabendo bem que os "inimigos" principais estão no seu campo (Cavaco e os cavaquistas, os tecnocratas, os intelectuais...). Tentará igualmente lançar pontes para o futuro. Nesse aspecto, as listas conjuntas com Paulo Portas poderiam permitir-lhe lançar as bases do sempre adiado "grande partido da direita", formado pela "fusão" do CDS-PP e do PSD mais à direita. Esse novo e velho partido teria nome: PPD. De há muito Santana Lopes se afirma legítimo guardião da herança e da marca.
A questão imediata consiste em decidir se o PSD, contrariando o impulso vital das bases, manifestado em Congresso, está disposto a controlar os danos da possível derrota, aliando-se ao CDS-PP. Mas não é certo que Paulo Portas, que se tem mantido, na medida do possível, à margem das confusões do "desfazer de feira" de S. Bento, esteja disposto a ligar o seu destino ao de Santana Lopes, repartindo os custos da previsível derrota, embora tenha presente que o PSD pós Santana - com Marcelo Rebelo de Sousa, Marques Mendes, António Borges ou qualquer outro dirigente - não lhe permitirá refazer alianças de Governo com o partido laranja. Dentro em breve, o PSD voltará à área de influência de Aníbal Cavaco Silva.
Regência ou transição?
Quem pensar o futuro próximo na perspectiva do regime democrático, sabe que se colocará, de novo, com a acuidade dos anos 80, a questão da (possível) estabilidade governativa. António Guterres não caiu apenas devido aos cálculos relativos à recessão económica e aos problemas relacionados com o pacto de estabilidade. A sua queda começou quando falhou, nas eleições de 1999, o objectivo da maioria absoluta.
Se a ambição do PS não se limitar à gestão de um novo período de regência, dando tempo a que Cavaco Silva ganhe as presidenciais e o PSD entre em fase de "regeneração" será necessário que consiga atingir a maioria absoluta. O director de campanha do PS, Jorge Coelho, já disse, em alto e bom som, que os socialistas se baterão pela "maioria absoluta", visto que "não pode(m) repetir o erro que António Guterres cometeu na campanha para as legislativas de 1999", em que o então líder socialista "não chegou a pedir a maioria absoluta ao eleitorado" (DN on line). Mas o dirigente socialista sabe que a operação não é de fácil de executar. Apesar do desgaste provocado pelos governos de Durão Barroso e, especialmente, de Santana Lopes, não é provável que o eleitorado venha conceder a um governante sem experiência de coordenação do Governo e com uma imagem ainda em formação a maioria que recusou a um político que, no ano da graça de 1999, já tinha cumprido, o primeiro mandato de primeiro-ministro e possuía imagem consolidada.
Por isso, Jorge Coelho, considera que "a maioria absoluta deve ser pedida com humildade", ou seja, explicando ao País que, sem ela, não existirá estabilidade política, nem "governabilidade". Se o eleitorado já concedeu, por duas vezes, maioria ao PSD, seria "legítimo" que a concedesse agora aos socialistas, argumenta o dirigente do PS. Só que o problema não se resolve como uma questão de equidade. A conjugação do sistema eleitoral em vigor desde 1975 com o sistema partidário não favorece a formação de maiorias monopartidárias à esquerda. Se isso já era difícil quando o PCP era a principal corrente situada à esquerda do PS, mais complexo ainda se revela na actualidade, visto que o Bloco de Esquerda, beneficiando, na fase de arranque, do "centrismo social-cristão" de António Guterres, ganhou raízes no eleitorado.
O desgaste provocado pelos anos de recessão económica e de contenção orçamental, a perturbação gerada pela saída de Durão Barroso e a turbulência dos meses de governo de Santana Lopes constituem factores favoráveis, no plano eleitoral, ao PS de José Sócrates, mas provavelmente insuficientes para lhe permitir alcançar a maioria absoluta. Não é natural que o eleitorado conceda a José Sócrates o que, por duas vezes, recusou a Guterres.
A evolução interna do PCP corporizada na escolha de Jerónimo de Sousa para secretário-geral - perfil que José Medeiros Ferreira definiu, com acuidade, como "uma criação simbólica do tipo social imaginado pelo intelectual dos anos trinta para dirigir um partido comunista" (DN, 29 de Novembro) - talvez seja gerador de transferência de "voto útil" para o PS, mas, noutro plano, só poderá dificultar qualquer acordo governamental ou parlamentar com os comunistas.

São João Baptista

A imagem é excessiva e hiperbólica mas, ressalvadas as proporções, é possível sustentar que entre o livro "Portugal e o Futuro", de António de Spínola, e a Revolução do 25 de Abril existiu um elo de natureza semelhante à ligação que se pode estabelecer entre a dissolução da Assembleia da República em Dezembro de 2004 e o artigo "Os políticos e a lei de Gresham", de Aníbal Cavaco Silva (Expresso, 27 de Novembro).
Que Cavaco Silva recuse essa interpretação, é natural. O texto não alude expressamente ao PSD, nem ao Governo de Santana Lopes, constituindo uma proposta de reflexão e interpretação sobre aquilo que o autor considera ser "o afastamento das elites profissionais (e também das elites culturais) da vida político-partidária", o que, "ao contribuir para a deterioração da qualidade dos agentes políticos, prejudica a qualidade das instituições democráticas (...)". Mas é evidente que, na conjuntura política da sua publicação, independentemente dos seus méritos explicativos serem mais vastos e abrangentes, o artigo de opinião ajudou a construir o clima de opinião favorável à dissolução. Nem vale a pena gastar tinta a explicar porquê.
Esta intervenção de Cavaco Silva, com o seu apelo às elites, não é gratuita. Enuncia um programa para a acção. Compreende-se bem por que motivo João Cravinho, deputado e antigo ministro do PS, ironiza, a propósito de Cavaco Silva, com o novo São João Baptista, a anunciar a República Nova (DN, 3 de Dezembro).
A eventual e previsível vitória do PS de José Sócrates nas legislativas de Fevereiro de 2005, se ficar pela maioria relativa, significará, passado o breve estádio de graça, o início de mais um período de instabilidade governativa e parlamentar, que dará tempo ao PSD para "arrumar" a casa e a Cavaco Silva para continuar a preparação da viagem para Belém.
Se o resultado das antecipadas for a maioria relativa do PS, o Governo minoritário de José Sócrates será, a contragosto, o tapete cor-de-rosa para entrada em cena de Aníbal Cavaco Silva. Se o antigo primeiro-ministro for coroado em Belém, abrirá caminho a um PSD à sua imagem e a um regime em que se acentuará o peso da componente presidencial. O "grande combate" será transferido para 2006. E a esquerda parte mal colocada.
Mário Mesquita

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