quarta-feira, 19 de janeiro de 2005

DECIDIDAMENTE, A ALTERNATIVA NÃO MORA ALI


O ex-comissário europeu António Vitorino proferiu há dias, numa dessas reuniões promovidas pelo Partido Socialista para divulgar os seus programas eleitorais, a mais lapidar sentença sobre a política económica e financeira do futuro governo do seu partido, e sem dúvida a mais clara vinda daquela área: é preciso continuar a fazer sacrifícios.
O ainda primeiro-ministro apressou-se a aplaudir (esquecido, homem de convicções leves e voláteis como ele é, que ainda há pouco mais de um mês, na apresentação do orçamento do seu Governo, anunciara euforicamente o arranque da "retoma" e o fim dos sacrifícios...).
O engenheiro Sócrates, na cuidadosa gestão dos silêncios (ou das raras pérolas que pontualmente o vão rompendo) destinada, é forçoso concluí-lo, a ocultar a verdadeira natureza das escolhas do seu partido, terá seguramente concordado. Concordaram também os novos gurus de um neoliberalismo mal temperado de uns pós de "social", que, parece, virão a ser os rostos da economia e das finanças do próximo ministério PS. E concordaram ainda os velhos gurus neoliberais das finanças do cavaquismo, os da banca, os dos movimentos de empresários, todos bastante assíduos às "novas fronteiras" que o engenheiro Sócrates generosamente lhes franqueou. Por todos, os técnicos, os políticos e os ideólogos das finanças públicas deste bloco central conservador e de sólida essência neoliberal, reencontrado em redor da urgência dos sacrifícios, se terá expressado o dr. João Salgueiro, ex-porta-voz dos banqueiros e dirigente da associação Sedes, ao sintetizar a questão quase tão claramente como o dr. Vitorino: continuar a fazer sacrifícios quer dizer: cortar sem contemplações na despesa pública e aumentar as receitas (ou seja, agravar os impostos, medida incómoda e que os líderes partidários do "centrão" tentam de várias formas iludir).
Ora, parece-me a mim, a pergunta que para o cidadão comum se impõe, decifrando o jargão por detrás do qual economistas e políticos conservadores normalmente ocultam a violência do que em termos sociais se prepara, é esta: sacrifícios em nome do quê? Sacrifícios por parte de quem?
Sacrifícios em nome do quê é precisamente o cerne do debate desta campanha eleitoral. Quase três anos de governo do PSD-PP espremeram os portugueses, sobretudo os de menores rendimentos, em nome do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), que impõe anualmente um défice orçamental abaixo dos 3 por cento do produto interno. Os resultados dessa política suicidária de equilíbrio cego do OE, política que mereceu sempre a melhor compreensão do dr. António Vitorino enquanto comissário europeu, é o que está em balanço nestas eleições: a recessão profunda da economia do país, a quebra acentuada do investimento público (designadamente nas áreas do social, da educação, da investigação científica) e do privado, a destruição acelerada da capacidade produtiva do país em todos os sectores, desde a indústria transformadora às pescas, a quebra do produto, o agravamento do défice comercial e da dívida pública, isto é, o empobrecimento real do país e o aumento da distância relativamente aos níveis médios da Europa.
Três anos depois de governos de direita e de austeridade em nome da PEC, com mais ou menos "compensações sociais" (como parecem pretender agora os políticos e economistas neoliberais propensos à caridade), impõe-se uma conclusão: ao contrário do que proclama o consenso neoliberal e conservador, é a lógica do rigor orçamental do tipo PEC que leva ao "ciclo de empobrecimento" do país e não o contrário.
Sacrifícios por parte de quem é a outra face do mesmo balanço de quase três anos de governação PSD-PP. E a realidade é implacável: mais cerca de 200.000 desempregados (já ultrapassaram o meio milhão e só pouco mais de um quarto recebem subsídio de desemprego!), três anos consecutivos de quebra real dos salários, aumento do tempo de trabalho na função pública para efeitos de aposentação, um em cada três portugueses em regime de trabalho precário, a mais elevada taxa de pobreza da UE dos Quinze, o agravamento das distâncias entre ricos e pobres (20 por cento dos mais pobres não recebem senão 5 por cento do rendimento líquido nacional e 20 por cento dos mais ricos recebem 44,9 por cento), perto de 3000 empresas falidas só no ano passado. Tudo isto, acentue-se, para, no fim das contas, o défice ter voltado a aumentar em termos reais!
É um desastre social de grandes proporções - isto é, quem pagou os sacrifícios da política orçamental neoliberal foram as vítimas do costume: os mais pobres, os mais fracos económica e socialmente, a grande maioria dos trabalhadores por conta de outrem. Não há, não pode haver, mais furos para apertar neste cinto. O que o dr. Vitorino e o consenso conservador e neoliberal (atravessado por ligeiras divergências de pormenor) nos tentam apresentar como via única, obrigatória e incontornável do sacrifício é mais e pior do mesmo, suportado pelos mesmos: mais desemprego, mais precariedade, mais tempo de trabalho, mais privatização e degradação dos serviços públicos essenciais, menos salários e menos direitos. Como se fosse o destino fatal e inelutável do mundo do trabalho.
Acontece que não é. Urge, aliás, desde logo no debate eleitoral já em curso romper essa espécie de pensamento único com que a ideologia dominante dos principais partidos que oligarquizam o sistema político tenta viciar as regras desta discussão. Há, à esquerda, alternativas à lógica anti-social e neoliberal de saneamento financeiro. É possível e é urgente a adopção de estratégias de equilíbrio das contas públicas - em si mesmas indispensáveis - que compatibilizem esse objectivo com o desenvolvimento económico, a justiça social e a dignidade da vida. A lógica do PEC, com o limite do défice a 3 por cento (e chegou a prever-se 0 por cento para 2004), incapacita os países menos desenvolvidos, como o nosso, de fazer escolhas a prazo em termos de criação de riqueza e emprego: empurra-os mesmo, e permanentemente, para o défice permanente e crescente e para a cauda da Europa.
É certo que o euro exige uma disciplina orçamental comum, mas nada obriga, antes pelo contrário, a que ela se concretize através da lógica anti-social e recessiva da PEC, mais ou menos amenizada por umas "compensações" sociais.
Uma outra concepção de disciplina orçamental haveria de assentar num controlo indispensável do crescimento real da despesa pública corrente durante dois anos, em que as despesas na criação de capacidade produtiva, na qualificação do trabalho e na investigação e no serviço público de saúde não fossem incluídas no défice. Simultaneamente, rever-se-iam todas as contas públicas através de uma auditoria rigorosa a todos os serviços do Estado, para eliminar irracionalidades e desperdícios através da elaboração de um orçamento de base zero que defina precisamente as necessidades e despesas autorizadas nos vários departamentos e organismos: reduzindo despesas inúteis e reforçando capacidades e competências onde urge fazê-lo, como na saúde, na educação ou na protecção do ambiente.
Ao nível da receita era indispensável avançar sem demora com uma profunda reforma fiscal que simplifique o sistema tributário, combata com rigor a fraude e evasão fiscal generalizadas e, como opção muito clara, aumente a progressividade do imposto sobre o rendimento, baixando a taxa mais baixa e agravando a mais alta do IRS, concretamente de 10 e 42 por cento. Isso permitiria sanear as contas públicas e responder ao atraso, designadamente ao atraso social do país, criando emprego com direitos, reduzindo a pobreza, melhorando e defendendo os serviços públicos essenciais, preservando o ambiente, apostando decisivamente na qualificação e na investigação.
Distribuir-se-ia deste modo os sacrifícios com justiça - os que mais podem devem sacrificar-se mais -, dignificando a vida dos que menos podem e tudo têm suportado, abrindo oportunidades ao desenvolvimento sustentado e à modernização económica e social do país. É algo que exige uma rotura clara e inequívoca com o desastre anti-social das políticas da direita e uma governação que imponha um novo ciclo de políticas à esquerda. Precisamente aquilo que o engenheiro Sócrates, o dr. António Vitorino e as "novas fronteiras" do PS não parecem nada dispostos a fazer. A segunda via do guterrismo não parece ter nem sequer algumas veleidades da primeira. Decididamente, a alternativa não mora ali.
Fernando Rosas

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