quarta-feira, 26 de janeiro de 2005

ELEIÇÕES NO IRAQUE

É um tanto forçado considerar democráticas as eleições iraquianas de 30 deste mês, tendo em conta os exemplos das democracias conhecidas. Com os candidatos e os locais das mesas de voto só conhecidos publicamente nas vésperas do escrutínio, e sem campanha eleitoral no terreno (apenas são visíveis os programas difundidos pelos média), a insegurança bloqueou a prática das liberdades. Na área sunita, torna-se praticamente impossível votar, e em numerosas regiões xiitas existem perigos redobrados de se verificarem atentados terroristas, que, aliás, se intensificaram nos últimos dias.
Embora com um ambicioso plano de segurança anunciado pelo governo, apoiado pelos norte-americanos com forças móveis de intervenção com elevado grau de prontidão, as previsões não garantem muito sossego. Nenhum observador internacional credível arriscou actuar neste ambiente, para certificar as eleições, ao contrário do que se observou no Afeganistão e na Palestina. Nem a ONU, que se comprometeu a organizá-las (e as organizou logisticamente), nem a UE estão no terreno. Consideram a situação de insegurança incompatível com um sufrágio democrático normal.
Os sunitas, que apelaram ao boicote do acto e se preparam para o declarar ilegítimo, não terão representantes na assembleia eleita, que redigirá uma constituição e donde dimanará um governo. Tudo indica que baasistas e jihadistas, separada ou coordenadamente, continuarão a efectuar poderosos ataques, tentando colocar em causa a liderança xiita, numa raivosa guerra civil. É elucidativo o recente manifesto de Zarqawi, declarando guerra às eleições e aos "cães" xiitas.
O novo poder político precisará do apoio americano. Mas há quem admita que as milícias dos diferentes partidos xiitas, coligados na liderança, podem ter maior capacidade de enfrentar a resistência, do que as actuais forças iraquianas que os EUA tentam desesperadamente constituir, cuja reacção mais comum perante os ataques inimigos continua a ser, pura e simplesmente, a fuga. A verificar-se, esta capacidade estará estreitamente relacionada com o ódio religioso que separa as duas correntes islâmicas e o facto dos xiitas não desejarem perder a oportunidade de dominar o Iraque, acabando com a sua sujeição à minoria sunita, com tudo o que isso implicou de humilhação e recalcamentos acumulados.
Na área curda, a situação é mais segura. Os peshmerga, que já provaram a sua eficiência em combate, manterão em segurança o seu "Estado" quase independente. A posse de Kirkuk pelos curdos, cuja riqueza em petróleo torna apetecível, é o problema. Os sunitas, na resistência, os xiitas, no poder, e os turcos, receosos de que uma independência curda propiciada pelos rendimentos do crude acicate as tendências separatistas no seu Curdistão, tudo farão para o impedir.
A consequência mais importante de um hipotético equilíbrio, mesmo que precário, entre as forças governamentais e a resistência, traduzir-se-á na possibilidade de os Estados Unidos começarem a retirar algumas das suas unidades (preventivamente, os planos militares e financeiros manterão o nível de efectivos em 120.000, por dois anos), aliviando assim a pressão material e psicológica que um ritmo continuado e intenso de comissões em combate nelas provoca. O que se repercutirá muito favoravelmente na posição da população norte-americana perante a guerra. Não é provável que os xiitas tenham possibilidade, desde já, de dispensar apoio americano. Assim, pelo menos a curto prazo, os EUA continuariam com forças no Iraque, com a finalidade de intimidar os governos dos países vizinhos, e em condições de socorrer as forças governamentais, se necessário.
Este futuro, que alguns analistas favoráveis à Administração, mais do que prevêem, desejam, apresenta três obstáculos, que poderão, mais cedo ou mais tarde, alterar profundamente os dados em presença: 1) o desejo, repetidas vezes afirmado pelos líderes xiitas, de pôr fim à ocupação por forças estrangeiras; 2) a atitude do Irão relativamente ao Iraque, resultante, não só do que pretende para este país nos seus planos geopolíticos regionais, mas também da forma como quer (e pode) jogar estrategicamente com a única superpotência global; 3) a evolução do debate político interno nos EUA, em função das percepções dos americanos quanto ao Iraque.
Os principais serviços de informações norte-americanos dão como muito provável que o futuro governo iraquiano exija da América a marcação de um calendário para a retirada das forças, satisfazendo assim a vontade generalizada da população do país. Veremos o que pesará mais: a necessidade de satisfazer a vontade dos xiitas, dos quais se destaca Moqtada al-Sadr (já a demarcar-se de Sistani), ou o perigo dos ataques da resistência baasista e jihadista, cujo grau de intensidade poderá tornar as forças americanas indispensáveis. Na dúvida, depois das eleições acentuar-se-á a "iraquização" da guerra, e já circulam memorandos reservados, nos gabinetes governamentais de Washington, Londres e Bagdad, em que se planeia uma saída rápida das forças do Iraque.
Em relação ao comportamento do Irão, podemos alinhar três factores: comportamento dos EUA e de Israel; capacidade da Europa influenciar o aliado americano; e objectivos estratégicos centrais do Irão na área do Golfo, enquadrados nos seus desígnios nacionais.
Parece incontroverso que o Irão deseja reservar a capacidade de produzir combustível para armas nucleares, dependendo o momento da sua concretização das pressões a que for submetido, das contrapartidas que obtiver, e, especialmente, da vontade de o fazer. Isto constitui um perigo sério para toda a região, acima de tudo para Israel, e pode ter consequências extremamente negativas para o mundo desenvolvido, dada a concentração de reservas de combustíveis fósseis na área.
Os EUA exigem a destruição da capacidade nuclear. Os mais importantes países europeus têm conseguido, diplomaticamente, parar a produção de urânio enriquecido. Para já, a superpotência contentar-se-á com esta meia solução, uma vez que os seus recursos militares estão empenhados no Iraque. Não é certo que esta seja a posição de Israel, que sente a sua própria existência em perigo. Até que ponto os americanos querem ou podem controlar os israelitas, depende do resultado das fortes pressões de alguns neoconservadores, ainda influentes na Administração, ou da avaliação que esta efectuar sobre as vantagens e inconvenientes de uma solução combinada, em que operações cobertas americanas se articulem com ataques visíveis de Israel. Esta questão revela ainda o interesse do Irão em controlar o futuro Iraque: constituindo um poderoso bloco xiita no Golfo capaz de se afirmar perante os países sunitas da região; conseguindo melhores condições para se opor aos objectivos da superpotência; mas não descartando a hipótese de forças americanas ficarem no Iraque, suficientemente "ocupadas" para reduzir as possibilidades dos EUA intervirem militarmente no Irão. Até porque, paradoxalmente, esta presença, se é ameaça para o Irão, também o é para os países sunitas, pelo que um adequado jogo de cintura pode favorecer o bloco xiita.
A atitude americana relativamente ao Iraque decorre dos diversos factores enumerados, e não ignora os custos económicos, humanos e psicológicos da operação. O intenso e alargado debate em curso, na imprensa (generalista e da especialidade), nos diversos "think-thanks", no Congresso, no Departamento de Estado, e até no Pentágono e na Casa Branca, sobre a necessidade de sair rapidamente do Iraque, demonstra bem como esta realidade já é bem viva na sociedade americana.
Em conclusão. A manutenção da data das eleições foi a melhor opção. Independentemente das suas consequências negativas, que podem ser muitas e graves, o seu adiamento seria uma vitória da resistência, que surgiria como se o tivesse "forçado", abre janelas de oportunidade vantajosas para os EUA quanto à permanência de algumas forças no Iraque, e, principalmente, permite-lhes uma porta de saída, pois poderá argumentar que entrega o poder a um governo "democraticamente" eleito, tal como prometera, se isto se impuser.
J.L.S.

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