terça-feira, 25 de janeiro de 2005

MUITAS IDEIAS, POUCA CLAREZA


1. O Partido Socialista tem insistido, e bem, na questão da confiança como uma componente fundamental para vencer a crise que o país atravessa. A restauração da confiança dos cidadãos no Estado e nos agentes políticos é, porventura, o aspecto mais relevante desta questão, mesmo que não seja o único. O critério da confiança é, pois, um bom ponto de partida para avaliar o programa, longo de 162 páginas, que o PS divulgou no sábado passado.
Para quem acompanhou os debates organizados no âmbito do Fórum Novas Fronteiras - sobretudo os que decorreram em torno da nova estratégia de desenvolvimento -, a primeira observação a fazer é que o programa está longe de reflectir a sua riqueza.
Há duas justificações possíveis. A necessidade de sintetizar levou a que se perdessem pelo caminho muitas das propostas concretas que podiam "iluminar" o sentido das opções socialistas, acabando por diluir algumas rupturas necessárias para resolver os principais bloqueios ao desenvolvimento do país. A outra, menos lisonjeira, pode significar apenas que a direcção socialista resolveu generalizar o suficiente para não ter de confrontar sectores importantes do eleitorado com opções que põem os seus interesses em causa.

2. Diz o programa na sua introdução: "É preciso dizer a verdade aos portugueses". Um bom ponto de partida que esbarra imediatamente com um problema. Essa verdade - traduzida, aliás, nalguns quadros comparativos que vão pontuando o programa, bastante eloquentes e deprimentes - acaba por resumir-se à crítica à governação do país desde 2002. É sabido que muitos dos problemas vêm de trás, que muitos dos bloqueios, normalmente devidos à força dos interesses instalados, se têm cristalizado ao longo de várias legislaturas, seja o PS ou o PSD a governar, que muitos dos problemas são mais profundos do que os desvarios de Santana ou eventuais opções erradas de Barroso.
Quando as Novas Fronteiras resolveram introduzir nos seus debates a análise do "milagre irlandês", demonstrando que ele resultou de opções difíceis, muitas delas feitas nos anos 80 e 90, que Portugal sistematicamente adiou, não vale a pena depois insistir muito na culpa do último Governo.
Dir-se-á que são constrangimentos eleitorais. Mas a questão da confiança passa exactamente por aí. Por avaliar se é ou não possível uma atitude diferente dos responsáveis políticos, sobretudo daqueles que vão com toda a probabilidade governar o país nos próximos quatro anos. E passa também pela credibilidade das propostas. E estas passam, não apenas pela definição de objectivos, mesmo que devidamente quantificados (como faz o programa socialista), mas pela forma prática de os alcançar.
Algumas ideias concretas sobre o "modus faciendi" ajudariam bastante. Mas aí o programa é vago.

3. O espírito que transparece da sua leitura não é o de que vamos ter de enfrentar uma situação muito difícil - não apenas ou particularmente no curto prazo, mas sobretudo no longo prazo -, que exigiria algumas rupturas dolorosas. Pelo contrário, tudo parece ao alcance da mão.
As grandes orientações para o desenvolvimento estão lá. É preciso canalizar recursos para o desenvolvimento científico e tecnológico de forma a duplicar em quatro anos a percentagem do PIB investida pelo Estado (0,55 para 1%) e triplicar a das empresas (0,26% actualmente); é preciso agir sobre o tecido empresarial apoiando e incentivando a inovação; é preciso agir sobre a administração pública de forma a facilitar a vida dos cidadãos e das empresas (o cartão único, o balcão único ou a redução do processo de criação de empresas para um dia), etc., etc..
Há também algumas mudanças de orientação estratégica importantes, mesmo em relação aos anteriores governos de Guterres. Apenas dois exemplos. Dar prioridade à captação de investimento estrangeiro de empresas que não estejam ainda no mercado europeu, seguindo, de resto, o exemplo irlandês (em relação aos EUA), para que país possa ser uma plataforma de penetração competitiva. Ou intervir no tecido económico através de normas que criam novos mercados, em vez de despejar subsídios sobre os problemas.
Esta última mudança de estratégia, central para alterar o modelo de desenvolvimento do país, acaba por não ressaltar do programa com a mesma clareza que marcou os debates das Novas Fronteiras.
Apenas um exemplos entre muitos, retirado desses debates. Com uma simples lei, o Governo pode tornar obrigatórias infra-estruturas para a utilização de energia solar (de que o país dispõe em abundância gratuitamente) em todas as novas construções, criando assim um novo mercado para uma tecnologia inovadora que o país já possui. Em suma, novos mercados, novas indústrias (de maior valor acrescentado), novos empregos, novas vantagens para os consumidores sem gastar um tostão ao Estado.
A obrigatoriedade de construção anti-sísmica nas casas novas ou em reabilitação, de acordo com tecnologia que o país também já desenvolveu, a "penalização fiscal e administrativa" dos proprietários de imóveis ou fracções devolutos (podia fazer-se muito simplesmente o que já se fez noutros países europeus, que é confiscar as casas devolutas) são outras tantas medidas de natureza emblemática (a primeira não está no programa, mas foi referida nos debates, a segunda está, ainda que um tanto a medo) que ajudam mais a sinalizar uma mudança radical de políticas do que muitas páginas de texto. Talvez dissessem mais aos portugueses sobre o que é preciso fazer do que o anúncio de um "plano tecnológico" que, até agora, a opinião pública ainda não conseguiu entender cabalmente o que significa.

4. Noutra reforma essencial, da Função Pública, fala-se em premiar o mérito, nunca se fala em penalizar o demérito. É possível conter a despesa com pessoal (que é hoje a mais elevada da Europa em termos de percentagem do PIB) sem eliminar a garantia de progressão automática na carreira? Várias vozes autorizadas (lembro-me da de Silva Lopes) já disseram que não. Seria, porventura uma medida mais eficaz e mais justa do que o congelamento puro e simples dos salários.
No ensino, o PS elege o combate ao insucesso escolar como a sua primeira prioridade. Basta olhar para as estatísticas comparadas da UE para ver que é esse, indiscutivelmente, o nosso principal bloqueio no caminho de uma qualificação dos portugueses que se vá aproximando dos níveis europeus. O programa fixa objectivos ambiciosos, quantitativos e qualitativos. Não diz como os vai conseguir nem como vai alterar um estado de coisas que se resume assim: Portugal gasta em educação valores relativos que estão acima da média europeia; paga aos seus professores salários que estão acima da média europeia; tem um número de alunos por classe inferior à média europeia; os resultados que obtém deixam-no sistemática e permanentemente abaixo da média europeia.
Marçal Grilo disse em meia dúzia de palavras o que seria preciso fazer e que é, afinal, o que a maioria dos nossos parceiros europeus fazem (ver entrevista ao PÚBLICO e à Rádio Renascença publicada ontem). Mas sobre isto nem uma palavra no programa do PS.

5. Dito de outro modo, o programa socialista tem o mérito da definição de objectivos precisos, quantificados e calendarizados (em vivo contraste, aliás, com o método seguido para a elaboração do programa do PSD, mais género texto corrido). Diz pouco sobre as exigências da sua realização, ou seja, evita confrontar interesses instalados e dizer onde será inevitável fazer rupturas que afectarão inexoravelmente esses interesses.

Vai ser preciso muito mais para convencer os portugueses. Se José Sócrates continuar a dizer algumas banalidades simpáticas (como fez domingo passado no Jornal da Noite da SIC) ou a "gerir o silêncio", contando com a ausência de alternativas, o mais provável é que a abstenção acabe por ser a grande vitoriosa. Basta olhar à volta para perceber que é assim. Seria uma desgraça, ainda por cima evitável. Bastava alguma coragem.
Teresa de Sousa

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1 Comments:

At 25 de janeiro de 2005 às 23:08, Anonymous Anónimo said...

Pois é, vira o disco e toca ao mesmo.
A música que vem aí já é conhecida.
ET

 

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