segunda-feira, 10 de janeiro de 2005

JÁ ESTÁ


Esta semana, o Parlamento foi nomeado. Três cavalheiros, Santana, Sócrates e Portas, nomearam pessoalmente cerca de 80 deputados. Visto de outro modo, mais ou menos 5.000 pessoas dos cinco partidos, reunidas em comissões locais ou nacionais, nomearam 190 deputados, ou seja, a quase totalidade do Parlamento que entra em funções dentro de seis semanas. Falta agora os restantes oito milhões de eleitores designarem os quarenta deputados que ainda se não conhecem. Não serão eleitos pessoalmente, poucos sabem quem são, vêm em geral na cauda do grupo dos "elegíveis", em "zonas cinzentas" das listas blindadas. É verdade que são esses quarenta que fazem a diferença, isto é, que vão decidir quem tem maioria e quem faz governo. Mas virão simplesmente no furgão dos partidos, não serão eles os eleitos. Enquanto estes têm de esperar umas semanas, os outros já podem tomar disposições, arranjar casa em Lisboa, tratar da educação dos filhos e organizar as suas vidas.

AO ELEITORADO, OS CANDIDATOS NADA têm a provar. Nem competências a exibir. Nem confiança política a demonstrar. Muito menos responsabilidade pessoal. Nada! Pelo contrário, é nos circuitos estreitos dos partidos que têm de exibir talentos. Agradar aos chefes. Saber sempre qual é a linha justa, isto é, reconhecer quem manda. Negociar com os autarcas. Conquistar os funcionários. Arranjar dinheiro para o partido. Lubrificar o aparelho. E não fazer ondas.

O FABRICO DAS LISTAS DITAS DE CANDIDATOS, mas na verdade de nomeados, é um exercício agitado. Cada vez mais controverso. E, este ano, patético, a roçar o ridículo. Os episódios à volta de Pôncio Monteiro e Paulo Pedroso foram edificantes. O do cartaz do PSD provocou gargalhadas através do país. As discussões sobre as mulheres e os jovens confrangedoras. A entrada, à última hora, de supranumerários e a saída, extemporânea, de descontentes, foram anedotas. O afastamento rancoroso de gente como Medeiros Ferreira, Leonor Beleza, Ana Benavente, Helena Roseta, Pedro Roseta, Manuela Ferreira Leite e outros diz muito sobre a capacidade intelectual das direcções políticas. A colocação em lugar elegível, ou antes, a cooptação de obscura gente das vielas partidárias e das alfurjas dos negócios autárquicos diz tudo sobre a capacidade política da elite partidária. É verdade que, nesta Assembleia nomeada, há gente séria e competente. Conto pelo menos dúzia e meia de políticos responsáveis e experientes. Mas o problema não é esse. É o dos outros. É o da ausência de responsabilidade individual. E sobretudo o de uma farsa eleitoral em que mais de 80 por cento dos deputados são cooptados. De nenhum nomeado agora ou eleito mais tarde, nem de nenhum afastado agora ou não eleito depois, será possível dizer: "foi o povo que o elegeu" ou "foi o eleitorado que o recusou". Não. Apenas se poderá dizer: foi o partido que o pôs lá. Ou tirou.

OS SISTEMAS FECHADOS SÃO ASSIM. IMPEDEM que os interesses gerais da população se possam exprimir. Perseguem os que têm veleidades individuais e procuram distinguir-se. Servem para proteger castas e monopólios. Recusam a competição. O sistema eleitoral português é exactamente isso. Os independentes não podem concorrer. Cerca de oito milhões de portugueses não têm o direito de se candidatarem e de serem eleitos. O nome, a experiência e a responsabilidade dos candidatos são absolutamente indiferentes, apenas interessam a lista colectiva e o chefe do partido. As bases dos partidos não escolhem nada, nem ninguém, sendo os futuros deputados seleccionados pelos chefes, seus acólitos e alguns senhores do aparelho. O eleitorado não escolhe entre candidatos, escolhe um partido. Os nomeados e os eleitos podem ser substituídos em qualquer altura, naquela que é uma das maiores perversões do sistema político português.

HÁ EVIDENTEMENTE RISCOS NA MUDANÇA de sistema eleitoral e na adopção de regras que consagrem os círculos uninominais, a responsabilidade individual, a abertura do processo a todos os cidadãos e a interdição de substituições administrativas dos eleitos. Podem criar-se fenómenos de instabilidade. Os pequenos partidos correm riscos de extinção. O caciquismo local tem novas oportunidades. Mas são apenas riscos, como tudo na vida, não certezas. Nos muitos países em que vigoram sistemas uninominais, nada de grave aconteceu. Além de que existem mecanismos conhecidos para minorar os eventuais defeitos dessas regras. De qualquer maneira, já conhecemos os riscos, ou antes, os resultados efectivos do sistema de colectivismo partidário proporcional: estão à vista! Um Parlamento desprestigiado. Deputados sem competências nem responsabilidades. Uma agremiação de nomeados dependentes de meia dúzia de chefes partidários ou do governo do dia.

NUM SISTEMA UNINOMINAL, VALE A PENA sublinhar três vantagens. A selecção de candidatos é em si competitiva. A eleição é efectiva, ninguém tendo a certeza de que já está eleito. O deputado representa todos os eleitores, não apenas o seu partido, é responsável pelo que faz e é a ele que os eleitores se dirigem.

Quanto às candidaturas independentes, estas não servem para criar um Parlamento sem partidos. Na verdade, sem estes, uma assembleia legislativa corre o risco de ficar dependente do governo e da corrupção, ou de se tornar imprevisível e fonte de perturbação. Na verdade, a possibilidade de candidaturas independentes tem finalidades superiores. Por um lado, torna efectivo um direito fundamental, o de ser eleito. Por outro, é uma perigo para os "rackets" partidários. Ameaçados, nos círculos locais, por independentes (incluindo, pois claro, caciques, dirigentes do futebol, fadistas, profissionais do alterne, empresários paralelos, líderes religiosos e outros), os partidos teriam de melhorar os seus critérios de selecção, abrir a competição, escolher os melhores e convidar os mais competentes.

HÁ ESPERANÇA NUMA MUDANÇA DE SISTEMA? É difícil dizer. Tem havido progressos. Há vinte anos, quase ninguém era favorável ao sistema uninominal. Hoje, mesmo nos dois principais partidos, já há quem se interrogue e até quem, perante o absurdo vigente, se tenha convertido. Mas não é tarefa fácil. A classe política é terrivelmente conservadora e reage muito mal contra qualquer tentativa de alterar as regras que lhe deram nascimento. Mesmo quando se trata de problemas sérios, de soluções evidentes e de reformas sensatas. Já foi assim em tantos casos! Como as revisões da Constituição, por exemplo. As privatizações. As propinas. O referendo. O aborto. Pena é que se perde tempo. Talvez a classe política perceba que ela própria corre o risco de se perder...

ANTÓNIO BARRETO

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