quarta-feira, 2 de fevereiro de 2005

APRENDENDO, PARA UM PAÍS EM ESTADO DE NECESSIDADE, AS BOAS MANEIRAS COM O SR. JOÃO FELIX (VIA RAMALHO ORTIGÃO) - 2



Tratando do modo de proceder à mesa do jantar faz o Sr. João Félix Pereira duas observações muitíssimo sábias.

A primeira é que não tomemos pitada de rapé pelo meio das coisas que estivermos comendo.

Compreende-se todo o alcance desta advertência, reparando-se, por um só momento que seja, nos equívocos a que podia dar origem a concorrência do rapé com os acepipes, resultando por exemplo lançar-se a pitada sobre a salada e meter-se no nariz beterrabas!

A segunda advertência é que nunca metamos bocado nenhum na boca enquanto não tivermos engolido o bocado antecedente. Ninguém imagina sem o ter experimentado quanto importa ser cauteloso na matéria deste capítulo! Metendo na boca os bocados sem tomarmos a deliberação de os irmos sucessivamente engolindo, chegamos por espaço de tempos a uma indefinida aglomeração de bocados dentro da nossa boca. As pessoas que insistem, por tenaz grosseria, em não engolirem os bocados que vão metendo consecutivamente na boca caem, ao cabo de alguns dias dessa terrível incúria, na dura necessidade de depositarem os bocados antigos que tenham entre a maxila superior e a maxila inferior, a fim de receberem bocados novos. Quando isto haja de se fazer convém que se tenha em vista o que o Sr. João Félix discretamente consigna com respeito aos escarros, isto é: que tais esvaziamentos se façam o menos que ser possa sobre os penteados das pessoas que nos cerquem, e muito mais particularmente quando estas tenham tido a precaução de nos advertir de que tais depósitos feitos sobre as suas cabeças lhes inspirem ideias asquerosas. Neste caso, toda a insistência da nossa parte correria o perigo de ser taxada de menos cortês.

Depois do que fica exposto nada mais nos resta para aprender do modo como nos devemos apresentar na sociedade, a não ser o que o mesmo Sr. João Félix nos determina com relação ao nosso corpo, e isto importa muito que se saiba de cor. Vem a ser:

"Conservemos direito o nosso corpo, qualquer que seja a sua postura, em pé, sentado, de joelhos: não inclinemos a cabeça, já para um, já para outro lado: se nos for preciso fazê-lo, façamo-lo com toda a gravidade."

Seria muito para desejar que no grémio das sociedades cultas se conhecesse que tal doutrina começava a frutificar, ouvindo-se de quando em quando as seguintes vozes:

"Meus senhores e minhas senhoras, permitam-me vossas senhorias ou vossas excelências (segundo o tratamento que lhes convier pelas disposições a tal respeito do capítulo VII do grande livro do Sr. João Félix Pereira sobre a civilidade) que eu lhes exponha um caso. Achando-me desde que entrei nesta sala com a cabeça voltada a N.Nº. - ponto A - e acabando de ser chamado a N - ponto B - pela ilustríssima e excelentíssima senhora D. Joaquina, espero que a sociedade não tome por desfeita o excesso aparentemente inexplicável em que vou romper inclinando levemente a cabeça do ponto A para o ponto B."

E só depois de havida a competente vénia dos circunstantes, o suplicante se permita inclinar-se levemente a D. Joaquina.

É o que pedem a morigeração e a decência.




J.P.P.