sexta-feira, 11 de fevereiro de 2005

TRUQUES VELHOS E GASTOS




Numa entrevista saída esta semana no suplemento económico do "Diário de Notícias", Octávio Teixeira afirmava que uma das razões do atraso económico do país reside directamente na falta de capacidade de gestão e de risco dos empresários portugueses. E lembrava que, quando tanto se fala em aumentar a competitividade, há a tendência de os empresários reduzirem isso a uma política que se limite a congelar salários e aumentar a produção laboral. Como se a eles lhes coubesse parte nenhuma nesse esforço. E dá como exemplo da tentação dos negócios sem risco a saúde. A razão pela qual há tantos interessados em explorar hospitais públicos é porque, segundo o economista, se trata de um negócio de lucro garantido e sem risco algum: enquanto houver doentes, haverá sempre clientes, e enquanto o Estado garantir os pagamentos, haverá sempre lucros. Negócios sem risco ou sob a protecção do Estado é uma velha apetência do nosso empresariado, desde os tempos da Lei do Condicionamento Industrial e do mercado garantido das antigas colónias (hoje transplantado para os negócios com os PALOP, feitos sob a protecção da garantia de pagamento do Estado português).

Um bom exemplo de negócio de lucro garantido, envolvendo o favor do Estado, é a construção em zonas de paisagem protegida. A simplicidade do negócio é quase chocante: estando a construção vedada por lei, os primeiros que conseguirem ou afastar a lei, ou obter um direito de excepção (chama-se "projecto estruturante" a batota legal inventada para tal), obviamente vão poder vender a um preço muito superior aos que constroem e vendem em zonas já saturadas - exemplo eloquente é o de uma urbanização há meses publicitada nos jornais e apresentada como "o último paraíso protegido na Ria Formosa". É claro que só está "protegido" até ser aprovada a primeira excepção: uma vez aberta a porta, rapidamente o "paraíso " terá de se mudar para outras paragens e outras excepções. Várias coisas caracterizam a forma como este tipo de negócio é passado à opinião pública. Primeiro, a de que se trata de um dos tais "projectos estruturantes" para a economia portuguesa, invariavelmente envolvendo milhões largos de investimento e criando sempre, no papel, "milhares de postos de trabalho". Depois, a de que se trata, invariavelmente, de "projectos sustentáveis" e "amigos do ambiente", inevitavelmente acompanhados de "marinas integradas na paisagem" ou "golfes ecológicos". Depois, vêm sempre com a aprovação, jamais recusada, do Turismo, e o apoio dos autarcas - de todas as cores políticas e arregimentados por uma irresponsável Lei de Finanças Locais, que lhes garante tanto mais dinheiro quanto mais for a construção aprovada. Ultimamente, como sucede na ria de Alvor, os investimentos vêm também acompanhados da chancela "ambientalista" de antigos militantes da defesa da natureza e que a crise, certamente, fez saltar para o lado oposto. E, enfim, para terminar, todo o enredo é preparado publicamente através de artigos saídos na imprensa e onde os "investidores" são apresentados como patriotas ao serviço da criação de riqueza para o país, mas que, desgraçadamente, se vêem travados por leis "obsoletas" e "desactualizadas", que são um travão ao "desenvolvimento" (Luís Nobre Guedes travou, por enquanto, a proposta que lhe foi apresentada de transferir as competências sobre a REN, Reserva Ecológica Nacional, e RAN, Reserva Agrícola Nacional, para as autarquias, ou seja, a de entregar o ouro ao bandido). Dou dois exemplos deste tipo de manobras para enganar tolos, devidamente publicitadas em dois jornais de referência portugueses.

O primeiro foi um artigo publicado no PÚBLICO em 3 de Janeiro passado, sob o título "Investidor suíço desespera para investir em Grândola", da autoria de uma correspondente local. Todo o texto era uma apologética defesa de um projecto de urbanização para 200 hectares em cima das dunas de Melides, "envolvendo 1200 postos de trabalho directos" e consistindo em 204 moradias, 862 apartamentos e um golfe, "sem que as construções ultrapassem os oito metros de altura, respeitando a traça alentejana". Segundo a correspondente, os coitados dos suíços desesperam há anos para verem aprovado um projecto tão enriquecedor para a região e o país e apoiado pelo respectivo autarca, mas sempre deparando com a obstinada oposição do Instituto de Conservação da Natureza. Qual é então o problema deste magnífico projecto? Apenas isto: está em zona REN e Natura-2000 e viola o Protali, Plano do Litoral Alentejano. Os suíços, dizia o seu representante português, não compreendem tanta demora e tanto obstáculo. Pois, digo eu, se fosse na Suíça, eles compreendiam tão bem que nem lhes passava pela cabeça apresentar o projecto. Mas aqui não é suposto ser terceiro mundo, onde os planos de ordenamento e as leis de protecção são sempre susceptíveis de serem contornados?

O segundo exemplo vinha no "Diário de Notícias" desta semana. Mais uma correspondente local, mais um texto apologético de vários projectos urbanísticos e a mesma lamentação em título: "Planos do Alqueva atrasam investimento". E, em subtítulo: ""Autarcas alentejanos receiam desilusão dos investidores".

Qual é problema destes "desiludidos"? É este: o Alqueva, como se recordarão, foi o maior investimento público de sempre do Estado português, vendido a Bruxelas e aos contribuintes portugueses em nome de três objectivos: produzir energia eléctrica, abastecer um perímetro de rega para a agricultura de 110.000 hectares e constituir uma reserva estratégica de água para consumo das populações, em anos de seca, como este que estamos a viver. A componente eléctrica foi sendo publicamente desvalorizada aos poucos; o perímetro de rega está em construção lenta, mas de todos os lados, agricultores e autarcas, são inúmeras as vozes que dizem que a agricultura não tem futuro e que quem percebe de regadio são os espanhóis (por alguma obscura razão, os alentejanos não terão capacidade para tal); e a reserva de água para consumo está por enquanto dependente da autoridade para pôr fim às indústrias que vêem na barragem um vazadouro de esgotos natural. O que resta, então, de seguro? A construção turística, pois claro. Urbanizações, golfes e marinas - o habitual.

É evidente que o Alqueva pode e deve ter capacidade de construção turística. Mas também é evidente que não pode transformar-se na nova zona do fartar-vilanagem dos "investidores", como o sr. Fernando Barata, que, em tempos, ameaçou ir fazer para o Alqueva o mesmo que fez em Albufeira e arredores. Consciente disso e obrigado a honrar os compromissos assumidos pelo Estado e que justificaram este imenso esforço das finanças públicas, o Governo de Guterres definiu desde logo as regras qualitativas e quantitativas da construção possível, através do Plano de Ordenamento das Albufeiras de Alqueva e Pedrógão. Na altura, com a barragem acabada de construir e ainda com os grandes "objectivos nacionais" da sua construção bem presentes no espírito de todos, ninguém se atreveu a contestar essas regras. Mas agora, adoptando a tradicional política dos pequenos passos, eis que os "investidores" se mostram desiludidos e os autarcas preocupados com a sua desilusão. E por que estão eles desiludidos? Entre outras coisas, porque o Plano de Ordenamento não lhes permite - como já sucedia em qualquer outra barragem do país - a construção a menos de 500 metros das margens. Ou porque a necessidade de preservar a água para consumo não aconselha a exploração de desportos náuticos motorizados, previstos para as várias marinas projectadas e, em particular, no grande "projecto Roquete", que supostamente envolverá 600 milhões de investimento e 2000 postos de trabalho - o clássico "argumento" decisivo. E, por isso, todos eles - autarcas e investidores e mesmo pretensos agricultores que foram já sumptuosamente indemnizados com a expropriação dos seus terrenos, onde até aí nada faziam - clamam já pela revisão do Plano de Ordenamento sob pena, como diz um autarca, de "toda esta água não trazer desenvolvimento".

Ora, é preciso que não haja confusão nos espíritos: estes investidores potenciais só o são porque o esforço dos contribuintes portugueses lhes permitiu receber, de mão beijada, um imenso lago onde é possível construir com regras e com qualidade e lucro garantidos. Mas, mesmo assim, não lhes chega: estão habituados a tudo exigir e correrem risco nenhum. Como se o Alqueva lhes pertencesse e não ao país todo, como se fossem eles que o fizeram e pagaram

Miguel Sousa Tavares

1 Comments:

At 14 de fevereiro de 2005 às 17:11, Anonymous Anónimo said...

É assim que o concelho de Ponte de Sor se vai desenvolvendo, com interesses imobiliários a dominarem as decisões da autarquia.
Assim se vê o grande trabalho do PS, à frente do concelho de Ponte de Sor.
É só desenvolvimento insustentável.

 

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