sexta-feira, 11 de março de 2005

ONDE A LEI NÃO VALE


Um dos indicadores determinantes sobre o funcionamento de um Estado de direito democrático é o ambiente vivido nas instalações policiais.
Nós podemos ter liberdade política, liberdade de imprensa, liberdade de greve e tudo o resto, mas se, dentro das instalações policiais, os direitos individuais cessam perante a autoridade policial, então, de facto, temos um Estado de direito que só funciona em alguns casos e uma democracia que existe a nível da superestrutura constitucional, mas já não existe no mundo de proximidade onde a autoridade a quem delegámos o poder de vigiar a aplicação da lei se reserva o direito de o fazer segundo regras próprios, à revelia do que o poder eleito estabeleceu.
Quando emergimos de 50 anos de ditadura, os que não sabiam ainda ou não queriam saber tomaram então conhecimento dos abusos policias cometidos em nome da "pátria", da "segurança nacional" ou outras balelas que tais. Mas se, em 50 anos de ditadura se contam pelos dedos de uma mão os que morreram nas esquadras da PIDE ou assassinados na rua por esta, desgraçadamente, em 30 anos de democracia, morreram muitos mais nas esquadras da polícia ou vítimas das balas perdidas ou "disparadas para o ar" da polícia.
Como e por que chegámos aqui e por que continuamos aqui, apesar de se ter revisto toda a formação das polícias civis e apesar de fazer enquadrar por magistrados as polícias de investigação, é uma longa história de sucessivas revisões da lei processual, sempre a favor do facilitismo da investigação, e uma longa história de demissões na luta contra os abusos policiais, quer por parte do poder político, quer por parte do poder judicial.
Uns e outros, uma e outra coisa, foram consentindo que aos poucos se reinstalasse a velha mentalidade de que não há nada a fazer nesta matéria, pois que faz parte da natureza policial, se não mesmo da sua eficácia, o abuso sempre que necessário e possível e a impunidade perante o abuso, como preço a pagar para obter resultados e conseguir a tranquilidade corporativa das forças policiais. Este raciocínio não apenas é ilegítimo e perigoso, mas muitas vezes também contraproducente, quanto aos resultados.
Tomemos o caso de Leonor Cipriano, a mãe algarvia suspeita de ter assassinado a própria filha, cujo corpo nunca apareceu para confirmar, sequer, a sua morte. Durante meses e meses, quer Leonor, quer o seu irmão - suspeito alternativo do mesmo crime - têm estado detidos às ordens das autoridades, Ministério Público e Polícia Judiciária, que não conseguiram até à data nem levá-los a confessar o crime, nem estar perto de esclarecer se crime houve, de facto, e quem o cometeu. Agora, e graças à denúncia corajosa da directora da prisão, apareceram a público fotos terríveis de Leonor Cipriano, revelando na cara aquilo que para qualquer um de nós são sinais evidentes de tortura. Tortura, digo bem - como nos tempos da PIDE. Para explicar aquilo, a PJ forneceu já uma resposta, antes mesmo de concluir o inquérito anunciado - o que também é habitual. Segundo a PJ, a detida ter-se-ia atirado por umas escadas abaixo, depois de uma sessão nocturna de "interrogatório informal", conduzido pelos agentes. Ficámos assim a saber que a PJ tem o privilégio, que não conheço da lei, de interrogar presos a meio da noite e sem a presença de juiz, nem advogado, nem escrivão, e que tais interrogatórios são de tal forma simpáticos que há suspeitos que preferem atirar-se pelas escadas abaixo do que terem de voltar a passar pelo mesmo. E esta é a versão policial e benévola daquilo que terá sucedido - acredite quem quiser. Eu não acredito: para mim, aquela mulher foi torturada selvaticamente. E foi torturada porque - e aqui entra o lado contraproducente deste episódio -, passadas décadas de vivência democrática e de avanços tecnológicos que facilitam a investigação dos crimes, a nossa investigação policial, como nos bons velhos tempos, continua a privilegiar, e em muitos casos a contentar-se, primeiro que tudo, com a confissão do suspeito. Confessado o crime, encerra-se o caso, remetendo-o a tribunal, sem necessidade de mais esforços nem investigação. Não admira depois que, muitas vezes e quando os juízes se convencem que a confissão foi arrancada ilegitimamente, se vejam forçados a absolver os réus, porque nada mais há nos autos que os possa incriminar. Ora, se a confissão é o objectivo primeiro e final da investigação, é inevitável que, quando o suspeito é pobre, não dispõe de advogado de peso e se encontra jurídica e socialmente desprotegido, surja a tentação de o forçar a confessar o crime real ou hipotético, a bem ou a mal.
Tomemos outro caso, ocorrido sábado passado, em Lagos. Um instrutor de surf está num bar a festejar os anos de um amigo. Desentende-se com um graduado da PSP, que está à paisana. Este chama reforços à esquadra e lança um gás que faz evacuar o bar. Cá fora e segundo o relato de testemunhas, seis ou sete polícias caem em cima do civil e moem-no de pancada, à vista de todos. Depois, levam-no para a esquadra, de onde, às quatro da manhã, ele telefona à irmã a pedir que lhe arranje um advogado. Mas já não vai a tempo: uma hora depois é a esquadra que telefona à irmã a comunicar-lhe que ele está morto. Explicação da PSP, antes da conclusão do inquérito: enforcou-se na cela, usando as próprias calças. É uma explicação também habitual: quando alguém morre numa cela da PSP, jamais esta reconhece que morreu em consequência de maus tratos sofridos ou anuncia que só terá conclusões depois do inquérito. Invariavelmente, aparece logo uma explicação oficiosa, segundo a qual o preso morreu suicidando-se, ou porque se atirou de cabeça contra a parede ou porque se enforcou. Seria curioso saber se a esquadra da PSP de Lagos tem um gancho no tecto para que os presos se possam enforcar livremente. Assim como seria curioso saber por que é que alguém que telefona a um familiar a pedir um advogado porque está preso logo depois decide renunciar ao advogado e à própria vida. Mas o mais importante era explicarem-nos o que se passa nas esquadras da PSP que leva a que, com tanta frequência, os detidos (às vezes, por simples arruaças nocturnas) se queiram suicidar. Não deveria ser uma esquadra de polícia o local por excelência onde vigora a lei e a segurança?
Há anos atrás, durante as comemorações do Ano Novo, em Lisboa, uma senhora foi presa por alegados desacatos na via pública. Levada para a esquadra da PSP, identificou-se como juíza, embora não tivesse a identificação consigo. Segundo o seu relato, o graduado de serviço ter-lhe-á respondido: "Juízes como-os ao pequeno-almoço!" E, de passagem, ter-lhe-á dado um encontrão. A senhora fez queixa e o caso subiu até ao Supremo Tribunal de Justiça. Azar do polícia: a senhora era mesmo juíza e os conselheiros ficaram escandalizados com o seu relato. Aplicaram ao polícia pena de prisão maior, dizendo que aquela sentença se queria exemplar, pois que, cito de cor: "Se isto se passa nas esquadras de polícia com uma juíza, o que não se passará com simples cidadãos?"
Pois é, aí é que bate o ponto. "Simples cidadãos" não têm direito a uma justiça de simpatia e compreensão corporativa, como tem um juiz. Simples cidadãos que, para mais, não disponham de meios financeiros para se defenderem a sério esbarram com a falsificação dos factos praticada pela própria polícia, com o encobrimento dos chefes, com o silêncio cauteloso do ministro e, no limite e se conseguem chegar a tribunal denunciando o que sofreram, com a benevolência dos juízes para com a polícia.
E, como sucede em todos os meios, a impunidade para com os maus compromete e desmotiva os bons. Quantas vezes não terão os bons polícias, que são sem dúvida a maioria, de calar-se ou desviar os olhos para não terem de ver o que os outros fazem?

Miguel Sousa Tavares