terça-feira, 8 de março de 2005

ARTE

Ainda faço guerreiros, ainda faço árvores e flores, mas a mulher tem vindo sempre ao de cima.
Parece óbvio, não é?
Gosto tanto de mulheres!
Tenho pena de não saber fazer escultura sobre comida, ainda fiz peixes, mas registar um bom bife em mármore não consigo.

CONVERSA COM VISTA PARA... JOÃO CUTILEIRO, escultor


Tempos houve (iniciados em Londres, há quase 40 anos) em que segui mais de perto o que as mãos do escultor desenhavam, moldavam, compunham. Ou o que os seus olhos procuravam fixar em fotografia. Admirei sempre o lado laborioso, disciplinado, quase maníaco, das horas do seu dia de trabalho e o tom ritualista que imprime aos momentos de descompressão e lazer - esses momentos a que os amigos podem aceder, fazendo algumas vezes de figurantes de uma cena que ele parece estar constantemente a dirigir a contento, sem nunca ser dúplice. É hábil a armazenar as histórias que lhe vão contando, para depois as fazer sair das gavetas da sua memória a propósito da mais insignificante referência coloquial - um citador nato. Aplica, sem complacências, uma mordacidade bem-humorada às situações que lhe são dadas para análise ou resposta. Ri dos outros, e de si mesmo, com uma desfaçatez acutilante, pouco comum. De corpo pequeno, seco, aparentemente frágil, foi roubando ao ferro e, sobretudo, à pedra com que lida há muitos, muitos anos, uma robustez surpreendente. Com o ferro e a pedra também aprendeu a procurar a ductilidade dos seres e a reconhecer nessa dimensão uma qualidade de valor inestimável. Quando se distrai da sua guarita de observação, desfaz-se em ternura por aqueles que o habitam por dentro. Creio que em tudo o que faz surgir no papel, na pedra, no ferro ou na película fotográfica, é isso que procura dar a ver - como gosta de quem e do que gosta; como gosta de traduzir aquilo que o seduziu em alguém, em alguma coisa: a curva das costas, a inclinação da cabeça, a energia do braço a cumprir um determinado gesto, o recorte da folha, a dobra do caule, o novelo enrolado do cão a dormir bem próximo. Mas é o corpo das mulheres, sem recurso a um qualquer modelo de perfeição ideal, o que mais intensa, e obsessivamente, o move. Ano após ano, nos materiais que escolhe para neles fazer incidir o gesto febril (e fabril) das suas mãos, é esse mistério de recortes arredondados que o escultor mais elege para cantar. Como um menino inquieto, que demanda sem descanso a gruta matricial de onde veio e para onde deseja, ardentemente, regressar.


MJS - João, diz-me quem és.
JC - Se souberes com quem ando, talvez consigas chegar lá. Como no fim de um poema de Carlos Queiroz: "E eu a supor que ainda sou/ O mesmo que outrora cantou:/ Giroflé - Giroflá!", eu também sou o mesmo puto, que foi crescendo sabe-se lá como, numa mistura de grandes privilégios não ortodoxos - nem sangue azul, nem contas bancárias, nem Ferraris. Trata-se de outra coisa, outros privilégios que, por ter nascido em Portugal, também se foram estragando. Nascer-se em Portugal é uma circunstância que pesa muito. Quando me vou abaixo, chego (a maior parte das vezes) à conclusão que, se não tivesse aqui nascido, talvez estivesse um bocadinho melhor. Mas, se calhar, se tivesse nascido noutro sítio, ia-me abaixo por outras razões. E por cá estou, não consigo sair daqui. Sem saber bem o que é que sou. Sei que sou escultor, sim senhor, nunca fiz mais nada na vida. Mesmo quando faço fotografia, sou escultor à mesma, registo imagens, fixo-as. A fotografia, como costumo dizer, é a primeira de todas as artes visuais, embora tecnicamente só tenha nascido há 150 anos. A intenção é sempre a de fixar a imagem, de que só temos a percepção através da luz. Isso é o que faz de nós todos fotógrafos. Há uma frase, que anda sempre comigo e que me foi dita por Hellmut Wohl: todos os grandes artistas da História começaram por ser conhecidos na família, na escola, no meio ambiente em que viviam, pela sua capacidade "to render nature". Como é que se traduz isto? Não é imitar, não é retratar, é a capacidade de "dar a ver" a Natureza. Continuo bastante obcecado com o "ver" e o "dar a ver". Suponho que é por aí que sou quem sou.
MJS - Quando é que soubeste que querias ser escultor?
JC
- Acho que sempre, não me lembro. Contaram-me que uma amiga da minha mãe me perguntou, teria eu seis ou sete anos, se queria ser escultor quando fosse crescido e que a minha resposta, em tom peremptório, foi - eu sou escultor!
MJS - Gostavas de brincar com plasticina em pequenino?
JC
- Plasticina? Não. Isso já era uma matéria desviada, eu brincava com barro. A diferença entre a plasticina e o barro é assim como ter aulas de canto coral na escola ou ir aprender música com Lopes-Graça. Eu privei - um dos tais privilégios! - com os Lopes-Graça da pintura e da escultura daquele tempo. Quando comecei a moldar o barro, senti logo com muita força que era aquilo, era com o barro que queria trabalhar; aconteceu o mesmo, uns anos depois, quando peguei a primeira vez no escopro e no martelo, foi outra revelação, um baque enorme; mais tarde, com a primeira máquina de cortar pedra, voltei a sentir a mesma sensação de impacto e de certeza, muito forte - é isto, é assim que quero trabalhar; recentemente, num registo mais lateral, ao descobrir a máquina fotográfica digital, senti uma imensa alegria por não ter de passar horas a revelar na câmara escura, por poder ir escolhendo no computador a fotografia que quero ver reproduzida e, no fim, quando tudo parece estar certo, é só carregar no "butanito" (como dizem os alentejanos) e já está! Além de que, como sou avarento, a ideia de poder dar não sei quantos tiros, guardar uns tantos na disquete, dispensar os outros e, quando chega à escolha para a revelação em 30X40 (o formato de que gosto), isso tudo ter-me custado (com os custos do tinteiro incluídos!) cerca de dois euros, dá-me muito gozo.
MJS - Conta-me como tudo começou, plasticina à parte, nos tais ateliers de excelência que pudeste frequentar em miúdo e, depois, no liceu, em Belas-Artes, por aí fora.


JC - Comecei a ir para o atelier de Jorge Barradas, já de uma maneira regular, às quartas e sábados, durante o período da Mocidade Portuguesa (MP) e aconteceu-me outro privilégio - por um lado, o que eu gostava mesmo era de fazer cerâmica naquele atelier, mas, por outro, era obrigado a ir às aulas da MP, também às quartas e sábados; alguém, ou na escola ou na família, lembrou-se que a Mocidade tinha uma secção artística, eram, salvo erro, os "salões de educação estética" e eu fui dispensado de usar farda e de ir às aulas de educação estética a troco de ir para a Fábrica Viúva Lamego, na condição de expor ao fim do ano nos "salões". Coisa que fiz e ainda ganhei uns prémios e uns dinheiros.
MJS - Com que idade?
JC
- Teria 12, 13 anos. Depois, sem deixar de ir ao atelier de Jorge Barradas, comecei a ir também ao de António Duarte. Acabo o liceu, inscrevo-me em Belas-Artes, de que depressa me fartei e, em 1955, vou para Londres. Um amigo disse-me que a Paula Rego estava numa escola fantástica, a Slade. No Natal de 1954, a Paula veio cá e entreguei-lhe um dossierzinho com os meus trabalhos. Um mês depois recebia uma carta da Slade School a dizer que me aceitava. Tinha então 17 anos, aos 18 já estava em Londres. O meu pai morreu três meses depois e, como nós não tínhamos nem património nem rendimentos, fiquei autónomo, por minha conta e risco.


MJS - Tiveste de trabalhar no duro?
JC - O que é duro? As pessoas aqui achavam que eu estava a trabalhar no duro, mas sei que me diverti imenso e que tudo o que fiz foi um grande enriquecimento; fui descarregador dos caminhos-de-ferro, fui modelo, mais tarde, ao fim de dois, três anos, comecei a fazer fotografia, por necessidade de fotografar as minhas coisas, os trabalhos da escola; os meus colegas gostaram e pediram-me que fotografasse os deles, porque eu era ainda mais barato que o fotógrafo da Slade. A escultura não viaja com facilidade, como sabes, e precisávamos todos de registar o que fazíamos, para as bolsas de estudo, para os relatórios, para tudo isso. Depois de acabar a universidade, arranjei um atelierzinho e fui assistente de um homem que tinha sido meu mestre, Reginald Butler. Zangámo-nos ao fim de um ano, ele estava farto da minha presença. Só quando eu próprio tive um assistente é que percebi quão incomodativa pode ser a presença de alguém, em permanência, no nosso espaço de trabalho e de criação.


MJS - Mas é ou não indispensável a figura do assistente num atelier de escultura?
JC - Nos últimos 200 anos de história da escultura, todos, ou quase todos, tiveram-nos, até o mais individual deles, Alberto Giacometti. Esse não tinha um assistente tipo "mercenário", mas era o irmão, Diego, quem lhe fazia as armações, posava como modelo, limpava o atelier enquanto ele dormia, "roubava" as peças antes que ele as destruísse completamente e levava-as para o fundidor. André Susse, um grande fundidor de Paris que trabalhou com toda essa geração de escultores (a Susse Fondeur à Paris, casa fundada pelo seu bisavô, tinha já sido mencionada por Balzac), veio uma vez a Londres instituir um prémio para jovens escultores e eu conheci-o nessa ocasião. Do prémio fazia parte a fundição da peça premiada; concorri, não ganhei, mas ele gostou do que eu tinha feito e disse-me para eu levar o trabalho a Paris. Quando me foi possível ir, telefonei-lhe e ele convidou-me para um almoço, onde estaria também um amigo. Era o Diego Giacometti e eu pude ouvir, deliciado, as conversas que aqueles dois tiveram (sentiam-se completamente à vontade, sem ligar nenhuma à minha presença, àquele puto que também estava ali à mesa) sobre as técnicas para "roubar" as peças do irmão. Ao que parece, Alberto Giacometti trabalhava nas obras tão obsessivamente que elas iam ficando cada vez mais magrinhas e havia um momento certo (como para os ovos cozidos) em que era preciso "roubá-las", para evitar que se partissem e se desfizessem. O irmão Diego tinha essa função de ampulheta salvadora.


MJS - A cadeia dos teus materiais de trabalho começa no barro, passa para o ferro e chega à pedra?
JC - Falta o gesso e a ordem não é a que enunciaste. Comecei pelo barro e passei para a pedra, mas quando o trabalho em pedra (na altura esculpida a escopro e martelo) se tornou de custos proibitivos, comecei, a conselho de Reg Butler, a fazer escultura em gesso. Só que o gesso, para se aguentar, implicava ter uma estrutura em arame ou em ferro. Passei a soldar essas malhas para depois pôr o gesso; a uma dada altura dei comigo a achar muito mais graça às ditas estruturas, em si mesmas, sem o gesso. Foi essa a minha evolução para os trabalhos em ferro, até que, uns anos depois, apareceram as tais máquinas, as rebarbadoras. Desde aí, nunca mais abandonei a pedra. Há uns tempos, iniciei-me a fazer algumas coisas em vidro, mas o processo e a tecnologia do cristal ainda me escapam e acho que as técnicas nesse campo são quase primárias, pelo menos em relação ao que eu gostaria de poder fazer. Tenho de me habituar melhor.
MJS - O grande entusiasmo com que falas das máquinas de cortar pedra e das câmaras digitais (a mais recente das tuas descobertas) faz de ti alguém completamente fascinado pelo progresso tecnológico?
JC - Não necessariamente. Acontece que este progresso tecnológico, o das rebarbadoras e o das câmaras digitais, serve e estimula os trabalhos que quero fazer. Falta dizer que entrei em contacto com a primeira rebarbadora por volta de 1965, não em Londres, onde vivia na altura, mas em Lagos. Portugal é, ainda hoje, um primeiro-mundista no que diz respeito às rochas ornamentais. Temos das melhores rochas ornamentais, das melhores fábricas, somos dos melhores exportadores (chegámos a ser os segundos maiores, hoje já "n" países nos ultrapassaram).
MJS - Esse ficar para trás deve-se a quê?
JC - Deve-se à falta de vontade empresarial. De há vinte e tal anos para cá, começaram todos a pensar nos subsidiozinhos, nos juros bonificados, nos fundos para mandar uns rapazes lá fora com bolsas de estudo... Quando nós sabíamos e sabemos mais! Temos mármores extraordinários - do ponto de vista dos veios, da cor, da textura, da uniformidade -, com garantia de valor de excelência para a indústria. No entanto, o facto de ser bonito não assegura, como a maior parte das pessoas pensa, a indispensável rentabilização industrial. Há, por exemplo, um mármore lindíssimo, com cores e veios belíssimos, nas grutas de Santo Adrião, em Vimioso, mas a pedreira teve de ser fechada porque não conseguiam sacar mais do que uns calhauzinhos com 40 centímetros, tal a fragilidade da jazida. Para os meus trabalhos, ainda dá, ainda consigo beneficiar, de certo modo, destas situações.
MJS - Em que ano é que te decides a trocar Londres por Lagos?
JC
- Regressei definitivamente de Londres em 1970, mas vinha com regularidade ao Algarve desde há muitos anos. Ficava sempre em casa de uns amigos e, em 58, quando comecei a sentir-me envergonhado com aquele abuso, aluguei uma; seguiram-se outras de aluguer, até poder, já nos anos 80, comprar a primeira casa, sempre em Lagos. Tinha um pequeno jardim, ao fundo do qual havia um alpendre; era aí, e numa outra sala que ficava por baixo da cozinha, que funcionava o atelier.
MJS - Quase em frente havia uma igreja, fechada, sem qualquer uso e ideal para as tuas peças crescerem com outra desenvoltura. Conseguiste, a um dado momento, negociar com as autoridades eclesiásticas locais a sua cedência para utilização daquele magnífico espaço vazio como atelier. Façanha que durou pouco tempo. Porquê?
JC - Quando negociei, em 72, a encomenda do D. Sebastião, disse à câmara que não tinha sítio para a fazer e lembrei que havia aquela igreja vazia mesmo ao lado de casa. Disseram-me que não havia problema e pediram a chave à paróquia. A estátua foi inaugurada seis meses antes do 25 de Abril e eu fui ficando na igreja, na convicção de que ia poder continuar a utilizar aquele espaço. Mas não, por uma razão qualquer, ou porque também se começou a ter mais consciência do património, ou porque as autoridades eclesiásticas devem ter tido medo de ser acusadas de iconoclastia, voltaram a fechar aquilo e puseram-me na rua. Mais tarde, com outra encomenda grande para a câmara, voltou-se a pedir o espaço e tornei a instalar-me lá, até que um dia um padre, com um grupo de velhas beatas, resolveu expulsar-me, de uma maneira muito interessante: entraram na igreja e escaqueiraram tudo o que eu lá tinha, dizendo-me o dito padre que me tinha escrito uma carta de aviso de despejo (que eu nunca recebi e que estou certo que nunca escreveu) e, como eu não saía, aquela era a única forma de me tirar de lá...
MJS - Mas foi nessa igreja que ainda funcionou um centro de jovens escultores, em finais dos anos 70, orientado por ti.
JC
- Sim, durante a segunda estadia na igreja. Uma bela ideia, que foi sol de pouca dura, não chegou a um ano. Por lá passaram o José Pedro Croft, o Manuel Rosa, a Ilda David... A iniciativa veio do Fundo de Fomento de Exportação, muito interessado na promoção das nossas rochas ornamentais. Eu orientava os trabalhos como um déspota, com um chicote grande numa mão e uma cenoura, pequenina, na outra. Não admira que tivesse durado tão pouco, embora, insisto, fosse uma bela ideia.
MJS - Foste entretanto seduzido por Évora, que te faz deixar o Algarve. A mudança para o Alentejo fica-se a dever exactamente a quê? Foi-te difícil esse novo salto?
JC - As mudanças são-me sempre difíceis. É verdade que já tinha uma grande fixação no Alentejo e, em 75, vim a Évora por causa de um possível curso, na universidade, sobre tecnologias dos mármores e apercebi-me do potencial de rentabilização, muito mais sério, menos abandalhado, do trabalho em Évora, que não é um sítio de férias, como Lagos, como todo o Algarve. Comecei a procurar, desde aí, um sítio para viver em Évora, que apareceu em 85. Onde ainda estou.
MJS - Regressemos agora à tua primeira resposta. Fala-me do tal "render nature", dessa obsessão que te consome - a de "ver" e de "dar a ver".
JC - A minha obsessão é o registo; se consigo "render", ou se retrato simplesmente, não sei, cabe aos outros avaliarem. O registo é-me particularmente importante e estou-me bastante nas tintas para tudo o resto. Enquanto não tiver o registo, não posso sequer pensar em termos de fazer qualquer coisa com ele.
MJS - O que persegues, para esse registo, é um real que te é exterior ou é mais dentro de ti que o procuras? Onde está o núcleo dessa compulsão que te leva a criar?
JC - Como poderás supor, não és a primeira pessoa a pôr-me essa questão. Através das décadas fui cada vez mais cristalizando (na melhor das acepções) a resposta. A resposta cabe no primeiro poema de um livro chamado "Fel", de José Duro, poeta de Portalegre: "O livro que aí vai - obra dum incoerente - / É um livro brutal, é um poema a esmo.../ Pensei-o pela rua olhando toda a gente, / Escrevi-o no meu quarto olhando-me a mim mesmo..."
MJS - Nesta sala, se eu olhar em volta e me fixar naquele particular torso de mulher, pergunto: o modelo é real e foi ele quem te convocou a trabalhar esta forma na pedra? Ou quiseste registar, para além da forma específica do modelo, a essência de um corpo feminino?
JC - Naquela peça, como em muitas outras, tentei registar a essência do corpo daquela mulher. Aquela mulher foi a pessoa que eu vi e cujo corpo me convidou a fazer o registo. Há outras peças que são muito mais um resultado acumulado de várias situações, memórias, coisas soltas, como as rabosódias de corpos.
MJS - Rabosódias? Estás a falar-me de uma fase em que esculpias, quase sem pausa, sucessivos rabos?


JC
- Ah sim, não foi uma fase que lá vai, continuo a reconhecer no tema dos rabos um tema muito bem-vindo. Gostaria mesmo de ter uma grande "cuoteca". O volume do rabo tem uma carga, para mim, muito forte, o que é natural em escultura. Já na fotografia, o mais importante, o que mais me interessa registar são os olhos, o olhar, o que me trouxe algumas dificuldades ao princípio, quando trabalhava com uma Rolleyflex. Essas máquinas tinham o visor vertical, e a tendência das pessoas era a de olhar para cima, para se encontrarem com os meus olhos; com as outras câmaras, a "arma" fica à cara, o que significa que os olhares do modelo e do fotógrafo se podem cruzar ao nível da linha de enquadramento do visor.
MJS - Desenhas muito?
JC
- Muito. Em duas fases: a fase da pose para futuras esculturas, com modelos (que podem ser amigos), nus, em sala aquecida, de pé, sentados, deitados, a rolarem de um lado para o outro (como os frangos no churrasco!); e uma outra fase, que se passa normalmente ao serão, à conversa com amigos que estão lá em casa, a ver televisão... Tenho sempre uma série de papéis e canetas e lápis, ao lado da cadeira, e vou desenhando, nesses momentos, quem está à minha volta, mas já de uma forma muito mais informal.
MJS - Servem para quê esses desenhos da segunda fase?
JC - Sei lá! Pode acontecer, sobretudo para as peças de parede, de duas dimensões, que eu pegue nesses desenhos, tire fotocópias, leve para a oficina e comece a riscar e a recortar na chapa de mármore uma determinada posição de algum desses corpos.
MJS - A representação do corpo da mulher é ou não o território de eleição dos teus registos?
JC - A nível dos desenhos da primeira fase que te referi, desenhos que são feitos a pensar em escultura, é-o indiscutivelmente. A nível dos outros, dos mais informais, não. Nesses, tudo o que está à minha volta é desenhado indiscriminadamente: mulheres, homens e bichos, os meus bichos. Não é qualquer bicho, são as minhas gatas queridas, os meus cães queridos que, normalmente ao serão, nos emprestam uma placidez extraordinária, muito rara. Agradeço-lhes assim, desenhando-os.
MJS - Mas na escultura, campo de batalha da tua principal gesta, a mulher, e a consagração do seu corpo, continua a ser o que mais te leva a querer "dar a ver"?
JC - Claro. Ainda faço guerreiros, ainda faço árvores e flores, mas a mulher tem vindo sempre ao de cima. Parece óbvio, não é? Gosto tanto de mulheres! Tenho pena de não saber fazer escultura sobre comida, ainda fiz peixes, mas registar um bom bife em mármore não consigo.
MJS - Vais regularmente a museus ou a outros locais, só para ver de perto uma determinada escultura?
JC - Não, não tenho esse hábito, nunca tive. Gosto dos antigos, dos clássicos, embora nunca tenha ido à Grécia. Vi tantas vezes o Parténon, que não me sobrou vontade de lá ir. Gosto, mais perto de mim, do Moore, do Giacometti, do Butler... A última vez que me apeteceu, sofregamente, deslocar-me a um sítio só por causa das esculturas, foi a Xian, para ver os guerreiros do túmulo do imperador. Aproveitei uma ida a Macau e aí foi mesmo compulsivo, não pude deixar de ir vê-los. Aquela cena, todo o dispositivo daquela cena, é de facto muito impressionante. O que mais mexeu comigo, para além da belíssima terracota em que as figuras estão esculpidas, foi a noção de massa, dada por aquela multidão de infindável número (ainda desconhecido na sua totalidade, a última estimativa acho que está entre os 12 mil e os 15 mil) de guerreiros e as pequenas singularidades da representação de cada um (sob uma matriz de base, há mais ou menos bigode, mais ou menos retoques nas armaduras...). Está ali todo o contrário do que a história da escultura sempre nos deu. Quando regressei da China, e ainda sob aquela fortíssima inspiração, decidi encenar as minhas exéquias e pus-me a colocar um pequeno cortejo de guerreiros (à minha escala, claro!) no jardim da casa de Évora - da garagem até à porta do atelier. Lá estão, a guardarem-me as horas, até que o dia final chegue e lhes sejam entregues as minhas ossadas, para que velem por elas.
MJS - A escultura, no teu entender, está viva e de boa saúde? Em Portugal e no mundo?
JC - Tanto quanto sei (como passo a maior parte dos dias no atelier, tenho pouco tempo para andar a ver revistas), a escultura não atravessa, nesta fase, um período particularmente interessante. De vez em quando lá vão surgindo umas coisas mais curiosas, mas nada de muito exaltante. Em Portugal gosto muito dos trabalhos do Rui Chafes e do José Pedro Croft, e gosto também das pessoas que ambos são. O Manuel Rosa, outro escultor de que sempre gostei muito, está de momento entregue à Assírio & Alvim e a sua escultura ficou, por isso, como que em suspensão. Cá o aguardo.
MJS - E tu? Que fase estás a atravessar? A crise económica afectou-te de algum modo?
JC - A crise económica afectou, claro, as grandes encomendas institucionais, as encomendas de peças com três e quatro metros. Mas o facto de não ter de trabalhar sob pressão de entregas com prazo tem-me proporcionado um período de maior contemplação, e até de experimentalismo, no trabalho que estou a produzir. Tem-me sabido muito bem esta calma, devo dizer-te. Estou, no entanto, à espera da confirmação de uma nova encomenda e a preparar uma exposição, de maquetes, para o Museu de Silves.
MJS - Dá-me uma palavra de eleição.
JC - Tudo
Maria João Seixas