terça-feira, 8 de março de 2005

SALVAGUARDAR OS SERVIÇOS PÚBLICOS



Segundo se pode ler no Expresso de sábado passado (suplemento de Economia), "os CTT tornaram-se uma empresa financeira rentável à custa do desprezo pelos utentes -, logo são cada vez menos os correios de Portugal. E prestam um serviço incompetente e próprio do Terceiro Mundo". Infelizmente os serviços postais não são os únicos serviços públicos tradicionais onde os níveis de satisfação dos utentes estão em declínio. As transformações por que têm passado os antigos serviços públicos nas duas últimas décadas nem sempre têm sido feitas sem sacrifício da sua "missão de serviço público".
Desde o "Estado social" do século XX, embora com raízes mais antigas, constitui responsabilidade do poder público a prestação directa ou a garantia de prestação aos cidadãos de certos serviços considerados como utilidades públicas básicas (public utilities) - como a água e o saneamento, a energia (electricidade e gás), os serviços postais e as telecomunicações, os transportes públicos urbanos e interurbanos -, bem como os serviços necessários à garantia dos direitos fundamentais de "segunda geração", ou seja, os direitos económicos, sociais e culturais, como o direito à educação, à saúde, à segurança social, à cultura, ao desporto, etc. Em geral, trata-se de garantir nesses serviços valores que o mercado só por si não pode assegurar, nomeadamente a segurança e a continuidade de fornecimento, a universalidade e a acessibilidade económica, a qualidade de serviço, etc.
O regime dos serviços públicos sempre foi muito diversificado, desde logo quanto às entidades públicas responsáveis por eles (serviços nacionais, regionais e locais); quanto à sua natureza (serviços económicos, serviços sociais e serviços culturais); quanto à sua remuneração ou não pelos utentes (serviços gratuitos e serviços onerosos); quanto à sua prestação directa pelos poderes públicos ou por entidades privadas em regime de concessão; quanto ao seu regime económico (em monopólio público ou em concorrência com o sector privado), etc. No entanto, no que respeita a muitas das utilities, que em geral assentam em infra-estruturas de rede que não são replicáveis (rede de abastecimento de água, rede de saneamento, rede eléctrica, rede de gás natural, rede ferroviária, rede de estações postais, etc.), o modelo de serviço público era muitas vezes organizado em termos de prestação directa pelos Estado e autarquias locais, através de organismos ou estabelecimentos públicos integrados no "sector público administrativo", em geral em regime de exclusivo. Eram tipicamente serviços "fora do mercado", mesmo quando eram pagos pelos utentes. Tal era o que sucedia entre nós, por exemplo, com os correios e telecomunicações, a nível nacional, e com os serviços de água, saneamento, electricidade e transportes urbanos, a nível local.
Duas razões contribuíram fortemente para pôr em causa este modelo tradicional dos serviços públicos na Europeia. Primeiro, o movimento neoliberal de desintervenção do Estado, iniciado nos anos 80 nos Estados Unidos, baseado na liberalização e privatização do sector público; segundo, a criação do "mercado interno" no âmbito da Comunidade Europeia a partir do Acto Único Europeu, de 1987, o que implicava a abertura ao mercado e à concorrência dos sectores até então submetidos ao regime de serviço público. Esses dois movimentos confluíram num conjunto de reformas protagonizadas pela Comissão Europeia a nível da UE e pelos governos nacionais, no sentido da empresarialização, da liberalização e da privatização e/ou concessão de serviços públicos. Começando pelos transportes aéreos e pelas telecomunicações, passando pela electricidade e pelo gás e terminando nos serviços postais e ferroviários, praticamente todos os antigos serviços públicos têm passado ou estão a passar pela mesma revolução.
As manifestações dessa metamorfose também são notórias entre nós. O fenómeno da empresarialização, há muito iniciada com a transformação de antigos estabelecimentos públicos do Estado em empresas públicas (os CTT, por exemplo), atingiu entretanto os serviços locais (empresarialização dos "serviços municipalizados" e de outros serviços municipais), para não se deter mesmo à porta dos serviços sociais e culturais anteriormente alheios a toda a lógica empresarial (empresarialização de hospitais e do Teatro Nacional D. Maria II). Quase todas as utilities, com a excepção da água e do saneamento, foram ou estão em vias de ser abertas ao mercado e à concorrência. Várias empresas públicas prestadoras de serviços públicos de âmbito nacional foram entretanto privatizadas (PT, EDP), embora continuando concessionárias do respectivo serviço público, a par com as suas actividades comerciais concorrenciais. Proliferaram as concessões de serviços públicos a empresas privadas, agora a invadir também os serviços locais. As "parcerias público-privadas" surgiram mesmo nos sectores mais avessos à participação privada (como a construção e exploração de hospitais do SNS).
O saldo destas profundas transformações é em geral muito positivo, em termos de eficiência dos serviços públicos, racionalização dos recursos públicos, baixa de custos, escolha dos utentes, menor pressão sobre as finanças públicas (em termos de défice orçamental e de endividamento público), etc. Basta referir o que se passa no domínio das telecomunicações, apesar do potencial de concorrência ainda por explorar. Acresce que em geral tem sido possível compatibilizar a empresarialização, a privatização e o mercado com a lógica do serviço público, mediante a imposição de "obrigações de serviço público" e o estabelecimento de direitos dos utentes, assegurados nomeadamente por via de entidades reguladoras independentes, de que são exemplo entre nós a entidade reguladora dos serviços energéticos (ERSE), uma das mais antigas, e a entidade reguladora da saúde (ERS), a mais recente. Na verdade, desde o origem que o Tratado de Roma previa um regime especial para os "serviços de interesse económico geral" (SIEG), admitindo as necessárias derrogações das regras da concorrência. Nas suas iniciativas sobre a abertura dos serviços públicos ao mercado a Comissão Europeia tem definido por vezes ela mesma as obrigações de serviço público, noutras tem deixado aos Estados-membros a sua definição.
Mas as coisas nem sempre têm corrido bem em todos os sectores. Existe uma natural tensão entre as missões de serviço público e a lógica empresarial e comercial, sobretudo quando estão envolvidas empresas privadas. Por isso, torna-se necessário definir cuidadosamente as obrigações de serviço público, fazer da sua garantia uma prioridade das entidades reguladoras, envolver os utentes na monitorização efectuada por estas e dar-lhes poderes suficientes para desempenhar bem essa tarefa. A gestão empresarial e a busca de eficiência não podem ser motivo para marginalizar as obrigações de serviço público. Pelo contrário. Claramente, porém, não é o que se está a passar entre nós em alguns sectores, como mostra o caso dos serviços postais (um entre vários).
Os serviços públicos fazem parte integrante do modelo social europeu e contribuem decisivamente para a coesão social e territorial dos países e da UE em geral. A garantia dos SIEG está proclamada nos tratados da UE, na Carta de direitos fundamentais e na Constituição europeia. Considerando essas garantias insuficientes, a questão dos serviços públicos tem sido um dos principais motivos de reserva ou oposição de algumas tendências de esquerda ao tratado constitucional, bem como à proposta de directiva sobre o mercado interno de serviços (directiva Bolkenstein). Por razões evidentes, um governo socialista tem de colocar os serviços públicos entre as suas prioridades. Tanto como pelo crescimento económico e pela diminuição do desemprego, é por ali que passa o sucesso ou insucesso do Governo de José Sócrates.
Vital Moreira