segunda-feira, 7 de março de 2005

INTERESSES. LIGAÇÕES.




Entre os presentes, Freitas do Amaral é evidentemente o mais estranho. O convite que lhe foi dirigido por Sócrates surpreende tanto quanto a sua aceitação.
Pergunta-se se algum dos dois ficou a ganhar

Após um exercício de contenção, o governo é conhecido. O segredo da formação anuncia um novo estilo. O método não é mau: tal como outras actividades, a política deve ter momentos de reserva. Sobretudo se o governo for bom, que é o essencial. Apesar de conhecermos os nomes, a expectativa continua. Há ministros com e sem passado, com pequeno ou grande currículo. Uns ministros têm pouca história, mas outros têm história a mais. Por maiores que sejam as certezas que tenhamos sobre o carácter de cada um, a verdade é que um início merece tempo de espera por sinais consistentes. Valentes ou covardes, livres ou dependentes, inteligentes ou estúpidos, os ministros são julgados pelas suas intenções e, ulteriormente, pela obra. Vamos, pois, ver. A escolha dos secretários de Estado e a apresentação no Parlamento serão já momentos de definição.

O GOVERNO É MUITO IRREGULAR EM QUALIDADES.
Mas o que mais estará em causa não será a política de cada um. Pelos antecedentes, assim como pelo facto de Sócrates ser um neófito, o que mais desperta a curiosidade é a sua capacidade de direcção. Ou falta dela. A prova de autoridade não está feita, longe disso. A demonstração dos seus talentos orientadores ainda está para vir. As suas sensibilidade política e imaginação cultural são entidades desconhecidas. A maior interrogação é o primeiro-ministro ele próprio.

CERTAS AUSÊNCIAS FALAM TANTO COMO ALGUMAS PRESENÇAS.
A ausência de, por exemplo, Vítor Constâncio, António Vitorino, Medeiros Ferreira, Gomes Canotilho, José António Pinto Ribeiro, João Cravinho, Jaime Gama, Teixeira dos Santos e Rui Vieira Nery é reveladora. Seja pela falta de convite, seja pela recusa do mesmo. Também será notado se o governo recorrer ou não, para altas funções, a pessoas que se notabilizaram na área económica com ideias firmes e acertadas sobre os graves problemas financeiros e económicos do Estado. Silva Lopes, Medina Carreira ou Teodora Cardoso, por exemplo. Entre os presentes, Freitas do Amaral é evidentemente o mais estranho. O convite que lhe foi dirigido por Sócrates surpreende tanto quanto a sua aceitação. Pergunta-se se algum dos dois ficou a ganhar. Surpreende a maneira definitiva como Freitas do Amaral renunciou a um seu velho sonho, o da Presidência da República.

O SECRETISMO DA FORMAÇÃO DO GOVERNO teve ainda uma consequência interessante: a de confirmar a génese das fugas de imprensa. Na verdade, uma parte significativa, talvez a maior, dos mexericos governamentais é preparada e dirigida pelos próprios, pelos amigos ou inimigos, pelos colegas ou adversários. Quando lhe falta matéria-prima, a imprensa não consegue inventar tudo.

UMA QUESTÃO RELEVANTE PARA A VIDA pública, no momento actual, é a que diz respeito às ligações de políticos aos interesses económicos, religiosos e autárquicos. Pela sua composição, o governo começará a dar sinais a esse propósito. Não só os mais cépticos, mas também gente bem intencionada está preparada para ver quem, no governo, "é o homem" (ou a mulher) da Igreja, do sindicato, das autarquias, da alta finança, da construção civil, das auto-estradas, das telecomunicações, da celulose, dos petróleos, do gás, da electricidade, dos espanhóis, do grupo A ou do grupo B. Ao lado da honestidade e da competência, a representação de interesses será um critério de análise deste governo tão meticulosamente feito a recato. E vale a pena medir com rigor a capacidade de isenção de cada um. Um ministro que pertença à Igreja ou à Maçonaria pode, em teoria, distanciar-se dessa afiliação e exercer o seu cargo com liberdade e sentido de serviço. Um ministro que saia directamente de um conselho de administração também pode, desde o dia de posse, libertar-se das amarras. Um ministro que pertença a uma universidade, uma autarquia, um clube de futebol ou uma qualquer sociedade pode igualmente, sempre em teoria, romper os respectivos laços a fim de desempenhar as suas funções com lealdade perante o eleitorado. Vamos, pois, ver se, por exemplo, este governo continua a preferir, como outros que o precederam, uma espécie de banqueiro do regime cada vez mais enraizado.

A OPERAÇÃO FINANCEIRA DE QUE RESULTOU a venda da Lusomundo à Olivedesportos chocou e surpreendeu. Parece ter sido feita de supetão, entre governos, o que em si não ofereceria comentário, a não ser pela presença do Estado, com voto qualificado, na PT. Há quem diga que se tratou de evitar que o novo governo contrariasse o negócio. Mas também há quem diga que a transacção foi feita com o acordo do indigitado primeiro-ministro, o qual gostaria que tudo estivesse concluído antes da tomada de posse. Como o negócio foi um esmerado exemplo de opacidade e estranheza, deixando rédea solta a especulações sobre favorecimento, ficamos à espera.
AS CAUSAS DA ESTRANHEZA SÃO MUITAS.
O comprador não tem experiência no sector. O novo proprietário comprou três jornais diários, ficando com a posse de quase dois terços da imprensa diária generalista. O vendedor e o comprador recusaram separar as entidades que estavam à venda: rádio, diários, semanários e revistas. O Estado ajudou a fortalecer uma posição excessiva e dominadora. O governo deve uma explicação pormenorizada sobre o assunto. Como deve ainda, depois das Autoridades para a comunicação social e para a concorrência se exprimirem, tornar claros os meandros da operação.

O NOSSO POBRE PAÍS PRECISA DE UMA REGULAÇÃO dos interesses e das suas relações com os poderes públicos. Os costumes tradicionais são maus conselheiros. Os capitalistas, habituados a exercer livremente as suas actividades predadoras, foram reforçados pela democracia, pelas necessidades de acumulação primitiva dos políticos, pela miséria financeira dos partidos e pelos complexos de esquerda de alguns socialistas. Os políticos democráticos, de esquerda e de direita, deram frequentemente sinais de possuírem uma moral flexível, uma integridade complacente e uma voracidade insaciável. Os grandes clubes de futebol criaram, com cumplicidade política, um clima de impunidade arrogante que depressa alastrou à sociedade. Os autarcas, pelo que fazem e pelo que deixam fazer aos quadros municipais, estabeleceram o dogma de que, na defesa dos interesses do seu eleitorado, vale tudo. Finalmente, a confiança política, como critério aceite para a nomeação da alta função pública, gerou a impossibilidade de se criar uma administração isenta. Neste quadro lamentável, o obsceno percurso, de ida e volta, entre o governo, o Parlamento, as empresas, a banca e outras administrações económicas, é uma das grandes fontes de corrupção. Ainda por cima, o processo de privatização em curso há quinze anos deu oportunidade à criação de uma teia promíscua de interesses, privilégios e favorecimento de que poucos países desenvolvidos são exemplo como o nosso. Se mais não houvesse, bastava este enorme problema para encimar a agenda deste governo. E para que ele ficasse na história. Pelas boas ou pelas más razões.
António Barreto