segunda-feira, 14 de março de 2005

A PRIMEIRA PROVA




Há uma prova imediata à qual podemos desde já estar atentos. Uma prova que não se compadece com retórica parlamentar, grandes entrevistas, frases feitas ou interpretações subjectivas. É a prova das nomeações da alta Administração Pública.
Se este governo fizer como todos, digo bem, todos os antecessores, podemos perder a esperança


A posse (nunca deixarei de estranhar este termo aplicado ao poder e ao exercício de cargos públicos...) foi marcada para um sábado ao meio-dia. Inesperado momento para tal acto!
Não se percebe se foi para prevenir problemas de trânsito ou para ganhar uns dias, após este absurdo período de tempo perdido entre a dissolução parlamentar e a instalação do novo governo.

Durante muitos anos, a tomada de posse dos governos foi um espectáculo inesquecível de transpiração.
Os piores sentimentos humanos tinham, nesse dia, dignidade de Estado.
Não faltavam os "adesivos" nem os "corcundas".
Os mais baixos exercícios que os homens conhecem tinham ali arena e câmara.
Os que se punham nas pontas dos pés.
Os que lambiam botas.
Os que dobravam a espinha.
Os que davam graxa.
Ontem, essas cenas foram-nos poupadas.
Desconfiado, a pensar na tristeza da noite eleitoral, ainda pensei que o primeiro-ministro tivesse receio que fossem poucas pessoas. Mas, bem vistas as coisas, creio que foi por decência que ele preferiu uma relativa sobriedade. Ganhou a higiene pública. Venceu a estética. O que fica a seu mérito.

A posse não deu sinais relevantes. Não fora o anúncio, absolutamente deslocado, da venda de aspirinas e consortes nos supermercados, e não teria havido mácula. Sem brilho ou nódoa, é o que se espera de uma cerimónia destas. Tudo se passou com aquela nota difícil, entre o "Suficiente" e o "Bom". O Parlamento, dentro de dias, é o local indicado para as provas de substância. E fica, deste dia, uma promessa de Sócrates que valerá a pena ser lembrada: a de não ser vingativo ou rancoroso, a de não pretender ajustar contas com os governos anteriores.

De qualquer maneira, vale a pena olhar para estes dias que passaram. Um momento fundador, ou pelo menos revelador, é o da noite das eleições. Foi, para qualquer partido, um dos mais expressivos resultados de sempre. Nunca uma vitória tinha sido, para os socialistas, tão desejada e tão retumbante. Mas também, tão pouco festejada. No Marquês de Pombal, as gruas das televisões esperaram inutilmente. Ninguém apareceu. Não havia festa que valesse as imagens. Longe vão os tempos de correrias pela cidade, das festas da Alameda ou da Torre de Belém. A verdade é que os eleitores têm receio. Sabem que isto está difícil. Quem estava feliz por se ter visto livre de Santana Lopes, contentou-se com um copo em casa. Quem queria a vitória dos socialistas não sentiu emoções suficientes, nem no feito nem no líder. As esquerdas do PS e as outras duas queriam a vitória, mas sem maioria absoluta: com esta, foi-se o sonho da unidade de esquerda. Ninguém sentiu ou viu razão bastante para comemorar nas ruas. As pessoas têm receio. Sentem insegurança. Receiam perder o que conquistaram nestes últimos dez ou vinte anos. Sentem que, desta vez, talvez seja a sério.

Deixemos para mais tarde as provas que este governo tem de dar. De competência, de estabilidade, de seriedade, da capacidade de planeamento a vários anos, de firmeza, de isenção, de compaixão, de respeito pelas liberdades e de autoridade. Sobre tudo isso, há expectativa e poucas certezas. Mesmo para alguns objectivos concretos, serão precisos meses: o investimento, o desemprego, as filas de espera na saúde, a colocação de professores... Não falta matéria. Mas há uma prova imediata à qual podemos desde já estar atentos. Uma prova que não se compadece com retórica parlamentar, grandes entrevistas, frases feitas ou interpretações subjectivas. É a prova das nomeações da alta Administração Pública: directores-gerais e seus vices ou adjuntos; presidentes e seus vices ou vogais; comissários, conselheiros, encarregados de missão, inspectores-gerais, administradores por parte do Estado e outros. Se este governo fizer como todos, digo bem, todos os antecessores, podemos perder a esperança. E se continuar a considerar a "confiança política" como o critério de selecção dos altos funcionários, está simplesmente a arranjar emprego para umas centenas de camaradas e uns milhares compadres.

Este assunto merece evidentemente horas de meditação e páginas de discussão. Merece estudo e imaginação. Mas nada disso é motivo para que se continue a persistir, desde Salazar, no vício da confiança política. Há maneiras, mil e uma, para verificar se as decisões dos governantes estão ou não a ser seguidas e respeitadas pelos serviços. Os governantes têm maneiras, muitas, de se fazer rodear de pessoal e de gabinetes de apoio que lhe permitam ter uma informação rigorosa sobre a acção dos serviços e perceber se estes cumprem os seus deveres ou se boicotam. Nada justifica, a não ser a volúpia partidária e a tentação predadora, que a confiança política se tenha transformado na regra universal aceite por todos os partidos.

O mais importante, no capítulo da Reforma Administrativa, não é o emagrecimento do Estado, nem os privilégios excessivos da função pública diante do sector privado. Para isso, que é importante, são necessários meios e tempo. Tal como para a simplificação e racionalização de procedimentos administrativos que massacram a população. Mas o mais importante, imediatamente e com efeitos a longo prazo, é a isenção política da Administração ou a sua independência partidária. Há no mundo experiências e exemplos que podem ser estudados e devidamente adaptados às nossas condições. A confiança política da Administração Pública é uma espécie de "pecado original" que marca toda a sua actuação e que, em última instância, se transforma em fonte de corrupção, favoritismo e desperdício. Se o "ethos" da Administração é a confiança política e não a isenção, não faz sentido pedir-lhe que cumpra lealmente o serviço público.

E não me digam que uma "vitória eleitoral implica uma mudança de pessoal dirigente". Ou que a Administração tem também de "estar submetida à legitimidade popular" por via do partido mais votado. Essas desculpas são próprias da complacência reinante que chega a encontrar justificações teóricas e democráticas para a rapina organizada. E também não me digam que os socialistas já deram, em tempos do fugitivo Guterres, exemplos de isenção, quando aprovaram uma lei que tornava necessários os concursos para os cargos de chefia. Primeiro, porque esse sistema aplicava-se apenas ao segundo escalão e vigorava em simultâneo com a confiança política para os mais altos cargos de chefia. Segundo, porque essa lei só foi aprovada anos depois de iniciado o governo respectivo, isto é, depois de terem sido asseguradas todas as nomeações dos camaradas. Neste domínio, ninguém é inocente.
António Barreto