25 DE ABRIL QUASE COMO UM CONTO DE FADAS
Pasmo de como crescem aqui estas flores de oiro, como abrem ali aquelas tão vermelhas e como os nossos corpos fazem desenhos no muro. Uma dança de roda sobre o muro.
- Avô! És tão grande no muro, se o sol te estica um pouco mais na sombra, bates com a cabeça no céu.
Brincámos toda a tarde, entrar e sair da sombra e expor o corpo ao sol no prado. Quando as nossas sombras se juntam no muro, ao fim da tarde, lembram-me um cravo vermelho.
Quando a lua se vestiu com cristais de sol a noite ficou numa imensa manta de brilhantes retalhos, eu perguntei ao meu avô:
- Porque é que há tantas estrelas no céu? Umas pequenas, outras grandes, agora que a noite avança são tantas, tantas, tantas...é uma para cada um de nós avô?
- Deixa-me deitar a cabeça no teu colo e conta-me um conto dos teus.
- Sorrindo e acariciando os meus cabelos, o meu avô pôs-se a recordar:
-Era assim, numa noite em nada igual à de hoje.
O teu avô aguardava estirado no meio da seara, num monte como aquele além, a chegada do mensageiro que transportava um tesouro dentro de uma caixinha de madeira.
Grandes homens aqueles, durante anos a fio esconderam-se e aproveitavam a noite para nos ensinar a pensar a nossa vida. Um naco de pão, meia dúzia de azeitonas e as oliveiras carregadinhas. Era assim naquele tempo. Ainda me lembro! No dia anterior, a tua avó dera à luz o Joaquim!
Meia hora antes do menino nascer, ainda estava no arroz atascada até à cintura.
- "Vou ali e já venho!"
- Ainda a ouço, aqui nos meus ouvidos. Foi só o tempo de chegar a casa e o Joaquim, o teu pai, aí estava.
- E o teu amigo, a que horas chegou?
- Nessa noite não veio. Soubemos que o António tinha sido preso pela PIDE, mas os mensageiros continuaram a chegar com a malinha cheia de jornais, traziam dizeres, notícias que se a gente não as lera nunca houvera de saber o que se passava por esta terra ao abandona.
O meu avô adormeceu e a história ficou a meio.
- Pai, não gosto do Inverno, entristece o coração dos dias e o sol desaparece logo.
- Onde está agora o sol? Dentro do mar das montanhas? Em que país? Há lá meninos felizes como eu, como a Primavera, o dia, a praia, a liberdade?
- Pai conta-me a história dos homens que pareciam cavalos que voavam no escuro, naquela madrugada em que eu nasci.
Enrolei-me no corpo do meu pai como a noite se enrola, na terra, num xaile de erva sobre o prado, e o meu pai, comigo nos braços começou:
- Ao romper do lindo sol, era uma vez um soldadinho.
- Conta, pai, era uma vez, um, dois, três...
- Há dez anos, era uma vez um menino soldado, muitos meninos soldados que quiseram acabar com a guerra e com o medo.
- Pai, eu tenho dez anos como a história do soldadinho!
- Os soldadinhos não queriam que os meninos como tu fossem à guerra daqui a dez anos.
Na aldeia, toda a mocidade abalara para a guerra.
Em navios partiam de Lisboa. O teu pai também por lá andou durante três anos. Desde o primeiro dia a tua mãe e a tua avó bordaram a colcha de renda com o pensamento em África, cada laçada uma lágrima e a colcha ficou cheia de soluços.
- Então é por isso que a colcha está cheia de altinhos! Esperaste muitas noites avô?
- Todos os meses no escuro, para me entreter falava com as formigas, as flores, as pedras. Quando havia lua cheia lia livros deitado sobre a terra de barriga para baixo, e brincava com um cágado que andava por ali à roda do sobreiro. O teu avô, punha-lhe uma bolota em cima e contava pontos até que o cágado a deixasse cair. O máximo que ele aguentou foi trinta e sete.
- Assim, o tempo passava mais depressa e os sustos ficavam mais levezinhos.
- Grandes homens! Eles bem diziam que um dia não haveríamos de precisar da noite para nos escondermos.
- Esperámos muito tempo, mas não perdemos a esperança, fizemos empenho em que tudo um dia mudasse.
- Tu gostas de mim como o soldadinho gosta de nós no conto?
- Como no conto, querido, como no conto.
O sol voltou ao céu, foi-se embora a noite. No muro, a sombra desenha um soldadinho com uma espingarda carregada de cravos e um menino como eu pela sua mão.
Por um instante, o sol fez desaparecer o desenho, tenho frio, mas sei que o sol vai voltar. Por um instante, o sol desenha novamente os nossos corpos no muro, o meu, o de meu pai, da minha mãe, do meu avô e dos meus irmãos, uma dança de roda com cantigas de liberdade.
- Eu já não vou à guerra, pai?
- Não, meu filho, agora em África constróem fábricas e campos de trigo. E as pessoas cantam e dançam com as pombas brancas da Paz.
- E onde estão agora os soldadinhos?
- Os soldadinhos ficaram no coração da nossa memória. Foi com a força daqueles que pudemos tomar as terras e organizar a nossa cooperativa, transformámos o mato em lindas searas, abrimos a estrada que nos leva à vila, fizemos festas, contruímos a creche onde tu andaste e arranjámos a escola primária. Havia trabalho e comer para todos.
- Vamos, pai. Vamos ter com o soldadinho! Vamos no cavalo da manhã, entre o trigo e o mar!
- Tudo o que aconteceu durante estes dez anos é como um conto, pai?
- Quase tudo, quase como um conto de fadas de princípio, mas nem tudo depois foi como um conto.
- O soldadinho gostava de nós como tu gostas de mim?
O pai sorri.
Texto: CONCEIÇÃO LOPES
Ilustrações: CARLOS BARRADAS
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home