sexta-feira, 22 de abril de 2005

25 DE ABRIL QUASE COMO UM CONTO DE FADAS

Saímos da sombra e expusemo-nos ao sol, eu, meu pai, minha mãe, meu avô e meus irmãos. Ao sol no prado, junto ao muro, na erva nova, no silêncio que parece um pasmo.
Pasmo de como crescem aqui estas flores de oiro, como abrem ali aquelas tão vermelhas e como os nossos corpos fazem desenhos no muro. Uma dança de roda sobre o muro.
- Avô! És tão grande no muro, se o sol te estica um pouco mais na sombra, bates com a cabeça no céu.
Brincámos toda a tarde, entrar e sair da sombra e expor o corpo ao sol no prado. Quando as nossas sombras se juntam no muro, ao fim da tarde, lembram-me um cravo vermelho.
Quando a lua se vestiu com cristais de sol a noite ficou numa imensa manta de brilhantes retalhos, eu perguntei ao meu avô:
- Porque é que há tantas estrelas no céu? Umas pequenas, outras grandes, agora que a noite avança são tantas, tantas, tantas...é uma para cada um de nós avô?
- Deixa-me deitar a cabeça no teu colo e conta-me um conto dos teus.
- Sorrindo e acariciando os meus cabelos, o meu avô pôs-se a recordar:


-Era assim, numa noite em nada igual à de hoje.
O teu avô aguardava estirado no meio da seara, num monte como aquele além, a chegada do mensageiro que transportava um tesouro dentro de uma caixinha de madeira.
Grandes homens aqueles, durante anos a fio esconderam-se e aproveitavam a noite para nos ensinar a pensar a nossa vida. Um naco de pão, meia dúzia de azeitonas e as oliveiras carregadinhas. Era assim naquele tempo. Ainda me lembro! No dia anterior, a tua avó dera à luz o Joaquim!
Meia hora antes do menino nascer, ainda estava no arroz atascada até à cintura.
- "Vou ali e já venho!"
- Ainda a ouço, aqui nos meus ouvidos. Foi só o tempo de chegar a casa e o Joaquim, o teu pai, aí estava.
- E o teu amigo, a que horas chegou?
- Nessa noite não veio. Soubemos que o António tinha sido preso pela PIDE, mas os mensageiros continuaram a chegar com a malinha cheia de jornais, traziam dizeres, notícias que se a gente não as lera nunca houvera de saber o que se passava por esta terra ao abandona.


O meu avô adormeceu e a história ficou a meio.
- Pai, não gosto do Inverno, entristece o coração dos dias e o sol desaparece logo.
- Onde está agora o sol? Dentro do mar das montanhas? Em que país? Há lá meninos felizes como eu, como a Primavera, o dia, a praia, a liberdade?
- Pai conta-me a história dos homens que pareciam cavalos que voavam no escuro, naquela madrugada em que eu nasci.
Enrolei-me no corpo do meu pai como a noite se enrola, na terra, num xaile de erva sobre o prado, e o meu pai, comigo nos braços começou:
- Ao romper do lindo sol, era uma vez um soldadinho.
- Conta, pai, era uma vez, um, dois, três...
- Há dez anos, era uma vez um menino soldado, muitos meninos soldados que quiseram acabar com a guerra e com o medo.
- Pai, eu tenho dez anos como a história do soldadinho!
- Os soldadinhos não queriam que os meninos como tu fossem à guerra daqui a dez anos.


Na aldeia, toda a mocidade abalara para a guerra.
Em navios partiam de Lisboa. O teu pai também por lá andou durante três anos. Desde o primeiro dia a tua mãe e a tua avó bordaram a colcha de renda com o pensamento em África, cada laçada uma lágrima e a colcha ficou cheia de soluços.
- Então é por isso que a colcha está cheia de altinhos! Esperaste muitas noites avô?
- Todos os meses no escuro, para me entreter falava com as formigas, as flores, as pedras. Quando havia lua cheia lia livros deitado sobre a terra de barriga para baixo, e brincava com um cágado que andava por ali à roda do sobreiro. O teu avô, punha-lhe uma bolota em cima e contava pontos até que o cágado a deixasse cair. O máximo que ele aguentou foi trinta e sete.
- Assim, o tempo passava mais depressa e os sustos ficavam mais levezinhos.
- Grandes homens! Eles bem diziam que um dia não haveríamos de precisar da noite para nos escondermos.
- Esperámos muito tempo, mas não perdemos a esperança, fizemos empenho em que tudo um dia mudasse.


- Tu gostas de mim como o soldadinho gosta de nós no conto?
- Como no conto, querido, como no conto.
O sol voltou ao céu, foi-se embora a noite. No muro, a sombra desenha um soldadinho com uma espingarda carregada de cravos e um menino como eu pela sua mão.
Por um instante, o sol fez desaparecer o desenho, tenho frio, mas sei que o sol vai voltar. Por um instante, o sol desenha novamente os nossos corpos no muro, o meu, o de meu pai, da minha mãe, do meu avô e dos meus irmãos, uma dança de roda com cantigas de liberdade.


- Eu já não vou à guerra, pai?
- Não, meu filho, agora em África constróem fábricas e campos de trigo. E as pessoas cantam e dançam com as pombas brancas da Paz.
- E onde estão agora os soldadinhos?
- Os soldadinhos ficaram no coração da nossa memória. Foi com a força daqueles que pudemos tomar as terras e organizar a nossa cooperativa, transformámos o mato em lindas searas, abrimos a estrada que nos leva à vila, fizemos festas, contruímos a creche onde tu andaste e arranjámos a escola primária. Havia trabalho e comer para todos.
- Vamos, pai. Vamos ter com o soldadinho! Vamos no cavalo da manhã, entre o trigo e o mar!
- Tudo o que aconteceu durante estes dez anos é como um conto, pai?
- Quase tudo, quase como um conto de fadas de princípio, mas nem tudo depois foi como um conto.
- O soldadinho gostava de nós como tu gostas de mim?
O pai sorri.

Texto: CONCEIÇÃO LOPES

Ilustrações: CARLOS BARRADAS