segunda-feira, 13 de junho de 2005

ÁLVARO CUNHAL [ 1913-2005 ]


De pé, ó vítimas da fome!
De pé, famélicos da terra!
Da ideia a chama já consome
A crosta bruta que a soterra.
Cortai o mal bem pelo fundo!
De pé, de pé, não mais senhores!
Se nada somos neste mundo,
Sejamos tudo, oh produtores!

Bem unidos façamos,
Nesta luta final,
Duma Terra sem amos
A Internacional.

Messias, Deus, chefes supremos,
Nada esperemos de nenhum!
Sejamos nós quem conquistemos
A Terra-Mãe livre e comum!
Para não ter protestos vãos,
Para sair deste antro estreito,
Façamos nós por nossas mãos,
Tudo o que a nós diz respeito


Álvaro Barreirinhas Cunhal, nascido em Coimbra, em 10 de Novembro de 1913, hoje falecido aos 91 anos, morreu comunista como resolveu sê-lo aos 17 anos.
A sua vida confunde-se com a do Partido Comunista Português, para o qual foi sempre uma referência, mesmo depois de ter cedido a sua cadeira de secretário-geral, em Dezembro de 1992.
O pai de Álvaro, Avelino Cunhal, era advogado de província tendo chegado a governador civil da Guarda.Fez a primária em casa, mas aos 11 anos, a família mudou- se para Lisboa, tendo estudado nos liceus Pedro Nunes e Camões.
Em 1931, com 17 anos, ingressou na Faculdade de Direito de Lisboa e, eleito representante dos estudantes de Lisboa no Senado Universitário, a sua primeira proposta foi acabar com a Mocidade Portuguesa.
No mesmo ano filiou-se no PCP, entrou para a Liga dos Amigos da URSS e do Socorro Vermelho Internacional e depressa subiu os degraus da organização do partido.
Em 1935 já era secretário-geral das Juventudes Comunistas e no ano seguinte entrava para o Comité Central, que o enviou a Espanha, onde viveu os primeiros meses da guerra civil, uma experiência que o inspirou para o seu romance "A Casa de Eulália".
Aos 24 anos, em 1937, sofre a primeira prisão, no Aljube e Peniche.
Por questões políticas foi obrigado ao serviço militar (início de Dezembro de 1939) na Companhia Disciplinar de Penamacor, mas por motivos de saúde, a junta militar dispensou-o pouco depois.
Em Maio de 1940 foi novamente preso.
Estudou na cela e foi à Faculdade, sob escolta policial, defender a sua tese (100 páginas, confiscadas depois pela PIDE) sobre a realidade social do aborto e a sua despenalização.
Os examinadores Paulo Pita e Cunha, Cavaleiro Ferreira e Marcelo Caetano (que vieram a integrar o consulado de Salazar) deram-lhe 19 valores.
Em 1941, trabalhou como regente de estudos no Colégio Moderno, a convite de João Soares e chegou a dar explicações a Mário Soares, mas, no final do ano, passa à clandestinidade.
Até 1947 conseguiu pôr de pé o partido, restabelecer as relações com a Internacional Comunista (interrompidas em 1938) e ganhou todos os "desvios internos", sendo mesmo o responsável pelo relatório político apresentado no II e IV Congressos.
Preso de novo pela PIDE em 1949, no ano seguinte é levado a julgamento e é condenado a quatro anos de prisão maior celular, seguida de oito anos de degredo.
Na prisão escreve e desenha. Esteve mais de oito anos isolado numa cela.
"Quando se tem um ideal o mundo é grande em qualquer parte", lembraria mais tarde.
A 03 de Janeiro de 1960 foge, com outros camaradas, do Forte de Peniche, uma fuga espectacular e novo período de clandestinidade.
No ano seguinte é eleito secretário-geral (cargo vago desde 1942).
E, mesmo vivendo no exílio, entrou e saiu várias vezes do País e consegue publicar em 1964 o "Rumo à Vitória", cujas teses ainda perduram no núcleo duro do PCP.
Cinco dias após o 25 de Abril de 1974, Cunhal regressou a Lisboa, vindo de Paris, para a 15 de Maio tomar posse como ministro sem pasta no governo provisório.
Entre 1975 e 1992 foi deputado à Assembleia da República, mas só por curtos períodos ocupou o lugar na sua bancada.
Em 1982, torna-se membro do Conselho de Estado, cargo que abandonou em 1992, ano em que cedeu liderança do PCP a Carlos Carvalhas, para passar a presidente nacional do Conselho Nacional do partido, um cargo criado à sua medida e extinto anos depois.
Passou incólume aos desaires internos: o "grupo dos seis" e a "terceira via" em 1986; em 88 o caso Zita Seabra, que acaba por ser expulsa dois anos depois.
Foi operado a um aneurisma da aorta, em 1989, em Moscovo.
Quando regressa a Portugal, o partido sofre sucessivos contratempos: o grupo do INES e a "quarta via", a queda do muro de Berlim e a "perestroika".
Livre das luzes da ribalta partidária, nem por isso deixou de influenciar os destinos dos comunistas portugueses, embora tenha assumido claramente apenas a sua condição de romancista e esteta.
Os seus contactos com jovens multiplicaram-se, mas tiveram de passar 28 anos sobre o 25 de Abril para Cunhal ser convidado a falar na Universidade Católica (1997), onde surpreendeu todos ao dizer que Jesus Cristo se sentiria mais próximo dos comunistas.
Com obras publicadas como ideólogo do marxismo-leninismo (entre as quais "Rumo à Vitória" e "Partido com Paredes de Vidro"), só em 1995 reconheceu publicamente ser ele o Manuel Tiago da ficção literária "Até amanhã Camaradas", "Cinco Dias e Cinco Noites", "Estrela de Seis Pontas" e "A Casa de Eulália" e o António Vale que assinava temas plásticos e fazia desenhos como as suas célebres ceifeiras.
Após a aprovação no Comité Central do "Novo Impulso", um documento que em 1998 imprimia um sentido renovador às linhas de orientação do partido para os anos seguintes, Álvaro Cunhal fez uma ronda de sessões de esclarecimento pelo país, alertando contra as "tendências de social-democratização" no PCP.
Dois anos depois, e por motivos de saúde, Cunhal faltou pela primeira vez à Festa do Avante e pela mesma razão ao XVI Congresso do PCP.
Mesmo ausente, marcou os trabalhos, ao enviar um documento em que reafirmava a actualidade do marxismo-leninismo.
Nos últimos anos esteve sempre afastado da cena política devido à sua avançada idade e ao seu estado de saúde.
Em Novembro último, voltou a enviar uma nova mensagem ao XVII Congresso, também saudada de pé pelos militantes.
Álvaro Cunhal teve uma filha única, Ana (a mãe foi a sua companheira de exílio Isaura Dias) embora a mulher dos seus últimos anos fosse Fernanda Barroso.

José Pacheco Pereira

5 Comments:

At 14 de junho de 2005 às 11:12, Anonymous Anónimo said...

É engraçado :) tantas honras a quem tentou apagar a história do próprio "partido que tanto amava"...

 
At 14 de junho de 2005 às 13:44, Anonymous Anónimo said...

Margarida, 84 anos, foi das primeiras. Está ainda sentada, um cravo vermelho na mão, na outra a bengala. Quer falar com alguém "da velha guarda". Mas estão todos para o enterro de Vasco Gonçalves.
Não é comunista. Às vezes vota PS. Da última vez, fê-lo no Bloco de Esquerda. Não veio, portanto, por si. Mas pelo marido, velho historiador antifascista, 15 anos de exílio, e o regresso à pátria no mesmo avião de Cunhal. Lembra-se bem. Dos dois "chochos" que lhe espetou na cara, no aeroporto Charles de Gaulle. Da mudança súbita de voo da Tap, de manhã, para um Air France, à tarde, para que Cunhal não fizesse todo aquele Paris-Lisboa "no mesmo avião em que estava previsto que viessem uns radicais" (José Mário Branco, entre outros), e assim se evitassem "complicações".
É em nome do marido, o historiador Joaquim Barradas de Carvalho, falecido no início da década de 80 e ele sim, comunista, que Margarida deixa no livro a recordação daquele dia 30 de Abril de 1974, em que viajou no mesmo avião da Air France, do exílio em Paris para Lisboa, onde o regime, enfim, caíra. Uma evocação que, coincidências que vá lá a gente perceber, não fica longe destoutra de Maria, "funcionária da TAP", que naquela mesma hora do regresso de há trinta anos o esperava "para lhe prestar assistência", no aeroporto da Portela. "Simples simpatizante", nesse tempo, ela aqui está agora a escrever-lhe "obrigada por tantos sonhos".

 
At 14 de junho de 2005 às 14:47, Anonymous Anónimo said...

Tão magro, de magreza impressionante, chupado a face fina e severa, as mãos nervosas, dessas mãos que falam, mal penteado o cabelo, um homem jovem mas fisicamente sofrido, homem de noites mal dormidas, de pouso incerto, de responsabilidades imensas e de trabalho infatigável, eu o vejo, sentado ao outro lado da mesa, diante de mim, falando com a sua voz um pouco rouca, os olhos ardentes no fundo de um longo e sempre vencido cansaço, e o vejo agora como há cinco anos passados, sua impressionante e inesquecível imagem: Álvaro Cunhal, conhecido por Duarte, o revolucionário português. Falava sobre Portugal, sobre que poderia falar?
Sua paixão e sua tarefa: libertar o povo português da humilhação salazarista, libertar Portugal dessa já tão larga noite de desgraça, de silêncios medrosos, de vozes comprimidas, de alastrada e permanente fome do povo, de corvos clericais comendo o estômago do país, de tristes inquisidores saídos dos cantos mal iluminados das sacristias e da História para oprimir o povo e vendê-lo à velha cliente inglesa ou ao novo senhor norte-americano. Sua paixão e sua tarefa: fazer de Portugal outra vez um país independente e do povo português um povo novamente livre e farto e dono da sua natural alegria.
Ah! Aqueles cansados olhos fundos sorriam e a voz estrangulada de cólera se abria em doçura de palavras de amor para falar de Portugal e do povo português. Eu compreendia que aquele homem de magreza impressionante, de físico combalido pela dura ilegalidade perseguida, era o seu próprio país, seu próprio povo e que, com seu cansaço, sua fadiga de anos, sua rouca voz de velho sono, suas mãos ossudas, eles estava construindo a vida, o dia de amanhã, o mundo novo a nascer das ruínas fatais do salazarismo.
Como era terno seu sorriso ao falar das festas populares nas aldeias do Minho ou dos homens rudes de Trás-os-Montes! Conhecia tudo do seu país e do seu povo, tudo o que era autentico de Portugal, desde o mar-oceano com a sua história portuguesa e gloriosa até as vinhas ao sol e as cantigas e os poemas dos poetas reduzidos na sua grandeza pela censura fascista; desde as histórias heróicas dos militantes presos, torturados até à loucura e à morte, as tenebrosas histórias do Tarrafal, o campo de concentração mais antigo e mais cruel da Europa, até às doces histórias de amor da província portuguesa, com um sabor romântico das velhas legendas.

Contou-me coisas de espantar com sua voz ora doce, grávida de ternura, ora violenta de cólera desatada quando falava da fome dos trabalhadores, da opressão salazarista sobre o povo, da opressão imperialista sobre a sua pátria de primavera e mar.
(...)
os comunistas portugueses, heróis anónimos do povo, os invencíveis, os que estão rasgando a noite fascista com a lâmina de sua audácia e de sua certeza para que novamente o sol da liberdade ilumine o país dos pescadores e das uvas. De um me disse: «Esse esteve no Brasil e aprendeu com vocês»
(...)
Falou do campo, dos homens que habitam as montanhas, daqueles que Ferreira de Castro, o grande romancista, descreveu em «Terra Fria» e «A Lã e a Neve». (...) Falou dos operários das cidades daqueles que Alves Redol descreveu em seus magníficos romances e contou da sua irredutível resistência ao regime salazarista. (...)
Naquela tarde como que me apossei por inteiro de Portugal, do melhor Portugal, do Portugal eterno, como se Álvaro Cunhal o trouxesse nas suas mãos ossudas, tão descarnadas e nervosas, como se trouxesse – e o trazia em verdade – no seu coração de revolucionário e patriota.
Voltei a vê-lo ainda uma vez, dias depois, e a longa conversa sobre Portugal continuou. Falou-me dos escritores, dos plásticos, dos pescadores, fadistas, e sobretudo da luta subterrânea, dura e difícil e jamais vencida. (...)
Veio o processo, dentro dos métodos infames dos tribunais fascistas. Ali se ergueu Álvaro Cunhal (Militão morrera de torturas) e não era o réu, era o acusador, a voz de fogo a queimar o vergonhoso rosto dos carrascos do seu povo, dos vendilhões da sua pátria.
(...)
Pretendem matá-lo e nós sabemos que são frios assassinos os que querem matá-lo. É uma vida preciosa, preciosa para Portugal e para o mundo, ajudemos o povo português a salvá-la!
(...)
Há alguns meses eu estava em frente ao mar Pacífico, na costa sul do Chile, em Isla Negra, em casa de Pablo Neruda, meu companheiro de lutas de esperança. Uma figura de proa de barco se elevava em frente ao mar de ondas altas e violentas. Por isso falámos de Portugal e do seu destino marítimo. Contei ao poeta sobre Cunhal e Pablo levantou-se, deixou-me com o pescador que parara para escutar-nos e quando voltou havia escrito esse maravilhoso poema que é «A Lâmpada Marinha» sobre Portugal, seu povo, Álvaro Cunhal e o dia luminoso de amanhã»
(...)
Hoje o mais bravo dos filhos desse povo heróico, aquele que tudo sacrificou para ser fiel à esperança do povo está com sua vida ameaçada.»

JORGE AMADO

La Lámpara Marina

ventanas,
salpicadas del oro limonero,
del azul ultramar de los navíos.

Cuando tú desembarcas
no conoces,
no sabes que detrás de las ventanas
escuchan,
rondan
carceleros de luto,
retóricos, correctos,
arreando presos a las islas,
condenando al silencio,
pululando
como escuadras de sombras
bajo ventanas verdes,
entre montes azules,
la policía
bajo las otoñales cornucopias
buscando portugueses,
rascando el suelo,
destinando los hombres a la sombra.

II
La Cítara Olvidada

Oh Portugal hermoso
cesta de fruta y flores,
emerges
en la orilla plateada del océano,
en la espuma de Europa,
con la cítara de oro
que te dejó Camoens,
cantando con dulzura,
esparciendo en las bocas del Atlántico
tu tempestuoso olor de vinerías,
de azahares marinos,
tu luminosa luna entrecortada
por nubes y tormentas.

III
Los presidios

Pero,
portugués de la calle,
entre nosotros,
nadie nos escucha,
sabes
dónde
está Álvaro Cunhal?
Reconoces la ausencia
del valiente
Militão?
Muchacha portuguesa,
pasas como bailando
por las calles
rosadas de Lisboa,
pero,
sabes dónde cayó Bento Gonçalves,
el portugués más puro,
el honor de tu mar e de tu arena?
Sabes
que existe
una isla,
la isla de la Sal,
y Tarrafal en ella
vierte sombra?
Sí, lo sabes, muchacha,
muchacho, sí, lo sabes.
En silencio
la palabra
anda con lentitud pero recorre
no sólo el Portugal, sino la tierra.
Sí, sabemos,
en remotos países,
que hace treinta años
una lápida
espesa como tumba o como túnica
de clerical murciélago,
ahoga, Portugal, tu triste trino,
salpica tu dulzura
con gotas de martirio
y mantiene sus cúpulas de sombra.

IV
El Mar Y Los Jazmines

De tu mano pequeña en otra hora
salieron criaturas
desgranadas
en el asombro de la geografia.
Así volvió Camoens
a dejarte una rama de jazmines
que siguió floreciendo.
La inteligencia ardió como una viña
de transparentes uvas
en tu raza.

Guerra Junqueiro entre las olas
dejó caer su trueno
de libertad bravía
que transportó el océano en su canto,
y otros multiplicaron
tu esplendor de rosales y racimos
como si de tu territorio estrecho
salieran grandes manos
derramando semillas
para toda la tierra.

Sin embargo,
el tiempo te ha enterrado.
El polvo clerical
acumulado en Coimbra
cayó en tu rostro
de naranja oceánica
y cubrió el esplendor de tu cintura.

V
La Lámpara Marina

Portugal,
vuelve al mar, a tus navíos,
Portugal, vuelve al hombre, al marinero,
vuelve a la tierra tuya, a tu fragancia,
a tu razón libre en el viento,
de nuevo
a la luz matutina
del clavel y la espuma.
Muéstranos tu tesoro,
tus hombres, tus mujeres.
No escondas más tu rostro
de embarcación valiente
puesta en las avanzadas de Océano.
Portugal, navegante,
descubridor de islas,
inventor de pimientas,
descubre el nuevo hombre,
las islas asombradas,
descubre el archipélago en el tiempo.

La súbita
aparición
del pan
sobre la mesa,
la aurora,
tú, descúbrela,
descubridor de auroras.
Cómo es esto?
Cómo puedes negarte
al ciclo de la luz tú que mostraste
caminos a los ciegos?

Tú, dulce y férreo y viejo,
angosto y ancho padre
del horizonte, cómo
puedes cerrar la puerta
a los nuevos racimos
y al viento con estrellas del Oriente?

Proa de Europa, busca
en la corriente
las olas ancestrales,
la marítima barba
de Camoens.
Rompe
las telaranãs
que cubren tu fragrante arboladura,
y entonces
a nosotros los hijos de tus hijos
aquellos para quienes
descubriste la arena
hasta entonces oscura
de la geografía deslumbrante,
muéstranos que tú puedes
atravesar de nuevo
el nuevo mar oscuro
y descubrir al hombre que ha nacido
en las islas más grandes de la tierra.

Navega, Portugal, la hora
llégó, levanta
tu estatura de proa
y entre las islas y los hombres vuelve
a ser camino.


En esta edad agrega
tu luz, vuelve a ser lámpara:
aprenderás de nuevo a ser estrella.


Pablo Neruda
Poema extraído de Obras Completas, 3ª ed. aumentada, Buenos Aires, Editorial Losada, Col. Cumbre, 1967

 
At 15 de junho de 2005 às 15:17, Anonymous Anónimo said...

Até Sempre Camaradas!

Portugal está mais pobre!

No espaço de 72 horas, de sábado a segunda-feira, a Pátria perdeu três dos seus maiores vultos.

Álvaro Cunhal, 1913-2005.
Vasco Gonçalves, 1922-2005.
Eugénio de Andrade, 1923-2005.

Morreram TRÊS HOMENS Probos!

Independentemente das divergências políticas que possam existir com os dois primeiros, todos lhe terão de fazer justiça e reconhecerem o seu carácter impoluto e os seus valores: probidade, verticalidade, coerência, coragem, solidariedade, determinação, espírito de sacrifício e uma inteligência superior. Foram visionários empenhados.

Qualquer deles polarizou os portugueses nos últimos trinta anos, tudo disseram de si, excepto que alguma vez tenham tirado benefícios pessoais das suas acções, que foram fru-to apenas das suas convicções, são políticos de mãos limpas.

Eugénio de Andrade é um gigante da cultura portuguesa, não despertou paixões nem inimizades, quem o conhece não lhe questiona o mérito. Depois de Fernando Pessoa é o poe-ta português mais traduzido para deleite de várias culturas.

Prémio Pessoa 2001, fica conhecido como o Poeta do Silêncio, a sua grandeza transcende os limites deste pequeno rectângulo à beira-mar plantado. Podemos orgulhar-nos de, através dele, estarmos representados com excelência na Cultura Universal.

Vasco Gonçalves, engenheiro de formação, o único oficial superior que participou activamente no Movimento dos Capitães, foi juntamente com Melo Antunes o redactor do programa do Movimento que levou ao 25 de Abril de boa memória.

Membro da Comissão Coordenadora do MFA, foi primeiro-ministro de três governos provisórios.

Saídos do fascismo e com um conflito colonial que consumia as nossas melhores energias, muita da nossa juventude e mais de 60 por cento do Orçamento Geral do Estado, numa época em que o céu parecia ser o limite o companheiro Vasco liderou um controverso processo de transformação social.

Num país parado no tempo em que nada acontecia, inicia-se um processo com grandes convulsões sociais, ao liderá-lo Vasco Gonçalves não deixou ninguém indiferente, o que é próprio das grandes personalidades. Ainda hoje é objecto de grandes amores e ódios. Arrostando com todas as complicações e incompreensões que o seu empenhamento ocasionou, manteve as suas convicções até ao fim, num exemplo de coerência cada vez mais raro.

Álvaro Cunhal, é uma personalidade multifacetada de extrema riqueza. Político e homem de cultura, acumulou a acção política com uma profusa actividade literária e nas artes plásticas, desenho e pintura. Foi simultaneamente secretário-geral do Partido Comunista e seu ideólogo, o escritor Manuel Tiago e o pintor António Vale.

Têm fama merecida os seus desenhos na prisão e os seus romances “Até Amanhã Camaradas” e “Cinco Dias Cinco Noites”, num estilo neo-realista, transmitem as experiências da luta contra o fascismo na clandestinidade. Estas obras foram adaptadas ao cinema ou à televisão sob a sua supervisão, o que aumentou a sua notoriedade, com agrado geral.

Quem o conheceu pessoalmente testemunha o seu fácies como que talhado na pedra, de uma dureza que transmitia uma grande determinação. Ao primeiro contacto era daquelas pessoas que suscitava fascínio ou um desagrado profundo, mas não deixava ninguém indiferente.

Ascético, durante mais de 30 anos liderou um partido que teve um papel fundamental na luta antifascista e na transformação para o Portugal Democrático de hoje.

Parafraseando Churchill no fim da Batalha de Inglaterra, nunca tantos deveram tanto a tão poucos. A sua fortaleza de espírito foi fundamental para resistir a uma prisão de 11 anos no forte de Peniche, dos quais 8 em completo isolamento.

Com toda a Honra e Glória, em nenhuma altura cedeu aos interrogatórios e traiu os seus ideais ou os camaradas!

Nem uma só prisão ou êxito policial contra a luta antifascista foi conseguida com a sua colaboração, infelizmente para ele teve várias vezes oportunidade de aplicar as suas teses defendidas na obra “Se fores preso camarada!”.

Acompanhado de vários camaradas protagonizou uma espectacular fuga da prisão e foi para o exílio, de onde só regressaria em 1974.

Todo o seu percurso é brilhante, desde a sua tese de licenciatura (1940) “Aborto- Causas e Soluções” (que passado mais de 60 anos ainda mantém a actualidade) e que apreciada pelos professores catedráticos da Faculdade de Direito de Lisboa, Paulo Cunha, Cavaleiro Ferreira e Marcello Caetano— alguns deles conhecidos sustentáculos do regímen salazaris-ta— valeu-lhe 19 valores. Os catedráticos ultra-conservadores renderam-se ao génio.

Há que salientar que a defesa da tese foi feita sob escolta policial pois estava preso pelas suas actividades políticas.

Podia ter sido tudo o que quisesse, dedicou toda a sua vida à luta política e ao bem-estar do seu povo.

Por todo este passado, uma elevada percentagem de portugueses sente-se hoje órfão!

Ditosa a Pátria que tais Filhos tem, a nossa vénia perante as suas memórias. O seu desaparecimento empobrece e entristece-nos profundamente. O melhor modo de os honrar é pela nossa acção perpetuarmos os seus valores.

Às famílias enlutadas os meus sentidos pêsames.

 
At 16 de junho de 2005 às 22:31, Anonymous Anónimo said...

Curiosa a tendência portuguesíssima do endeusamento dos que falecem. É obvio que foram importantíssimas figuras no período que conduziu ao 25 de Abril mas não podem ser retiradas do contexto. Se as ambições de Vasco Gonçalves e Álvaro Cunhal fossem concretizadas, secalhar nem teriamos a possibilidade de escrever livremente neste blog.

Quanto a Eugénio de Andrade, figura maior da poesia portuguesa, já está imortalizado pela a sua obra. É tocante a sensibilidade que Eugénio imprime ás suas palavras “gastas”. Aproveito para recomendar a todos uma leitura da sua obra e também da sua antologia de poesia portuguesa.

Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade

 

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