segunda-feira, 13 de junho de 2005

UMA CIMEIRA DE RASTOS

Dentro de poucos dias, a "cimeira" da União vai reunir.
A conversa vai ser difícil. As rivalidades entre os principais dirigentes estão agudas. Os dois tutores da União, Chirac e Schroeder, sentem as coisas escapar entre os dedos. Vão tudo fazer para recuperar o papel que foi o seu, mas, sobretudo o alemão, sob ameaças eleitorais à vista. Vão tentar vingar-se de Tony Blair e dos ingleses em geral, tentando obrigá-los a pagar. Vão bater nos franceses e nos holandeses, dizendo-lhes que os compreenderam, mas nada farão de prático que traduza esse facto. Vão mandar avisos ameaçadores aos povos que ainda não votaram, o dinamarquês, o irlandês, o luxemburguês, o polaco, o checo e o português. Vão sonhar com a hipótese de retomar a Constituição sob outra forma. Vão dizer que tinham razão. Que nada está perdido. Que a Europa prosseguirá na sua via, rumo a uma União cada vez mais estreita. Que a União será, no mundo, a alternativa competitiva aos Estados Unidos. E à Ásia. Uma coisa estes velhos e gastos dirigentes não farão: reconhecer que foram derrotados, que se enganaram, que o caminho que propunham está destruído, que a União e o Euro têm outras vias que importa traçar e percorrer.

VERIFICADOS OS "NÃO", OS ARGUMENTOS dos defensores da Constituição, em toda a Europa, mas também em Portugal, foram patéticos. Em poucas palavras, fomos informados de que os que votaram ou venham a votar "sim" são democratas, europeus, coerentes, leram o tratado, decidiram em consciência a favor do conteúdo da Constituição, sabem o que querem e têm um programa. Pelo seu lado, os que votaram ou votarão "não" são anti-europeus, nacionalistas, soberanistas (?), não leram o tratado, votaram por razões menores e internas, são extremistas de vários bordos, não sabem o que querem e não têm um programa. Além disso, os que votaram "sim" formam uma coligação consciente e racional, são tolerantes, defendem o modelo social europeu e querem competir com os americanos. Os que votaram "não" constituem uma salada russa de neoliberais, fascistas e comunistas ressabiados, são tendencialmente racistas, agrupam facções contraditórias, querem a destruição da União e do euro e lutam contra o modelo social europeu. Nem vale a pena analisar os argumentos, um a um. Quem assim fala, mostra que nada percebeu. Quem assim pensa, teve o que merecia.

HÁ, NO ENTANTO, UM ARGUMENTO que merece mais umas linhas. A ideia de que os franceses e os holandeses (e outros virão?...) votaram exclusivamente por razões internas e, em França, votaram contra Chirac. Muita gente repetiu esta linha, sem se aperceber que se trata de puro paralaxe. Qualquer referendo europeu e qualquer eleição europeia foi sempre, é e será, uma expressão política simultaneamente nacional e europeia. Não há questões europeias independentes das questões nacionais. A Turquia? A segurança social? O desemprego? O racismo? A imigração? O senhor Chirac? São todos problemas nacionais e questões europeias. Chirac tanto é o presidente francês como um presidente sombra da União.

Uma votação europeia constitui uma oportunidade para os cidadãos votarem ao mesmo tempo por razões nacionais e europeias. O que traduz o estatuto híbrido da União. Não é possível votar a favor ou contra uma qualquer "coisa" europeia sem que tal seja personificado ou tome corpo em pessoa, partido, decisão ou política nacionais. Quem votou "não", fê-lo por um conjunto de razões nacionais e europeias. Tal, aliás, como quem votou "sim". Diante do "défice democrático", agora absolutamente esquecido pelos defensores da Constituição, e com absurdas "eleições europeias" sem significado nem consequências, os cidadãos votam nestes referendos por todas as razões imagináveis. Mas, no essencial, votam por uma Gestalt, uma impressão de conjunto, uma ideia global, um vulto e um sentimento geral, não por uma razão singular e concreta. E votam também por desconfiança da elite política, tanto europeia como nacional, que é, aliás, a mesma.

OS ENTUSIASTAS DA CONSTITUIÇÃO tinham sido, há muito, advertidos. De que estavam a ameaçar a União. De que criavam forças centrífugas. De que desencadeariam reacções contrárias de toda a espécie. De que provocariam movimentos nacionalistas e regionais. De que a Constituição era inútil. De que havia alternativas europeias a esta União. De que a consagração do primado dos grandes países era perigosa. De que era mais importante tornar a União flexível. De que era urgente rever as regras da subsidariedade. De que a distância que separa a União dos povos europeus se transformava gradualmente em abismo. De que era preciso dar tempo, décadas, à consolidação das relações livres entre povos e nações. Todos os avisos foram tidos como perversões anti-europeias e, como tal, desprezados. Mas a verdade é que quem avisava tinha razão.

PARA ALÉM DE TUDO QUANTO precede, um dos principais defeitos desta Constituição é a consagração da desigualdade entre Estados. Na forma, nos factos e na lei. Essa é, para um problema difícil, a solução errada. Com efeito, os países são desiguais. Afirmar o contrário é ridículo e absurdo. São desiguais em dimensão, em população, em força militar, em riqueza, em poder económico, em tradições, em projecção externa, em inteligência e em recursos. A desigualdade entre Estados gera a desigualdade de poderes. Mas, ao longo dos tempos, foi-se vivendo uma ficção: a da igualdade entre Estados. Ora, as boas ficções podem ser verdade. Durante uns tempos. Ou para certos fins. E foram-no. Apesar da última instância pertencer aos dois ou quatro grandes Estados, a verdade é que a União conseguiu criar a ilusão de igualdade. Que foi favorável aos pequenos Estados, aos grandes e ao todo. E não se viveu nada mal com isso. Gradualmente, sobretudo a partir do Tratado de Nice, o jogo das potências começou a vir à tona. Com a Constituição, davam-se passos decisivos para começarmos a viver sob a tutela dos grandes. Em dez ou vinte anos, o poder das potências seria absoluto. A ordem política e constitucional dos pequenos e médios Estados seria totalmente posta em subalternidade ou simplesmente destruída. E os parlamentos nacionais esmagados. O que seria uma receita inevitável para a cisão e o desmembramento.

É INÚTIL PENSAR QUE OS ESTADOS, apesar das suas enormes diferenças, são iguais. Mas é possível, no quadro da União e do euro, manter estatutos de igualdade, desde que estes tenham aplicação parcial e adequada ao que se pretende, a criação de uma União. Para lá disso, as diferenças são inevitáveis. Foi isso que a União criou: uma igualdade dentro de um quadro definido e limitado. Era isso o que a Constituição se preparava para destruir metodicamente. Era o que a Constituição, feita por franceses à medida dos franceses, se propunha: estabelecer a desigualdade dentro de um quadro ilimitado e criar a tutela das potências de modo incontestado e indiscutível. Quem o contrariasse, só teria uma solução: sair.

ESTA FOI, É, A MAIS GRAVE CRISE da história da União. É bom que se saiba que foi inutilmente preparada e minuciosamente provocada pelos autores e defensores da Constituição. Ainda não estou convencido de que a União esteja morta e o euro em vias de extinção. Nem sequer de que a Constituição esteja enterrada. Mas ainda não há sinais de que os dirigentes europeus tenham vontade, meios e inteligência para encontrar as soluções adequadas à manutenção da União, uma das mais interessantes realizações internacionais contemporâneas. Uma derrota como esta, colossal e sem precedentes, pode aconselhar humildade e razão. Mas também pode ditar vingança e azedume, que têm sido os mais frequentes. Por enquanto.

António Barreto