A BOLHA IMOBILIÁRIA: CAUSA OU EFEITO?
Desde há algum tempo que se vêm repetindo os artigos de opinião e as declarações políticas que convergem numa tese urbanística que parece politicamente correcta e a ponto de justificar alterações legislativas ou fiscais que estariam a ser preparadas. A tese é bem simples: os problemas urbanísticos e ambientais do país devem-se à chamada "bolha", ao excesso de oferta imobiliária, sendo que esse desperdício de solos, infra-estruturas e energia seria fomentado pela inconsciência dos municípios, através do sobredimensionamento dos planos que aprovam e da permissividade do licenciamento com que enchem os cofres camarários (e, quem sabe, as bolsas dos licenciadores).
Mas a tese é simplista: uma coisa é constatar a existência da "bolha"; outra é afirmar que a solução começa por retirar aos municípios as receitas fiscais associadas ao licenciamento, como castigo pela sua voracidade.
Em primeiro lugar, temos que nos pôr de acordo sobre o conceito de "imobiliário" (sobretudo de "construção de nova urbanização") que num dado momento possa ser considerado como desnecessário ou excessivo pela administração central ou local, de forma objectiva, transparente e não discricionária - isto é, que possa ser objecto de um regulamento administrativo limitativo de direitos. A nossa experiência diz-nos que, à luz dos conhecimentos presentes, neste e noutros países europeus, tal limite quantitativo não pode ser fixado de uma vez para sempre ("sempre" é a vigência do regulamento, seja plano, quotas ou outra forma). Podem prever-se metas; podem fazer-se discriminações positivas ou negativas que favoreçam ou refreiem determinadas tendências em relação a outras se localmente legitimadas, já que esta regulação quantitativa nunca poderá ser idêntica para todos os municípios ou regiões, quando se sabe que não se trata apenas de refrear a residência mas os serviços, as indústrias, os vários tipos de suporte do turismo, etc., com consequências óbvias para a modernização, o emprego, as mobilidades.
A tese "maltusiana" parte do pressuposto de que pode ser tecnicamente inquestionável a previsão quantitativa do crescimento numa dada região ou município com base na evolução demográfica de cada localidade, que, no último meio século, vem desafiando todos os cálculos de tipo mecanicista (por exemplo, população/famílias/casas) por uma razão principal que não posso aqui desenvolver: o crescimento ou transformação das cidades e vilas, cada vez menos separadas entre si, depende muito mais de factores de sociedade (modos e estilos de vida), das tendências de desenvolvimento económico (PIB, bacias de emprego, mobilidade dos agentes económicos, e peso do sector da construção, preferências do aforro e endividamento das famílias...) e da alteração das acessibilidades territoriais (contínuos espaciotemporais, enclaves, generalização do transporte individual...) do que dos saldos fisiológicos agregados.
Para além desta dificuldade, a tradução destas previsões em planos de usos do solo ainda é mais problemática: é que, ao contrário do que muitos pensam, não basta multiplicar metros quadrados ou número de fogos por um índice de ocupação, para estimar o solo urbanizável a prever num PDM. É sabido que a área edificada é apenas uma fracção do seu total, que inclui outras actividades, vias, espaços livres ou intersticiais, etc. Não tem, portanto, sentido dizer-se que os PDM do país, todos somados, dariam para dezenas de milhões de portugueses!
O que estes cálculos simplistas não têm em conta é que o que mais cresce (sobretudo com o PIB) é o espaço médio por habitante, porque aumentam as suas necessidades, as novas instalações das actividades e equipamentos, os espaços livres urbanos, as vias de comunicação e os estacionamentos, etc. E, para além disto tudo, nenhum plano pode ser concebido como um fato por medida: é essencial para a sua própria viabilidade que ofereça para o médio prazo várias frentes de desenvolvimento, para além de outras razões relacionadas com a incerteza das preferências, com a redução dos riscos de entesouramento ou oligopólio por parte dos proprietários ou promotores beneficiados pelo "aperto" do zonamento.
Chegamos assim à parte crucial da tese: a da responsabilidade da gestão municipal no suposto excesso de urbanização. Parece-me, no mínimo, surpreendente que alguém conhecedor do terreno - economistas, urbanistas, juristas - possa pensar e afirmar que os municípios são os principais responsáveis pela "bolha imobiliária" para auferirem mais receitas, donde a necessidade de lhas retirar quanto antes.
É que se esse raciocínio estivesse certo, quereria dizer que os promotores imobiliários deste país construíam casas só para aquecer e encher os cofres das câmaras! Ora, se há milhares de fogos novos construídos todos os anos que estão por usar, é porque alguém os compra (em prazo aceitável pelo promotor da oferta) por outras razões que não a de ir para lá viver de imediato. E é este o fenómeno que importa perceber, para que se saiba onde e como pode ser atenuado com eficácia. Para isso, é necessário avaliar os projectos de futuro das famílias e as alternativas das aplicações das poupanças que se lhes oferecem - isto é, o lado da procura -, sem o que se não podem avaliar as tendências da oferta, hoje essencialmente privada, não só nas grandes aglomerações, mas também nas cidades de menor dimensão.
Acontece também que, para além do "imposto autárquico", as taxas que as autarquias cobram, proporcionais às superfícies construídas, seja nos centros infra-estruturados, seja nas periferias com maior défice delas, não lhes podem ser retiradas, mesmo que se prometa compensá-las no bolo dos impostos retidos ou transferidos para as autarquias, sabe-se lá com que garantias.
Por razões simples: para que a nova construção contribua, proporcionalmente às necessidades, para recuperar a infra-estrutura velha e completar a nova - o que exige uma recuperação parcial da mais-valia gerada no conjunto do município. Aliás, já há muito que se devia ter consignado a arrecadação dessas taxas para um fundo de urbanização, para que os agentes económicos e os utilizadores possam avaliar o seu destino. Além do mais, os valores em causa não são sequer de monta a levar os municípios a não aprovar o que já está previsto em plano (a questão seria outra nos casos de ilegalidade). E como é sabido, retirar essa taxa prevista e praticada desde a Lei das Finanças Locais, não contribuirá sequer para baixar os valores de venda dos imóveis novos ou recuperados.
Quanto a saber se é bem ou mal aplicada, é algo que se aplica igualmente a qualquer governo central e cuja apreciação pertence, em última análise, aos respectivos eleitores.
Mas o que nos parece claro é que castigar financeiramente os municípios não terá influência na quantidade do que se urbaniza ou reurbaniza e retarda a boa gestão pró-activa e, portanto, irremediavelmente negocial (quer se goste ou não) do urbanismo municipal.
Nas entrelinhas ou expressamente, quem tem levantado este problema convoca outros fantasmas urbanísticos que tem procurado exorcizar: o do ataque à urbanização periférica (estaria aí o pior da tal "bolha imobiliária") para defender o objectivo nobre do "retorno à cidade ou ao centro", como se a periferia não fosse cidade e não pudesse ter centralidade(s). Esta ilusão é dispensável. Revitalizar os "centros" e melhorar as condições de vida nas "periferias" são acções interligadas e quem não perceber qual é a nova unidade territorial em que vivemos perde as duas. Mas esta é outra questão que passa pelo reforço técnico e participativo das autarquias, e por governos metropolitanos com legitimidade própria, que tratem (só) o que cada uma, isolada, não pode fazer. E não é substituível por medidas mágicas de engenharia fiscal, que parecem diabolizar as consequências sem querer conhecer as verdadeiras causas e, se necessário, actuar sobre elas.
NUNO PORTAS
Arquitecto
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