sexta-feira, 12 de novembro de 2004

UM ELÉCTRICO CHAMADO REVOLTA

De Nova York, caía a notícia da morte de Marlon Brando, no mesmo momento em que os grandes canais americanos de televisão transmitiam em directo uma conferência de imprensa de G. W. Bush na Casa Branca. Obviamente, e de acordo com a Associated Press, o Presidente foi eclipsado, que a morte do actor era assunto sério.


Marlon “Brandeau”, embora nascido nos Estados Unidos, era neto de um alsaciano.
Brando foi uma adaptação linguística.
Um percurso dramático o dele, no sentido próprio e figurado da expressão, marcado pela insatisfação, a irreverência, a revolta.
Logo de início, na Academia militar, às duas perguntas que figuravam no formulário a preencher, responde: Raça: humana. Cor: depende.
Nestes termos, não ficou muito mais tempo na Academia.
A infância não foi menos atribulada, no seu Omaha natal do Nebraska, com um pai colérico, autoritário, brutal.
O perfil de Marlon Brando?
Uma grande energia criativa, uma extraordinária capacidade de improvisação, não raramente calculada, que o levava a recriar em cena um guião que não estava no programa.
No “Último Tango em Paris” (1972) o terreno estava ainda mais facilitado, porquanto Bertolucci não entendia bem o inglês, menos ainda o calão americano.
Marlon Brando inciou-se no “Actors Studio”, a famosa escola de arte dramática, que seguia o modelo de Stanislavski, a grande referência do teatro da russo da época.
Eram os anos 40.
De 1947 data a peça que notabilizou Marlon Brando, com apenas 24 anos, em “Um Eléctrico chamado Desejo”, com Elia Kazan.
Uma adaptação da obra de Tennesse Williams.
Depressa no entanto largou o teatro, por não suportar ter que encontrar todas as noites a mesma emoção, como dizia.
O cinema vai dar-lhe uma outra visibilidade.
Em 1951, esse “Eléctrico Chamado Desejo”, adaptado ao cinema, lança a imagem da T - shirt que ele trazia, esburacada, uma nova visão do “Sex-symbol”.
Um pouco mais tarde, em 1954, com Laslo Benedeck, surge um Marlon Brando chefe de bando de marginais a aterrorizar os burgueses, com o seu blusão de coiro e casquete branca, a varrer de mota as estradas americanas em “A Equipée selvagem”. Elvis Presley faz sua mais tarde essa outra imagem.
Seria fastidioso fazer aqui o inventário do percurso cinematográfico do actor, de que muitos foram tributários, actores e realizadores. Limitar-me-ei aos marcos mais representativos:
“ Impiedosa Perseguição” (1966) com Arthur Penn, filme “engagé” contra o racismo norte-americano a contracenar com Sofia Loren; “A condessa de Hong Kong” (1967), com Charlie Chaplin; o “Padrinho” (1972) com Francis Coppola.


É aliás com este filme que ele vai recusar o Óscar de melhor actor pela sua interpretação de Don Corleone.
Um protesto contra a política do Governo Federal.
Na sessão de atribuição dos Óscares, manda em seu lugar uma actriz, de que não recordo o nome, e que se apresenta vestida de índia a fazer uma declaração política.


Em “ O Último Tango em Paris” (1972) com Bernardo Bertolucci, aparece um Marlon Brando já cinquentão, o amante viciosamente charmoso e libertário de Maria Schneider. O filme em que ele próprio disse ter sido “violado” a nu por Bertolucci, na sua personalidade. “Apocalypse now” (1979), de novo com Francis Coppola, em que Williard, num Vietnam em guerra, vai à procura de um misterioso coronel Kurz. Mais de 3 milhões e meio de dólares para Marlon Brando aparecer 8 minutos nesta fita.
Um filme que coincide com o apocalipse da sua própria vida pessoal, com os seus 110 quilos, bulímico, etílico, tirano.
O cinema também não escapou à sua revolta, que ele passou a ver como um mundo de negociatas.
Dizia, não sei se Marlon Brando ou Marlon "Brandeau", que em Hollywood não havia mais artistas, apenas avaros, superficialidade e grosseria.
O seu percurso foi ainda marcado por uma certa forma de chocar a América, o que também contribuiu para a sua lenda.
Que se recorde a marcha sobre Washington em 1962, ao lado de Martin Luther King, o seu empenho na defesa dos direitos cívicos, o seu apoio aos “Panteras Negras”. Sem esquecer os Índios americanos, que sempre apoiou, para não falar de outras opções políticas, mais ou menos confusas ou ambivalentes.
Mais que intérprete e actor, Marlon Brando foi um estilo, de que beneficiaram actores como James Dean, Paul Newman, Robert de Niro, Dustin Hoffman, Clint Eastwood e o jovem Al Pacino, este também saído do “Actors Studio”.
Endividado à banca e ao fisco no fim da vida, apesar dos muitos milhões de dólares que ganhou, com os quais comprou até um ilhéu na polinésia, não me espantaria que Marlon Brando tivesse morrido só, nesse hospital de Los Angeles.
Um pouco como viveu.
Pretender, no entanto, depois do que fica dito, que morreu aos 80 anos de uma embolia pulmonar, é demasiado cómodo e fácil.
Nunca se morre de qualquer coisa tão certa, bem certinha...
Morre-se de oitenta anos bem contados, de todo um percurso.
Esse desfecho não foi mais que o resultado de toda uma vida, que foi a sua.
Não se deve banalizar o direito à morte.
A.B.

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