sexta-feira, 31 de dezembro de 2004

TAXONOMIA PARLAMENTAR

Reflexões suscitadas pela proximidade de eleições legislativas...



Sem querer entrar em grandes rigores históricos, podemos dizer que a sociedade na Idade Média se encontrava dividida em três ordens: Nobreza, Clero e Povo; alguns historiadores apontam uma quarta ordem, a Burguesia, outros consideram esta como uma subclasse emergente do Povo.

Na Assembleia da República as coisas passam-se mais ou menos da mesma maneira: também os deputados podem ser divididos em deputados de facto, deputados-de-cú, deputados obscuros e deputados-Batman.

Os deputados de facto são a Nobreza da Assembleia. Participam activamente nas guerras feudais entre os clãs parlamentares (os Pêésses, os Pêéssedês, os Pêcêpês, os Pêpês e os Pêévês). Alguns pertencem mesmo a venerandas dinastias que ultrapassam o tempo e os regimes. Das hostes dos deputados de facto saem, em geral, os Líderes Nacionais — espécie de família real do espectro político nacional —, e os apelidados de “barões”, que como o nome indica são os caudilhos das distritais dos clãs.

O Clero de São Bento (Beneditino?) são os deputados-de-cú. Tal como os membros das ordens monásticas, pouco mais sabem dizer do que “Ámen”; e fazem-no de um modo assaz original: sempre que o voto de obediência (vulgo, disciplina partidária) assim o exige, levantam o traseiro do assento (acto sucedâneo da genuflexão) e já está — missão cumprida.

Sobre os deputados obscuros é difícil falar — por razões óbvias. Supõe-se que sejam o equivalente ao Povo, pois também deles não reza a História; e se estes aspiravam a ascender à Burguesia, aqueles têm como meta da sua carreira política tornarem-se deputados-Batman.

Os burgueses eram geralmente artesãos ou mercadores enriquecidos com o comércio resultante das viagens intra e intercontinentais. Os deputados-Batman não serão artesãos, mas tornaram o comércio das viagens que não fazem uma verdadeira arte. Ao fim e ao cabo, vai dar tudo ao mesmo...

Para terminar, uma singela homenagem aos nossos representantes em São Bento — desta e de futuras legislaturas. (Cantar ao som da música de «Os Índios da Meia-Praia», de José Afonso.)

«Os Índios do Hemiciclo»
escrito em colaboração com Dina Cruz



Aos deputados que temos
lá prós lados de S. Bento
vou fazer uma cantiga
se pra tal tiver talento.
Pelo tacho aqui vieram,
digam lá se é ou não é.
É preciso aproveitar:
isto quem paga é o Zé.

Quando os meus olhos tropeçam
no voo de um avião,
deputados à janela
dizem adeus ao povão.

Não é só lá em Bruxelas
que há um Batman-deputado:
cá há muito Homem-Morcego
qu’inda não foi apanhado.

Eles trabalham com afinco,
mas nunca estão em S. Bento.
É como diz o slogan:
«Vá para fora cá dentro!»

Quem dera que o povo tenha
tino e sabedoria
e na eleição que venha
lhes retire a mordomia.

«Olá» dizem a Lisboa,
«Adeus» ao eleitorado.
Nada os prende às promessas
que deviam ter honrado.

Oito anos de poleiro
e a reforma é garantida:
são sete cães a um ócio,
isto, sim, é que é vida!
Tantos homens e mulheres
a comer do mesmo bolo.
«Isto aqui é uma festa»,
quem diz o contrário é tolo.
Só um ou dois é que pensam
e o resto é pau-mandado:
lembram aqueles cãezinhos
de pescoço articulado.

É sempre a mesma conversa:
levanta, senta, levanta.
Quando os monos intervêm
até a gente se espanta.

Das Comissões nomeadas
de resultado previsto,
saiu o que temos visto:
outras três foram criadas.

E se a TV apanhar
algum deles a dormir
surge logo a defesa:
«Ele estava a reflectir!»

Da tribuna alguém discursa:
é o «Blá! Blá! Blá!» de sempre.
Isto está-me a parecer
missa de corpo presente...

Tantos homens e mulheres
a comer do mesmo bolo.
«Isto aqui é uma festa»,
quem diz o contrário é tolo.

E toca de papelada
no vaivém do Parlamento.
Quando é que reciclamos
o lixo que há em S. Bento?

Fernando Gouveia

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