PIOR É SEMPRE POSSÍVEL
Rui Pimentel / VISÃO
1. O Presidente Bush iniciou ontem a sua festa de tomada de posse, que vai durar três dias, custar 7,5 milhões de contos, mobilizar seis mil agentes de segurança e exibir o que os americanos julgam ser o "glamour", em nove bailes de gala.
Face à controvérsia com o custo da "inauguration", extensiva aos próprios republicanos, Bush resolveu as coisas à sua maneira: um jantar de luxo, "à luz de velas e com a presença do Presidente", onde cada entrada custa cerca de 15.000 euros. Inscreveram-se para jantar representantes de empresas de todos os sectores até aqui beneficiados pelo Presidente - indústrias de segurança e de armamento, petrolíferas, empresas que saíram a ganhar milhões com o levantamento de restrições ambientais - e mais aqueles que confiam vir a ser beneficiados com as políticas do próximo mandato: as seguradoras, que farão um grande negócio com a privatização da segurança social, as farmacêuticas, que ganharão com o abandono de regras de assistência médica, e os bancos, em nome de todos os sectores que irão poupar fortunas com a anunciada maior descida de impostos para as empresas da história americana, financiada com o fim de políticas sociais de apoio aos pobres. Num imenso festim, os mais ricos dos Estados Unidos celebram assim, sem pudor algum, a reeleição do Presidente que promete torná-los ainda mais ricos com o dinheiro tirado aos pobres ou com as aventuras do tipo iraquiano.
O lado positivo desta história é a constatação de que é sempre possível descer mais baixo no descaramento político. E que o que faz a força da democracia é o facto de ela ser o único sistema político em que o povo pode livremente votar contra si próprio.
2. Há qualquer coisa que vai descolando aos poucos na imagem de José Sócrates. Não é fácil de definir, mas paulatinamente vai-se instalando a sensação de que ele vai vencer, não por convencer, mas por exclusão de partes. Sócrates ganhou uma imagem positiva enquanto governante nas áreas do consumidor e do ambiente. Deixou a ideia de alguém firme nas suas convicções, na forma como geriu o projecto da co-incineração contra o politicamente correcto. E, contra muitos bem-pensantes, deixou a ideia, na disputa interna pela chefia do PS, de ser o único dos socialistas que tinha algumas propostas moralizadoras pensadas para o país, como a proposta de pôr fim ao sistema de financiamento das autarquias que privilegia quem mais constrói e quem mais destrói a paisagem. Nos tempos que correm, em que, por exemplo, a um mês das eleições, há um governante que tem o despudor de anunciar um TGV, duas novas travessias sobre o Tejo, em Lisboa, e creio que uma rampa de lançamento de foguetões espaciais em Bragança, eu já me dou por satisfeito se ouvir um candidato a primeiro-ministro propor apenas meia dúzia de coisas para fazer em quatro anos. Mas que sejam propostas sérias, necessárias, exequíveis e de aplicação garantida, contra "lobbies" e interesses.
José Sócrates já reafirmou nesta campanha a proposta de rever o método de financiamento autárquico: espero, pois, que seja a sério e para impor ao poderosíssimo "lobby" camarário. Manteve-se aparentemente firme na co-incineração, dispondo-se, todavia e bem, a aproveitar algumas soluções correctivas anunciadas pelo Governo de Durão. Garantiu, e bem, que não mexeria nos impostos durante a presente execução orçamental e antes de conhecer o verdadeiro estado das finanças públicas - nisso se distinguindo, desde logo, de Santana Lopes, que, 15 dias depois de chegar ao Governo, já prometia descer impostos e subir salários e pensões, para acabar afinal a expropriar as reservas dos pensionistas da Caixa Geral de Depósitos. Prometeu criar 150.000 empregos em quatro anos, tantos quantos a actual maioria perdeu nos seus dois anos e meio de desvario. E disse não a algumas coisas importantes, tais como à golpada de relançar a regionalização na próxima legislatura, sem referendo nem nada, ou a proposta, de alguns interesses mal disfarçados, de nos candidatarmos ao Campeonato do Mundo de futebol ou aos Jogos Olímpicos, para acabar de vez com a viabilidade financeira do Estado.
Em tudo isso, o mais do que provável futuro primeiro-ministro esteve bem e esteve seguro, não cedendo à demagogia e ao facilitismo. Os problemas estiveram algures, a começar pela fraca gente que o rodeia, de candidatos a deputados, a porta-voz e candidato a ministro da Economia. Faz impressão vê-lo apoiado em todos os suspeitos do costume, gente que, por uns ou outros motivos, perdeu qualquer margem de credibilidade no país. Faz impressão e desalento: esperam que votemos neles, outra vez?
Depois, e por culpa da imbecil legislação eleitoral que temos, Sócrates viu-se forçado a entrar cedo de mais em campanha eleitoral. E, onde quer que vá, dia sim, dia sim, estendem-lhe um microfone e ele tem de falar. Se não fala, é acusado de fugir à questão; se fala, é acusado de falar demais e estar sempre disponível para produzir frases ocas para os telejornais. É difícil saber como contornar esta armadilha, mas a verdade é que, falando muitas vezes, ele acaba por não dizer nada de substancial e passar a imagem de alguém que apenas tem ideias genéricas sobre os assuntos e nada de concreto em relação ao que é urgente: como conter o déficit, onde cortar nas despesas, como reformar a administração pública, como disciplinar financeiramente as autarquias e meter na ordem o já intragável Alberto João Jardim, como e até onde prosseguir com a urgente reforma da justiça, que, verdade seja dita, pareceu finalmente ter-se iniciado com o actual ministro, Aguiar Branco.
Já alguém disse e com razão, que, para ganhar as eleições, bastava a José Sócrates ficar calado: com a quantidade de asneiras ditas ou feitas diariamente por Santana Lopes e o seu séquito, até um surdo-mudo ganhava as eleições. Mas o problema de Sócrates não é o de ganhar as eleições, nem sequer o de as ganhar com maioria absoluta. O problema é o de mobilizar um país descrente e desmoralizado, depois de ter visto dois primeiros-ministros abandonarem sucessivamente funções - um porque se fartou, o outro porque arranjou melhor - e ter visto suceder-lhes alguém cuja diletância, irresponsabilidade e incompetência ultrapassou tudo o que prometia a força humana.
Até agora, José Sócrates não conseguiu entusiasmar uma alma que fosse. Talvez seja a sua maneira de ser, talvez ele seja mais reflexivo que intuitivo, mais racional do que emocional. Ou mais programado do que convicto. O que, acima de tudo, lhe tem faltado é a capacidade de passar convicções, de entender o ruído surdo do país, a vontade de mudança genética dos governantes e da própria forma de fazer política, o gosto do risco, do rasgo, de outros horizontes. Dou um exemplo: Sócrates não resistiu a ir a Madrid colher a bênção, para fins eleitorais, de Zapatero - um gesto clássico do provincianismo político português. Zapatero tinha mais em que pensar, no momento em que em Espanha se vive a hora de todas as decisões sobre a autonomia basca, com o plano de ruptura de Ibarretxe e a indecifrável oferta de negociações da ETA: concedeu a Sócrates nada mais do que uma humilhante meia hora de audiência protocolar, o suficiente para gravar umas imagens para os telejornais de cá. Ficámos sem saber o que foi Sócrates fazer à Moncloa, para além da "photo-oportunity". À saída da audiência, Sócrates poderia ter tentado compor as coisas, disfarçar, dar-se um ar de estadista, mas tal não lhe ocorreu como necessário: nem uma palavra sobre a Espanha, as relações luso-espanholas, nada... apenas umas declarações sobre Santana Lopes!
Falta ainda um penoso mês. Um mês desta patética campanha, em que o primeiro-ministro acha que passar os dias em inaugurações e nomeações de última hora é sinal de que está a trabalhar, e o líder da oposição acha que a alternativa é falar muito sem dizer nada. José Sócrates tem um mês - não para derrotar Santana Lopes, que se derrota a si próprio cada dia que passa, mas para convencer os eleitores de que vale mais votar no PS do que votar em branco. Entre o nada e o vazio sempre existe uma diferença.
Miguel Sousa Tavares
Etiquetas: PPD/PSD, Santana Lopes
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