sexta-feira, 3 de junho de 2005

LATITUDE ZERO

A Europa do "faça-se e depois logo se vê" começou a acabar domingo em França e acabou de vez anteontem na Holanda. De repente e da forma mais violenta possível, todos se deram conta de que a locomotiva europeia já não trazia carruagens atrás. Sim, continua a haver uma Europa institucional, com sede em Bruxelas, parlamento em Estrasburgo e um denso edifício jurídico transnacional de que a Constituição europeia seria o último tijolo em data. Mas é uma Europa sem europeus ou, pelo menos, parte decisiva deles. Para já, parte decisiva de dois povos fundadores, e parte decisiva dos que vivem pior, dos que perdem o emprego todos os dias, dos que temem pelas suas reformas, pelo Estado social, pela crença instalada dos amanhãs tranquilos.

Pouco importa, agora, lamentar amargamente que franceses e holandeses não tenham votado propriamente a pensar na Europa e, menos ainda, na babilónica Constituição europeia, que nenhum eleitor jamais irá ler ou entender, mas sim a pensar nas questões concretas que os afligem e nas perguntas que se fazem todos os dias e para as quais ninguém tem resposta para lhes dar. Nenhum operário especializado francês, trabalhando numa fábrica há trinta anos e ganhando um salário mensal de 3000 euros, compreende que a fábrica feche de repente e o patrão lhe ofereça 300 euros para ir trabalhar para Tbilisi, na Geórgia. E nenhum holandês comum, habituado à suavidade das suas regras e costumes de vida, compreende porquê que, numa "Holanda que já está cheia", tenham ainda de abrir as portas e pagar a factura da entrada de um país muçulmano como a Turquia, para, além do mais, lhes vir criar problemas de coabitação social e de intolerância que, até aqui, desconheciam.

O paradoxo é que só uma Europa mais forte e com objectivos novos, como uma política externa e de defesa comum, pode dar resposta aos novos desafios globais. Essa Europa poderia começar a formar-se a partir da Constituição - bem ou mal feita, incompleta ou completa demais, mal ou bem defendida perante os eleitores. Mas não será seguramente feita perante a paralisia e a indecisão ou pelo reflexo de autoprotecção, de cada um por si, face a um mundo hoje definitivamente mais incerto e menos seguro. Conforme a história da União nos tem ensinado, a cada novo passo em frente da Europa - Maastricht, Schengen, euro, alargamento a sul e a norte - o tão criticado voluntarismo soube sempre encontrar depois a razoabilidade necessária para consumar os avanços sem traumas. Lembrem-se do que foi o debate sobre o euro, as catástrofes que nos anunciaram com a introdução da moeda única (em Portugal inclusive, cuja moeda nada valia!) e perguntemo-nos que europeus dispensariam hoje viver sem a moeda única. A Constituição europeia podia até ser um mau passo em frente, mas a sua adopção continha sempre alternativas e soluções adequáveis casuisticamente, conforme as necessidades. Era um manifesto de intenções, todas elas aceitáveis, e um enquadramento normativo suficientemente amplo para permitir trabalhar dentro dele em direcção a uma União mais forte. A sua rejeição, porém, não vejo que alternativas e que futuro deixe preservado. Os defensores do "não" não sabem hoje o que fazer com a sua vitória. Mais: nem sequer sabem ou conseguem explicar o que significa a vitória, qual é a ideia de não-Europa que pode unir nacionalistas de extrema-direita a comunistas e trotsquistas. Basta reparar no espectáculo deplorável da formação do novo Governo francês para se perceber que por ali reina o caos, sem sentido construtivo algum. E, no próximo Conselho Europeu de 16 e 17 deste mês, Chirac, o grande derrotado do referendo francês, aparecerá a defender a sua derrota e a tentar explicar a mensagem do eleitorado francês, a qual, manifestamente, ele não entende qual é, enquanto o primeiro-ministro holandês, igualmente derrotado, aparecerá a defender a única parte da mensagem dos holandeses que é clara: "Não queremos pagar mais para a Europa!"

Os portugueses ainda não se deram bem conta das consequências do que tudo isto pode vir a ter para nós. Da Europa, esperamos sempre soluções e nunca problemas. Esperamos sempre que nos dêem as coisas já devidamente pensadas e prontas a assinar, sem termos de nos dar ao trabalho de reflectir por nós próprios. Por isso é que, face à retirada já quase em desordem dos defensores da Constituição, os nossos políticos podem tranquilamente continuar a afirmar que, por nós, não há problema algum, de certeza que os portugueses votam a favor. Por nós, nunca há problema: se dependesse só de nós, o alargamento, por exemplo, não pararia em Istambul, mas talvez em Vladivostok. Desde que, é claro, os fundos nos continuem garantidos e Bruxelas faça o favor de nos dar todo o tempo necessário para ultrapassarmos essa questãozinha do défice.

Pois, temo que seja isso mesmo que vai acabar. O motor franco-alemão emperrou e a Inglaterra prepara-se para colher os dividendos dessa fenda decisiva, pondo os últimos pregos no caixão das veleidades de potência mundial da Europa. Países ricos e fundadores, como a Alemanha e a Holanda, estão fartos de pagar para o Sul, ao mesmo tempo que lhes pedem agora também que paguem para o Leste. O tempo das ajudas garantidas aos "pobrezinhos do Sul" é mais do que incerto. Quem aproveitou, aproveitou: a Espanha e a Irlanda. Quem desperdiçou, desperdiçou: Portugal e a Grécia. Não vai haver nem dinheiro, nem tempo, nem paciência para aturar mais as nossas "especificidades" em Bruxelas. E, se alguém conta com a colaboração do nosso presidente europeu para nos ajudar, desiluda-se: Durão Barroso vai é ter de salvar o próprio pescoço, nos tempos mais próximos.

E, todavia, não existe alternativa ao projecto europeu. Não existe alternativa nem existiu alguma vez ideia mais revolucionária, mais moderna e mobilizadora do que a ideia de Europa, nascida há 45 anos atrás e acelerada decisivamente a partir dos anos 80. Para nós, portugueses, foi uma oportunidade caída do céu, um novo horizonte, a primeira vez em todo o século XX que tivemos a perspectiva de poder aceder ao nível de civilização, de cultura, de democracia, de bem-estar e de progresso das nações dominantes do continente que é o nosso. Quando nos deram um passaporte onde, além do nome de Portugal, figurava o da União Europeia, os que perceberam o que isso significava puderam finalmente deixar de se sentir sós e experimentar o conforto e o orgulho de uma supranacionalidade representando o que de melhor e mais justo é possível hoje aspirar. Mas confundimos a União com o El Dorado e pensámos que o passaporte só nos trazia direitos e nenhumas responsabilidades. Não interessa agora discutir porquê. Limito-me a constatar o facto: desperdiçámos a oportunidade. Fatalmente, porque a não merecemos. Temo que não haja outra e que de novo tenhamos de nos sentir sós.

Mas isso, agora, são contas de outro rosário. A Europa é mais importante do que o nosso próprio umbigo. E, mesmo que a Europa continue sem Portugal, seria decisivo que ela continuasse. Porque é o único horizonte de esperança, de cooperação, de paz, de resistência económica, de sobrevivência social e de reafirmação dos nossos valores civilizacionais, face a um mundo que em breve será de novo bipolar, entre os Estados Unidos e a China. Como? Pois, isso é o que ninguém sabe, a começar por aqueles que mais deviam saber: os que defenderam e defendem o "não" à Constituição europeia.

Miguel Sousa Tavares

2 Comments:

At 3 de junho de 2005 às 18:13, Anonymous Anónimo said...

Os que hoje deitam foguetes com o «Não» ao Tratado Constitucional Europeu vão ser aqueles que mais vão sentir na pele as suas consequências. Era bom que tivessem a prudência de não cuspir para o ar.

 
At 6 de junho de 2005 às 17:24, Anonymous Anónimo said...

Coitado...
Já morreu, hoje dia 6 de Junho de 2005.
Não deste por nada.
Vê hoje o Jornal da noite da SIC.
Descansa em paz a Constituição para a Europa.
O sr. Blair, enterrou a mesmo, hoje nos comuns.
PAZ À SUA ALMA.
6 de Junho de 2005.

 

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