CAUSA DE MORTE: DIREITOS AQUIRIDOS
A primeira designação que se deu aos célebres "direitos adquiridos" foi a de "conquistas da Revolução". Em seu nome, o PCP, a CGTP e a extrema-esquerda batalharam durante anos para que na Constituição e nas leis se mantivesse inalterável o processo de ruína económica do país iniciado em 11 de Março de 1975, com as expropriações e nacionalizações de tudo o que era actividade económica privada (do fundo da memória relembro um título da imprensa desses dias, que dá bem a dimensão do absurdo a que se tinha chegado: "Trabalhadores da Tinturaria Cambournac exigem a nacionalização").
Limpa a Constituição de alguma da sua baba ideológica, retomado algum bom senso na gestão económica do país, as "conquistas da Revolução" recolheram ao museu leninista de onde tinham sido episodicamente ressuscitadas e foram substituídas, no léxico reivindicativo corrente, pelos "direitos adquiridos". Por "adquirido" entende-se, basicamente, tudo aquilo que foi sacado ao Estado: regalias, estatutos, dinheiro, licenças, subsídios, autorizações. Não abrange apenas situações dos trabalhadores ou pensionistas públicos, mas de toda a gente que, num momento ou noutro, teve a oportunidade de pedir e obter qualquer coisa do Estado. Foi à sombra dos direitos adquiridos, por exemplo, que o país foi integralmente vandalizado pela especulação imobiliária e pela construção sem regras, de que aproveitaram e aproveitam não apenas empresas portuguesas, mas também estrangeiras, apoiadas pelas respectivas embaixadas, sempre a lembrarem ao Governo português os "direitos adquiridos" pelos seus súbditos em território nacional. Uma vez estabelecido o "adquirido", ele passa a ter a qualificação de "direito". E um direito ainda mais sagrado do que os direitos e garantias individuais de natureza política, estabelecidos na Constituição e que, ao longo dos tempos, têm vindo a ser revistos e diminuídos em nome de prioridades securitárias.
Pode um desses "direitos adquiridos" não ter a mais pequena justificação social ou política, pode resultar de simples favor ou privilégio estabelecido momentaneamente ou à socapa. Não interessa: uma vez concedido, para sempre garantido. Se algum ministro desejoso de criar bom ambiente nos serviços estabeleceu um desses regimes especiais de reforma para os trabalhadores sob sua alçada; se o Governo, preocupado com os incêndios, concede um subsídio de campanha aos bombeiros; se uma associação obtém um subsídio para levar a cabo determinado evento, tudo isso se torna imediatamente um direito adquirido, haja ou não justificação, haja ou não cobertura orçamental.
Foi ao destapar a tampa do caldeirão deste mundo submerso da administração pública, que o Governo acabou por revelar a grande parte do país que o desconhecia a existência de um imenso universo de regalias, privilégios, regimes de excepção e de favor em que vive todo o sector público. A título de exemplo, eis o que fiquei a saber esta semana, lendo, ouvindo e tomando conhecimento de algumas das razões do Governo para enfrentar o establishment dos direitos adquiridos e as razões dos que, logicamente, o defendem:
- Os administradores da Caixa Geral de Depósitos, do Banco de Portugal e de outras empresas públicas têm o privilégio de estabelecerem o seu próprio e e luxuoso regime de reformas e pensões, sendo que os da Caixa têm ainda um prémio por resultados - como se possível fazer a Caixa perder dinheiro!
- Um polícia, ouvido durante uma manifestação, explicava que estava ali a protestar porque tinha 16 anos de serviço e 41 de idade e, quando estava a contar com a reforma por inteiro aos 51 anos de idade, agora ameaçavam-no de ter de trabalhar até aos 61!
- Um dirigente sindical dos praças da Armada, encabeçando uma manifestação, dizia às televisões que, entre outras coisas, estavam a protestar porque se lhes pretendia suprimir o "suplemento de embarque" (e eu fiquei a pensar se o "suplemento de embarque" seria exactamente o que o nome indica e se será possível que na Marinha de Guerra se receba um subsídio por entrar a bordo, que é exactamente aquilo para que eles se alistaram).
- Os autarcas estão furiosos porque o Governo se propõe pôr um limite à batota resultante da acumulação de vencimentos entre o cargo autárquico e a administração das empresas municipais, que, como cogumelos, eles próprios criam, na maioria dos casos exactamente para esse fim.
- Dez mil professores do ensino básico e secundário são pagos pelo Estado sem dar qualquer aula: ou porque são delegados sindicais (1276!), ou porque estão destacados no Ministério da Educação ou noutros serviços, ou porque não têm horário distribuído, ou porque estão de baixa permanente, ou porque estão no último ano antes da reforma e ficam dispensados de dar aulas (ou seja, reformam-se, de facto, um ano mais cedo).
- Do Algarve, recebi uma carta dos professores de uma escola do ensino básico, muito indignados por eu não entender que se possam reformar ao fim de trinta anos de trabalho (de facto, 29). Indignam-se, desde logo, por eu os tratar não pelo seu título de "Professores do 1º ciclo", mas sim como "professores primários", designação que eu julgava conter em si mesma um elogio (juro não mais voltar a dizer, nem em conversa de amigos, "a minha professora primária"). E indignam-se, sobretudo, por haver quem não compreenda: "A recompensa que muito justamente nós merecemos ao fim de uma vida [?!] de muitos sacrifícios, muito desgaste psicológico e muita entrega", que nada tem a ver com "o conforto de um escritório, com ar condicionado no Verão e aquecimento no Inverno, no meio de papéis, requerimentos, petições, etc.".
- Enfim, mais modestos, os enfermeiros fizeram greve esta semana pelo direito de poderem continuar a reformar-se aos 57 aos de idade e 35 de serviço, devido ao "grande desgaste físico e psíquico" da sua profissão.
Como aqui escrevi há dias, só é possível extrair uma conclusão deste mar de reivindicações a que vimos assistindo: quem trabalha para o Estado, seja na administração central ou local, ou nos organismos e empresas públicas, sofre de um violento desgaste físico e psíquico, sem comparação com qualquer actividade exercida no sector privado, e que faz com que constitua seu direito legítimo e adquirido o de se reformar cinco, dez ou mais anos antes dos outros.
O problema - problema político e ético - da sua posição é que não se trata de convencer o Estado das suas razões: esse já está ou já estava convencido, quando lhes atribuiu os seus regimes de excepção. O problema é convencer os outros: os que, não trabalhando para o Estado vão ter de pagar, com os seus impostos e com o aumento de anos de trabalho as reformas dos funcionários públicos.
As centrais sindicais - a CGTP por convicção e estratégia, a UGT pelo eterno medo de ficar atrás - andam entusiasmadas com tanta contestação. Vão ensaiando greves e manifestações, até ao ensaio geral da greve da função pública, para daí passarem a essa coisa sagrada e mítica que é a greve geral nacional. Eu, no lugar dos seus dirigentes, teria mais cautelas: como revelou a sondagem do PÚBLICO, segunda-feira passada, está já estabelecida uma clivagem clara, a nível de opinião, entre os funcionários públicos e os restantes trabalhadores. E estes, que estão expostos aos despedimentos e encerramento de empresas, a salários que não são aumentados ano após ano, a horários semanais de 45 ou 50 horas, que não têm direito a baixas prolongadas e constantes, nem a férias de seis ou oito semanas anuais, nem a licenças sem vencimento quando querem, nem a reformas antecipadas, começam a questionar-se sobre os privilégios de que uns gozam e outros não. Daí até perceberem que quem paga esses privilégios, além do mais, são eles, vai um pequeno e perigosíssimo passo.
Miguel Sousa Tavares
Limpa a Constituição de alguma da sua baba ideológica, retomado algum bom senso na gestão económica do país, as "conquistas da Revolução" recolheram ao museu leninista de onde tinham sido episodicamente ressuscitadas e foram substituídas, no léxico reivindicativo corrente, pelos "direitos adquiridos". Por "adquirido" entende-se, basicamente, tudo aquilo que foi sacado ao Estado: regalias, estatutos, dinheiro, licenças, subsídios, autorizações. Não abrange apenas situações dos trabalhadores ou pensionistas públicos, mas de toda a gente que, num momento ou noutro, teve a oportunidade de pedir e obter qualquer coisa do Estado. Foi à sombra dos direitos adquiridos, por exemplo, que o país foi integralmente vandalizado pela especulação imobiliária e pela construção sem regras, de que aproveitaram e aproveitam não apenas empresas portuguesas, mas também estrangeiras, apoiadas pelas respectivas embaixadas, sempre a lembrarem ao Governo português os "direitos adquiridos" pelos seus súbditos em território nacional. Uma vez estabelecido o "adquirido", ele passa a ter a qualificação de "direito". E um direito ainda mais sagrado do que os direitos e garantias individuais de natureza política, estabelecidos na Constituição e que, ao longo dos tempos, têm vindo a ser revistos e diminuídos em nome de prioridades securitárias.
Pode um desses "direitos adquiridos" não ter a mais pequena justificação social ou política, pode resultar de simples favor ou privilégio estabelecido momentaneamente ou à socapa. Não interessa: uma vez concedido, para sempre garantido. Se algum ministro desejoso de criar bom ambiente nos serviços estabeleceu um desses regimes especiais de reforma para os trabalhadores sob sua alçada; se o Governo, preocupado com os incêndios, concede um subsídio de campanha aos bombeiros; se uma associação obtém um subsídio para levar a cabo determinado evento, tudo isso se torna imediatamente um direito adquirido, haja ou não justificação, haja ou não cobertura orçamental.
Foi ao destapar a tampa do caldeirão deste mundo submerso da administração pública, que o Governo acabou por revelar a grande parte do país que o desconhecia a existência de um imenso universo de regalias, privilégios, regimes de excepção e de favor em que vive todo o sector público. A título de exemplo, eis o que fiquei a saber esta semana, lendo, ouvindo e tomando conhecimento de algumas das razões do Governo para enfrentar o establishment dos direitos adquiridos e as razões dos que, logicamente, o defendem:
- Os administradores da Caixa Geral de Depósitos, do Banco de Portugal e de outras empresas públicas têm o privilégio de estabelecerem o seu próprio e e luxuoso regime de reformas e pensões, sendo que os da Caixa têm ainda um prémio por resultados - como se possível fazer a Caixa perder dinheiro!
- Um polícia, ouvido durante uma manifestação, explicava que estava ali a protestar porque tinha 16 anos de serviço e 41 de idade e, quando estava a contar com a reforma por inteiro aos 51 anos de idade, agora ameaçavam-no de ter de trabalhar até aos 61!
- Um dirigente sindical dos praças da Armada, encabeçando uma manifestação, dizia às televisões que, entre outras coisas, estavam a protestar porque se lhes pretendia suprimir o "suplemento de embarque" (e eu fiquei a pensar se o "suplemento de embarque" seria exactamente o que o nome indica e se será possível que na Marinha de Guerra se receba um subsídio por entrar a bordo, que é exactamente aquilo para que eles se alistaram).
- Os autarcas estão furiosos porque o Governo se propõe pôr um limite à batota resultante da acumulação de vencimentos entre o cargo autárquico e a administração das empresas municipais, que, como cogumelos, eles próprios criam, na maioria dos casos exactamente para esse fim.
- Dez mil professores do ensino básico e secundário são pagos pelo Estado sem dar qualquer aula: ou porque são delegados sindicais (1276!), ou porque estão destacados no Ministério da Educação ou noutros serviços, ou porque não têm horário distribuído, ou porque estão de baixa permanente, ou porque estão no último ano antes da reforma e ficam dispensados de dar aulas (ou seja, reformam-se, de facto, um ano mais cedo).
- Do Algarve, recebi uma carta dos professores de uma escola do ensino básico, muito indignados por eu não entender que se possam reformar ao fim de trinta anos de trabalho (de facto, 29). Indignam-se, desde logo, por eu os tratar não pelo seu título de "Professores do 1º ciclo", mas sim como "professores primários", designação que eu julgava conter em si mesma um elogio (juro não mais voltar a dizer, nem em conversa de amigos, "a minha professora primária"). E indignam-se, sobretudo, por haver quem não compreenda: "A recompensa que muito justamente nós merecemos ao fim de uma vida [?!] de muitos sacrifícios, muito desgaste psicológico e muita entrega", que nada tem a ver com "o conforto de um escritório, com ar condicionado no Verão e aquecimento no Inverno, no meio de papéis, requerimentos, petições, etc.".
- Enfim, mais modestos, os enfermeiros fizeram greve esta semana pelo direito de poderem continuar a reformar-se aos 57 aos de idade e 35 de serviço, devido ao "grande desgaste físico e psíquico" da sua profissão.
Como aqui escrevi há dias, só é possível extrair uma conclusão deste mar de reivindicações a que vimos assistindo: quem trabalha para o Estado, seja na administração central ou local, ou nos organismos e empresas públicas, sofre de um violento desgaste físico e psíquico, sem comparação com qualquer actividade exercida no sector privado, e que faz com que constitua seu direito legítimo e adquirido o de se reformar cinco, dez ou mais anos antes dos outros.
O problema - problema político e ético - da sua posição é que não se trata de convencer o Estado das suas razões: esse já está ou já estava convencido, quando lhes atribuiu os seus regimes de excepção. O problema é convencer os outros: os que, não trabalhando para o Estado vão ter de pagar, com os seus impostos e com o aumento de anos de trabalho as reformas dos funcionários públicos.
As centrais sindicais - a CGTP por convicção e estratégia, a UGT pelo eterno medo de ficar atrás - andam entusiasmadas com tanta contestação. Vão ensaiando greves e manifestações, até ao ensaio geral da greve da função pública, para daí passarem a essa coisa sagrada e mítica que é a greve geral nacional. Eu, no lugar dos seus dirigentes, teria mais cautelas: como revelou a sondagem do PÚBLICO, segunda-feira passada, está já estabelecida uma clivagem clara, a nível de opinião, entre os funcionários públicos e os restantes trabalhadores. E estes, que estão expostos aos despedimentos e encerramento de empresas, a salários que não são aumentados ano após ano, a horários semanais de 45 ou 50 horas, que não têm direito a baixas prolongadas e constantes, nem a férias de seis ou oito semanas anuais, nem a licenças sem vencimento quando querem, nem a reformas antecipadas, começam a questionar-se sobre os privilégios de que uns gozam e outros não. Daí até perceberem que quem paga esses privilégios, além do mais, são eles, vai um pequeno e perigosíssimo passo.
Miguel Sousa Tavares
1 Comments:
É curioso ver como até os comentadores dizem o que e quando lhes apetece recebendo fortunas para assim se declararem a seu belo prazer e onda. Ainda em Setembro aquando do escandalo das colocações de professores "Este mesmo SENHOR", estava na TVI a dizer exactamente que a classe docente ganhava mal, estava desprotegida, precisava ser revalorizada e agora: EIS O VALOR QUE LHE ATRIBUI...Curioso
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