segunda-feira, 27 de junho de 2005

ENERGIA É PODER

Sócrates gosta de querelas. Considera, com acerto, que não há políticas, muito menos boas políticas, sem quezílias e polémicas. Não sei se é essa a sua natureza, ou se foi o episódio da incineração dos resíduos industriais que lhe sugeriu o estilo. Também pode ter sido, verdade seja dita, que os maus resultados do método do diálogo e da cedência, de que o seu patrono Guterres era mestre, lhe tenham servido de lição. De qualquer maneira, um estilo está criado. Mal disposto, reactivo e áspero, mostra a toda a gente que não gosta de ser contrariado. Antes de iniciar o que quer que seja, políticas, medidas, reformas ou leis, "compra" uma querela: ataca alguém, define o inimigo, protesta contra os adversários, anuncia que é necessário combater privilégios, identifica o alvo e atira logo contra pessoa ou grupo. E, de passagem, é ríspido com os jornalistas. Em poucas palavras, primeiro dispara, depois diz ao que vem. Assim tem acontecido com os medicamentos, os juízes, os professores, os sindicatos e os políticos. Até agora, com aparentes bons resultados. Isto é, tem causado boa impressão na opinião e tem obrigado os "privilegiados" e os corpos profissionais a reagir e a sair da toca. Que é o que ele pretende. Fazer política contra inimigos pode ser vácuo, mas sempre foi mais excitante do que defender "causas". Solicitar o apoio do povo contra os "malandros", os dos privilégios e da preguiça, foi uma constante destes primeiros meses.

SURGIRÁ, EVIDENTEMENTE, UM PROBLEMA, quando a soma dos "malandros" estiver próxima do total do povo. Que é o que acontecerá inevitavelmente quando for necessário diminuir, universalmente, as prestações sociais, as reformas e outras pensões, a comparticipação nos medicamentos, o subsídio de desemprego e o rendimento garantido; e aumentar, do mesmo modo, vários impostos, as contribuições autárquicas, o acesso à justiça, as propinas das escolas, as portagens das estradas, os combustíveis, a água e os transportes. Mas esse dia ainda não chegou. Por enquanto, o primeiro-ministro quer enraizar a sua reputação de férreo teimoso, de mal disposto e de firme. Se o conseguir antes de ter de "bater em toda a gente", estará então em melhores condições de enfrentar o descontentamento. O plano não parece mau de todo.

ESTA TÉCNICA CRIA DIFICULDADES A quem deseja analisar as políticas e perceber o sentido da sua acção. Os anúncios, com efeito, precedem de muito a acção. Aqueles são geralmente breves e contundentes, enquanto esta se faz esperar e tem cambiantes inesperadas. Esta semana, por exemplo, declarou que iria manter abertas as escolas primárias até às 17.30 da tarde; que todas as escolas básicas serviriam refeições aos alunos; que iria garantir rapidamente a estabilidade do corpo docente de cada escola básica e secundária; que uma grande parte dos professores "emprestados" aos sindicatos, mas pagos pelo ministério, deveria regressar às aulas; e que o mesmo destino esperavam alguns milhares de professores com "horário zero" ou requisitados pelo ministério e pelas autarquias. Devo dizer que concordo com todas estas intenções, pois revelam uma boa percepção de alguns problemas do sistema educativo e exibem uma noção acertada das prioridades, isto é, a escola e os alunos. Ainda por cima, aproveitando a oportunidade que lhe foi estupidamente oferecida pelos sindicatos, fez estes anúncios depois de um puro exercício de energia, ao decretar os "serviços mínimos" para a assistência aos exames e ao ter assim derrotado as veleidades daqueles. Ainda nada ou pouco se sabe do que vem a seguir, da gestão do sistema educativo ao modo efectivo de colocação de professores, da reorganização curricular aos métodos de avaliação, mas uma coisa se percebe: parece haver energia para pôr ordem na casa! A energia serve para isso. Mas impede tomar partido sobre o essencial, a política e os objectivos.

AINDA ESTA SEMANA, UM OUTRO exemplo mostra as surpresas que nos pode reservar este método. Tinha sido anunciado, há muitas semanas, que o novo sistema de nomeação dos cargos públicos acabaria com a politização da Administração e que apenas ficariam sujeitos à famigerada "confiança política" alguns dos mais elevados postos de comando. Os concursos públicos foram prometidos para todos os cargos intermédios, sobretudo as direcções de serviços e as chefias de divisão, com o que se daria o golpe de misericórdia no sistema de partidarização criado pelo PSD. Passaram as semanas e a nova lei chegou, devidamente aprovada já pelo PS e pelo Bloco. O resultado é miserável. Perdeu-se a melhor oportunidade para dar, finalmente, à Administração, um pouco de dignidade e estabilidade. Todos os cargos de topo, directores gerais e adjuntos ou vices, presidentes e seus vices, vogais de administrações e instituições várias, comissários e gestores passam a coincidir com os prazos eleitorais. Com o fim de um governo, os mandatos cessam automaticamente. O primeiro-ministro chegou a dizer, na Assembleia, que era necessário distinguir os casos em que primava a confiança política daqueles que eram preenchidos por critérios de competência. Ninguém, jamais, assumiu tão claramente que a competência não era o primeiro critério de selecção para os comandos da Administração. Quanto aos cargos intermédios, os concursos estão de facto previstos, mas cerca de metade da administração fica fora, pois as excepções são tantas, ou mais, quantas as regras. Por outro lado, admitindo que a confiança política e partidária é o principal método de recrutamento para os chefes, será imaginável que estes, por sua vez, não "organizem" os seus concursos de modo a obter os resultados desejados? Além de que, para o futuro, será cada vez mais difícil obter a colaboração de técnicos competentes e independentes que pretendem que as suas nomeações se fiquem a dever às suas qualidades, não às suas simpatias. Nunca mais olharei para um director geral sem nele ver imediatamente um favorito do partido. O exercício das suas actividades ficará doravante condicionado pelos prazos eleitorais, dado que ele próprio quererá também ver o seu mandato renovado. Só que não precisa de prestar atenção ao eleitorado e aos cidadãos: mas apenas ao ministro e ao seu partido.

O CASO DAS NOMEAÇÕES DE ALTOS funcionários é exemplar. A opinião favorável é conquistada com as declarações iniciais, enérgicas e combativas. Os efeitos desejados são obtidos antes mesmo de se passar à acção. Quando esta chega, as deficiências e os erros de perspectiva já quase não são visíveis. Até porque há então novos casos e outras intenções a preencher o espaço público. Pode parecer franzino, mas Sócrates sabe o que vale a energia. Os ingleses têm aliás, para energia, um significado, power.


António Barreto

2 Comments:

At 27 de junho de 2005 às 16:41, Anonymous Anónimo said...

Não me parece particularmente perspicaz exigir liminarmente o cumprimento de promessas eleitorais que, e bem, se consideraram, ao tempo em que foram exaradas, demagógicas e inexequiveis. Mais honesto, sensato e eficaz seria exigir simplesmente e ao Eng. Sócrates, também por vias delas, mas não só por causa delas, eleito Primeiro Ministro, que pedisse com toda a humildade simplesmente desculpa aos portugueses e que reconhecesse que estava errado.

 
At 27 de junho de 2005 às 16:58, Anonymous Anónimo said...

O Orçamento de Estado para 2005 era um grande embuste sim senhor, tenho que concordar com José Sócrates;
Mas convém lembrar que Jorge Sampaio tudo fez para que o embuste fosse aprovado na Assembleia da República!

 

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