quinta-feira, 30 de junho de 2005

EMÍDIO GUERREIRO (1899-2005)




"Et par le pouvoir d"un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer - Liberté"

Paul Éluard, 1942


Mesmo centenárias, as despedidas são sempre cedo. Para uns, Emídio Guerreiro foi um herói romântico, que pôs a sua vida sob a égide do poema de Éluard, Liberdade, e por ela sacrificou a vida. Para outros, um "guerrilheiro de salão", que esteve "lá", mas sempre escorregadio como uma enguia. Em todo o caso, foram cem anos vividos entre dois séculos, sempre na primeira linha dos acontecimentos. Um privilégio raro.

Emídio Guerreiro nasceu em Guimarães em 6 de Setembro de 1899 e ali morreu, ao fim de 105 anos de andanças por um mundo que lhe apareceu à luz da candeia e o viu partir em plena aventura espacial. O tempo andou depressa e ele tudo fez por acelerá-lo. Gostava de falar e prolongava os prazeres da vida, mas nunca ao ponto de perder a ocasião de ver a história passar diante de si.

Aos 17 anos ofereceu-se como voluntário do Corpo Expedicionário Português, com guia de marcha para as trincheiras da Flandres, onde queria ser soldado na Grande Guerra de 1914-18. Em Dezembro de 2004 estava na primeira fila dos convidados ao congresso do PS, aquele que escolheu José Sócrates para líder. Foi professor e homem político. Poderia ter sido lente de Matemáticas em Coimbra e primeiro-ministro no pós-25 de Abril. Nada disso foi, apesar das acusações de arrivista que lhe fizeram os seus inimigos políticos. O homem teve sempre uma atitude democrática e quando perdia afastava-se. A sua cidadania exerceu-a na divulgação dos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade. A solidariedade activa manifestou-a no apoio à terceira idade, com a criação, em Guimarães, do Centro de Solidariedade Humana - o nome só por si é um manifesto -, um lar de idosos modelar que ofereceu à Misericórdia local.

De algum modo, Emídio Guerreiro herdou a vocação do avô paterno Joaquim Guerreiro, de Cabeceiras de Basto, que ele, com um sorriso quase riso definia como "o homem dos sete instrumentos: músico, alfaiate, tamanqueiro, factor dos correios, lavrador de courela...".

O pai, António Guerreiro, era um militar mais dado às revoluções e às mulheres do que à rigidez do quartel. Pai e filho, de resto, estiveram na mesma barricada, na malograda revolta do Porto de 3 de Fevereiro de 1927, que pretendia deitar abaixo a ditadura militar. A mãe, Maria de Oliveira, era uma senhora tradicional preocupada acima de tudo com a educação dos cinco filhos, tentando manter a harmonia numa casa onde havia duas personalidades fortes, a da mãe e a do marido. E a do filho Emídio, que mal começou a tomar buço se tomou de ideias políticas, e quando se lhe metia uma ideia na cabeça já ninguém o desviava dela.

Lenine entrou na loja maçónica

O episódio da Grande Guerra é elucidativo, quando se ofereceu para o Corpo Expedicionário que ia para a Flandres. Foi uma questão de convicção, tanto quanto de brios, por tentarem diminuí-lo no seu fervor de admiração por Afonso Costa, primeiro-ministro republicano, dizendo que só defendia a participação de Portugal na Grande Guerra porque não estava na tropa.

A 5 de Dezembro de 1917, Sidónio Pais fez um golpe de Estado e desmobilizou as tropas que deviam ir render os que estavam na Flandres, desviando Guerreiro do conflito. Mas outras viriam e nelas participou: a Guerra Civil de Espanha (1936-1939) e a II Guerra Mundial (1939-1945).

Regressou aos estudos e tornou-se num brilhante aluno de Matemática, na Universidade do Porto. Mereceu a distinção de em 1931 ser nomeado assistente extraordinário de Cálculo Diferencial, trabalhando com Gomes Teixeira, um insigne mestre. Foi-o por três meses. A nomeação não foi homologada por insubmissão política. O seu nome estava já referenciado pela polícia política do regime do Estado Novo desde 3 de Fevereiro de 1927, quando participou no levantamento militar contra a ditadura, liderado pelo general Sousa Dias, pelo director da Seara Nova, Jaime Cortesão, e pelo republicano de esquerda José Domingos Oliveira.

Entre mortos e feridos conseguiu escapar-se para Cernache de Bonjardim, onde por um tempo se conformou em ser unicamente bom professor. Julgou-se perdoado e regressou ao Porto, mas não estava esquecido. A interdição quanto à realização de uma carreira docente aí estava para o assinalar

Foi a gota de água na paciência daquele jovem assistente. Ele fora convidado e, num acto de intolerância política, despediam-no. Foi a indignação juvenil. É certo que já estava ligado à oposição democrática, através da loja maçónica Comuna, onde adoptara o significativo nome de "Lenine". Passou a ser activista sem limites. Quando Carmona, Presidente da República e líder da ditadura militar, no fim do ano de 1931 foi ao Porto, a indignação tocava o rubro. Preparou-lhe uma recepção que queria absolutamente inesquecível. Distribuiu panfletos onde apelava ao povo que o acolhessem "com merda às mãos cheias!"

Guerra Civil espanhola

Foi preso, torturado e levado do Aljube do Porto para o de Lisboa. Esta transferência devia ser um castigo, mas foi uma bênção. Em Lisboa obteve condições para a fuga, que se fez no dia 4 de Abril de 1932.

Exilou-se na Espanha republicana, pensando que o regresso seria breve. Durou precisamente 42 anos - até Abril de 1974. Estava em Vigo quando, em 18 de Julho de 1936, o general Mola se sublevou contra o regime republicano e pôs a Espanha a ferro e fogo.

Fez a Guerra Civil de Espanha em Vigo, depois em Barcelona, e quando a derrota se tornou inevitável, tomou o caminho para um novo exílio, em 1939.

Foi para França e passou a residir em Montauban. A travessia dos Pirenéus foi um drama de dor e sofrimento, que não teve alívio na chegada a França. O governo socialista de Léon Blum fora derrotado e o novo executivo, de direita, viu nos refugiados que vinham de Espanha perigosos comunistas e anarquistas, que era preciso isolar da sociedade francesa. Os campos de refúgio em que foram acantonados eram autênticos campos de concentração e o que caiu em sorte a Emídio Guerreiro, em Argelais-sur-mer, era particularmente rigoroso. Tirou-o de lá um antigo presidente da câmara local. Soube que ele era maçónico e, num dever de fraternidade, deu-lhe dinheiro para ele poder escapar-se, clandestino, para Montauban, onde outros maçons o poderiam ajudar a conseguir uma autorização de residência.

Adesão à resistência francesa

Assim esteve para acontecer, mas em Setembro desse ano os exércitos de Hitler invadiram a Polónia e eclodia a II Guerra Mundial. Em Junho de 1941 deu-se a ocupação da França e Emídio Guerreiro correu para uma nova aventura. Em vez de ficar encerrado num campo para estrangeiros suspeitos, resolveu passar para a clandestinidade. Participou na resistência, entrando no maquis (guerrilha) em Saint Antonin, aldeia desabitada das serranias próximas, na região de Tarne-et-Garonne (Sudoeste da França). Passou a ser o capitão Hélio. Foi com essa identidade que em Agosto de 1945 entrou, triunfal, em Montauban libertado da ocupação nazi.

Pensou que o regresso a Portugal estava para breve, mas Salazar sobreviveu à queda do nazi-fascismo e o seu destino teve que ser Paris. Aí conseguiu voltar a exercer a docência de Matemática e em 1946 casou em segundas núpcias, com Alice, uma jovem portuguesa que frequentava a Federação dos Emigrantes Portugueses. Ficou sua companheira até que a morte a levou, há dois anos. O primeiro casamento desfizera-se por terras de Espanha.

A normalidade, em termos de exílio, instalou-se durante uma década, com os sucessivos e sempre adiados complots para derrubar o Estado Novo salazarista. Até que de Portugal veio, no rescaldo das eleições de 1958, um tufão chamado Humberto Delgado.

Em Paris fundara o Comité para a Defesa da Liberdade em Portugal e foi a partir dele que, quando o general Delgado desapareceu, em 1965, se organizou a movimentação internacional para descobrir o seu paradeiro. Infelizmente, a comissão de juristas apenas pôde constatar que o general fora assassinado em 13 de Fevereiro de 1965, por agentes da PIDE, a polícia política de Salazar. No entanto, o reconhecimento desse seu esforço no resgate do "general sem medo" foi premiado depois de 1974, quando foi convidado a pronunciar o elogio fúnebre no Panteão Nacional, que acolheu os restos mortais do general.

Mais tarde, através do comandante Pio, que estivera com Guerreiro na Guerra Civil espanhola, e se exilara no Brasil, Palma Inácio estabeleceu contacto com ele. Assim nasce em Maio de 1967 a Liga Unificada de Acção Revolucionária (LUAR), que terminou numa inimizade total entre os dois fundadores.

A serenidade só veio depois do 25 de Abril, mas não de imediato, pois durante o Verão quente de 1975 foi figura de primeiro plano, quando substituiu Sá Carneiro à frente do PPD, tendo sido depois bruscamente afastado, quando em 1976 este regressou de Londres.

Ao fazer o balanço da sua vida, dizia que ela cabia por inteiro no conhecido poema de Paul Éluard, Liberté, de que recitava então os últimos versos:
"Pelo poder de uma palavra... Liberdade."


A.M.

1 Comments:

At 28 de março de 2008 às 15:43, Blogger Tiago said...

Olá, sou um estudante de História estou a fazer uma biografia sobre o Emídio Gerreiro, gostei do teu post, eras capaz de dizeres quais foram as tuas fontes de onde tiraste estas informaçôes? obrigado

 

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