quarta-feira, 17 de agosto de 2005

MAIS DE DUAS VEZES

A expressão "por mais de uma vez" ou "mais de uma vez" não compromete.
É discretamente enfática e deixa indeterminado o número concreto de vezes a que se refere. Diferentemente, a expressão "mais de duas vezes", duas, proferida num contexto público como aquele em que António Costa a usou, significa precisamente "três vezes", três.

Para demonstrar a profunda preocupação, a desvelada solicitude e a acrisolada solidariedade com que o primeiro-ministro acompanhava a destruição total pelo fogo de uma parte do País, lá do fundo do seu safari, se eles tivessem falado ao menos quatro vezes, quatro, nessa ígnea complicação, António Costa teria dito, sem qualquer sombra de dúvida, que José Sócrates, pendurado no telefone e com a voz embargada a estorcegar-se em timbres de comoção e ansiedade, abordara o assunto com ele "mais de três vezes", três.

Assim, como António Costa tinha, por um lado, o problema de não mentir e, por outro, o desejo de salvar a imagem vilegiaturante de José Sócrates, recorreu ao eufemismo "mais de duas vezes", duas, e, tendo-o repetido ante as câmaras de televisão, podemos assentar em que o disse "mais de uma vez", uma.

É este o ponto exacto em que se articulam a questão da declaração de calamidade pública e a questão da tranquilidade placidamente sertaneja do primeiro-ministro, nos seus ademanes venatórios por entre os hipopótamos e as pacaças se o caso fosse havido como de calamidade pública, por bem mais de duas vezes, duas, o primeiro-ministro deveria ter pensado em não ir para férias e, por maioria de razão, por bem mais de duas vezes, duas, se teria visto forçado a vir imediatamente embora da savana.

Mas deixou-se ficar por cá, vai havendo mortos e feridos, vai havendo casas desfeitas e povoações evacuadas, vai havendo muitos haveres perdidos, vai havendo várias aldeias, vilas e lugares seriamente ameaçados, vai havendo faltas de água e luz, vai havendo terríveis carências logísticas devido à destruição dos equipamentos, vai havendo estradas cortadas, vai havendo colheitas irremediavelmente arruinadas, vai havendo um nono da área florestal portuguesa queimada, vai havendo os piores números da Europa nas estatísticas do fogo, mas o primeiro-ministro, como o bruto de Os Lusíadas (V, 28) e fiel a uma vocação atávica que deu novos mundos ao mundo e neste promoveu o espasmódico diálogo das culturas, a nada disto se moveu.

Limitou-se a perguntar por três vezes, três, como estavam as coisas e deve ter-lhe sido dito, também por três vezes, três, na voz convictamente colocada de António Costa, que Portugal continuava um país porreiro e que fizesse o favor de se deixar estar tranquilamente, procurando não amarrotar muito o seu elegante fato de caqui, a beber leite de coco à sombra dos imbondeiros ou mesmo, se assim o preferisse, a pentear macacos nos intervalos das andanças e dos solavancos do seu jipe.

Se José Manuel Durão Barroso ou Pedro Santana Lopes tivessem tido a lata de ir dar um mergulho, um só, ali para as Berlengas, enquanto os sinos repicassem a rebate por haver fogo numa bouça no Vimioso ou numa quintarola do Fundão, o que não teriam dito, em golfadas de incontida indignação, os socialistas e a comunicação social?

Simplesmente, em se tratando do Partido Socialista, tudo continua a bater impecavelmente certo no tocante ao número de vezes que se queira considerar mais de duas vezes, duas, Sócrates garantiu que não aumentaria os impostos, e viu--se; mais de duas vezes, duas, foi garantida a coesão do Governo e Campos e Cunha saltou logo em seguida; mais de duas vezes, duas, foi afirmada a garantia de que o Governo só se preocupava com a competência dos quadros, não querendo saber dos boys para nada, e continua a funcionar como prestimosa agência de empregos para amigalhaços e clientes; mais de duas vezes, duas, o dr. Soares se afirmou definitivamente arredado da vida política activa, e aí anda ele a mostrar-se pronto para as curvas; mais de duas vezes, duas, o empavonado dr. Lambisgóia se posicionou a favor de Manuel Alegre, e afinal não era assim a calamitosa criatura dá o seu férvido apoio ao dr. Mário Soares.

Tanto faz para o PS, mais de uma vez, mais de duas vezes ou qualquer outra formulação da mesma natureza, não significa absolutamente nada. É um tique de linguagem, um arreganho de gíria, uma propensão idiomática, uma maneira de fazer de conta, de o branco ser preto e de o preto ser branco.


Vasco Graça Moura

5 Comments:

At 17 de agosto de 2005 às 14:05, Anonymous Anónimo said...

Estamos a Governar Mal ?
Então tomamos a TVI

Excluindo o interregno da loucura santanista, nunca um governo defraudou tão depressa a expectativa da opinião pública e dos media como o governo de maioria absoluta de José Sócrates.

Por razões próprias e alheias.

Razões próprias: como quase sempre, mentiu-se, aumentando os impostos; mas depois deitou-se baldes de água gelada, uns a seguir aos outros, sobre os portugueses: a demissão de um ministro que não alinhava em duvidosas aventuras económico-financeiras; o engodo das «grandes obras» Ota e TGV, que milhões de portugueses suspeitam não servirem para mais do que para encher cofres pessoais, partidários e das empresas dos amigos; a engorda do Estado; o afastamento sumário da administração da Caixa e nomeação de um amigo pessoal do primeiro-ministro, Vara, para a administração.

Sócrates contribui ainda para um descontentamento tingido de populismo ao aventurar-se na savana africana em alegre safari enquanto o país estava em guerra – a guerra anual que sempre perde contra a indústria do fogo posto.

Razões alheias: a maioria absoluta não é apenas obra de Sócrates, foi um bónus que Santana lhe ofereceu: uma parte do eleitorado votou contra Lopes e não por Sócrates, pelo que não deveria ter grandes esperanças na governação do PS – o estado de graça, para muitos portugueses, nunca existiu.

Mas há mais: a esfera pública cresceu imenso nos últimos anos. Se Guterres teve o favor da opinião pública e dos media durante anos a fio, hoje isso dificilmente ocorrerá com governos maus ou sofríveis. É um sinal de evolução do país que escapa aos colunistas políticos. O que mudou? A literacia, em primeiro lugar. O aumento geral do tempo de estudo, com muitos mais licenciados e mais vida académica, é um antídoto para a credulidade fácil na política e motivo para o acréscimo de compreensão do processo político.

Aumentou também a mobilidade social e geográfica, com consequências tremendas na percepção das diferenças entre a política local e nacional e a política noutros países mais democráticos e competentes. Está por avaliar o que deverão ser os efeitos notáveis da passagem de milhões de portugueses durante anos pela Grã-Bretanha, Holanda, França, Bélgica, etc. nessa percepção da vida política.

E mudou a esfera mediática, com mais canais de TV e um acesso generalizado à internet, com mais informação e debate disponíveis para todos. Penso que este crescimento da esfera mediática teve efeitos nos próprios media tradicionais. Como poderia um jornal manter um artificial estado de graça governamental quando milhões de pessoas têm acesso a sítios e blogues mostrando um ânimo contrário na opinião pública?

A nível nacional, pode estar no fim a política como a fazem Santana, Sócrates ou Coelho. A nível local, só em Outubro saberemos até que ponto ainda funciona o caciquismo liberto dos partidos, desde o PP (Amarante) até ao PSD (Oeiras e Gondomar) e ao PS (Felgueiras). Este caciquismo concelhio é um parêntesis na evolução política e social; ele liberta-se da demagogia e mentira partidárias, que podem ser mais comedidas. Ao saírem dos partidos, os caciques têm de multiplicar a mentira e a demagogia por precisarem de votos que antes estavam garantidos nos partidos a que pertenciam. Basta ver a delirante mas profissional campanha demagógica de Isaltino em Oeiras para se ver o que é o caciquismo em roda livre. Este novo caciquismo merece estudo político-mediático.

Sem o apoio da opinião pública, que é uma coisa social bem real, nada etérea, torna-se difícil governar, pois, como escrevi há tempos, a opinião pública detém o quarto poder. Como irá governar Sócrates? Não será fácil. Que promessas haverá na rentrée? Terão o favor da opinião pública por mais de uma semana?

A movimentação da opinião pública na imprensa e internet contra a Ota é porventura o mais importante exemplo de força da opinião pública em anos. A partir de agora, para enganarem os portugueses, os governos terão de ser mais profissionais. Não é com a banha da cobra dos seus demagogos encartados e de actuais «agências de comunicação que conseguirão vender negociatas como a Ota ou o TGV.

O Jornal da Noite da SIC ilustrou a demagogia geral da governação (11.08) recuperando promessas de governantes do PS, PSD e PP da última década (Zorrinho, Portas, Barroso, Figueiredo Lopes e Sócrates) na estratégia e meios de combate aos incêndios: blá, blá, blá. A peça noticiosa era interessante por recorrer à memória, que é coisa que a TV infelizmente pouco faz e que os políticos temem desesperadamente.

Perante o seu abismo na opinião pública, que faz o governo? Tal como no delírio santanista, o governo Sócrates já começou ao ataque nos media. É o costume: quando não sabem governar nem enganar as pessoas, toca de culpar os media... e toca de os assaltar. A intervenção do governo para o eventual controle da Media Capital pela espanhola Prisa é sintomático. Revela que o governo despreza os interesses nacionais no que toca à propriedade dos media e que intervém em negócios de media privados.

O El Pais, da Prisa, é um jornal totalmente identificado com o PS espanhol. Não é pior por isso: mais vale uma ligação aberta do que escondida, como se faz entre nós. Mas o que sucedeu aqui foi a intervenção do governo de Portugal no sentido de uma empresa identificada com o PS espanhol ter a primazia no controle de um dos principais grupos mediáticos portugueses. O PS português não tolera a independência da informação da TVI e por isso quer quebrar-lhe a espinha, seguindo o caminho de Santana ao expulsar Marcelo do Jornal Nacional.

Ao mesmo tempo, o PS introduziu um submarino no Telejornal da televisão pública, António Vitorino. Como escrevi há um mês, o «comentário» de Vitorino é uma fraude. Ele é número dois do PS e é deputado do PS.

Não sabemos se terá outros compromissos com o PS ou com pessoas do PS e se é por isso que fala sempre meio envergonhado e com um risinho nervoso. Mas a verdade é que o seu «comentário» político é um insulto à inteligência dos portugueses e ao seu dinheiro público. A defesa que Vitorino fez da nomeação de Vara, o amigo pessoal de Sócrates, atingiu o zénite da obediência partidária, foi um vómito, uma vergonha para o próprio e para a RTP.

Estamos assim: para compensar a ausência de liderança, de competência governativa e desgaste rápido na opinião pública, o governo ataca na área dos media, o que é muito típico do PS: já aconteceu nos governos de Soares e de Guterres-Coelho.

Eduardo Cintra Torres
Jornal "PÚBLICO" de domingo

 
At 17 de agosto de 2005 às 14:07, Anonymous Anónimo said...

Quem se meter com o BES leva.

A maior operadora de telecomunicações australiana, a Telstra, vai ser retalhada, forçando-se assim a separação dos negócios grossita e retalhista. Foi, obviamente, acusada de distorcer o mercado. Por cá, e contra todas as evidências a PT é intocável. O assunto é obviamente tabú.

 
At 17 de agosto de 2005 às 15:02, Anonymous Anónimo said...

Rugir no Quénia

A arte de um grande político pode ser conquistar o palco. Ou pode ser tornar-se um actor de televisão.
Para os eleitores, no entanto, um grande político é aquele que os faz criar esperanças.
Seja na Pampilhosa de Serra ou no Quénia.
Num dos locais há uma fauna que pereceu para sempre.
No outro há animais que se podem ver.
Há outra grande representação possível para um político: conseguir, num período de caos, mascarar o seu medo com a couraça da segurança das muralhas de um castelo.
José Sócrates, já se percebeu, é uma imitação em forma de iogurte de marca branca de Guterres.
Tem medo por detrás de uma voz forte.
É um sussurro enquanto político. Sócrates foi fazer «fitness» numa altura em que o país precisava de corredores que trepassem até aos confins da Serra da Estrela.

António Costa desculpou-o, até porque está habituado a ficar acordado enquanto muitos dos que o cercam no Governo dormem a sesta. Sócrates pode ter direito às suas férias, como qualquer português tem, após começar a trabalhar quatro meses a prazo como caixa num hipermercado, mas há momentos de desespero. O país arde. Os ministros surgem nos jornais a escrever como estudantes com a quarta classe. Enquanto isso os leões continuam a rugir no Quénia. E a ficarem calados em Portugal.

 
At 17 de agosto de 2005 às 15:04, Anonymous Anónimo said...

Caixa, tropa e polícia

O que há de comum entre as demissões na CGD, a revolta de militares e polícias e o papel do Estado na economia? Bem, é uma discussão interessante, esta, sobre a esfera de intervenção do Estado na actividade económica. E há duas maneiras, igualmente idiotas, de neutralizar essa discussão da forma mais inconsequente possível.
Uma é, por assim dizer, a conservadora – o tema é ideológico e, pronto!, assunto arrumado. A outra é a liberal-chique – o Estado deve limitar-se à regulação, ignorando que nem os países mais liberais seguem o mandamento.

A regulação é, sem dúvida, a função económica mais importante de um Estado. Mas não é trabalho para políticos. O papel dos governos, uma vez garantida a independência das entidades reguladoras, continua a ser decisivo para a economia.

Criar um ambiente empresarial competitivo é tarefa de Governo. Com fiscalidade adequada. Com transparência. Com regras que todos cumprem. Com justiça a agir sobre os infractores. Tudo se resume, portanto, a uma coisa: confiança.

Um governante tem como dever, é a sua obrigação principal, promover todas as acções que de si dependem para reforçar a confiança no país. É isso que, no fim da linha, marca a fronteira entre um Estado de direito e um «sítio». Implica, obviamente, autoridade.

Confiança e autoridade. É o ponto de confluência da Caixa, da tropa, da polícia e do Governo.

Os resultados apresentados ontem pelo banco público confirmam o que se adivinhava: não foi por má gestão que a administração foi decapitada.

Foi por uma questão de confiança: o Governo não confiava nos gestores. Como estavam a ser competentes, agora comprovadamente, o problema persiste: agora quem confia no Governo?

Como se explica isto a um investidor estrangeiro? Como é que o poder político conquista a confiança dos investidores nacionais, que seguem sendo os mais importantes, a razoabilidade das decisões que toma na esfera empresarial, demitindo uma equipa que estava a recuperar mercado e multiplicava lucros?

Que utilidade tem os debates filosóficos sobre a intervenção do Estado na economia, a maior ou menor a liberalização, a privatização de serviços, abrir ao exterior ou retaliar os chineses, quando o partido manda no Governo e o Governo se apropria de um Estado?

E que Estado transmite segurança, ao cidadão na rua, ao investidor na empresa, quando se permite viver num clima de pré-desobediência civil?

Ontem, também ontem, os senhores sargentos que se reúnem numa associação qualquer, insinuaram que, em última instância, para «defender a instituição militar» são eles que têm as armas?!!! E, em conferência de imprensa, na tv para todos verem, dizem não reconhecer qualquer autoridade disciplinar ao ministro?

Até pode ser. Estão, militares e polícias, a defender-se a si próprios. Não os cidadãos que lhes pagam os tais «direitos adquiridos».

Na Venezuela, Chávez aguenta-se untando as mãos destes serviçais com porte de arma. Em Portugal, o pessoal prefere apostar noutro país. Porque isto está ficar um sítio.

 
At 17 de agosto de 2005 às 15:06, Anonymous Anónimo said...

Escárnio e Maldizer


Duas investigadoras italianas, numa obra citada ontem pelo Público, chegaram à conclusão que a má-língua e a coscuvilhice são benéficas para a saúde.

A má-língua e a bisbilhotice constituem antídotos contra a monotonia e a tristeza e, ao relaxarem os músculos do rosto, eliminam as rugas e fazem bem à pele.

De maneira que os portugueses estão no bom caminho para eliminarem alguns dos pontos de estrangulamento das listas de espera da saúde. Descarregando a agressividade sobre o próximo, cada português diminui as possibilidades de ter que vir a recorrer a uma consulta do psiquiatra, do psicólogo ou do dermatologista. Já é qualquer coisa.

Os exemplos, aliás, vêm de cima. Se o pobre cidadão, sem nada de interessante ou de excitante na vida, desabafa contra o vizinho, o treinador do seu clube, o autarca ou o governante, a classe dirigente - inibida de dizer o que realmente pensa dos cidadãos que votam e pagam impostos - descarrega o stress sobre os seus pares. É ver o que por aí vai na pré-campanha eleitoral: uma maledicência generalizada, uma imprecação contra os adversários e até mesmo contra alguns dos próprios correligionários, com toques de coscuvilhice, insinuações maliciosas, boatos. Uma receita de confirmado sucesso.

Mas vistas as coisas à luz da teoria das investigadoras italianas, a campanha eleitoral poderá não esclarecer ninguém, não mobilizar os eleitores em função de questões construtivas, mas deixa o povinho mais liberto do stress e sem rugas no rosto. E se a campanha deixar de ser uma nobre prática da política, um contributo para o exercício da cidadania, pelo menos representará um ritual social do qual quase ninguém se furta e poucos se abstêm.

Afinal, o escárnio e maldizer é, como alguns sabem, uma tradição portuguesa que vem do tempo dos trovadores.

 

Enviar um comentário

<< Home