Há dois tipos de governos na zona euro: Os que fazem reformas económicas; Os que se queixam dos juros. Vamos ter esta semana a oportunidade de verificar a qual dos lados o nosso Governo quer pertencer, depois de o Banco Central Europeu ter anunciado a subida da taxa directora.
Evidentemente que a economia portuguesa, a patinar da estagnação para uma nova e iminente recessão, dispensava perfeitamente este «endurecimento» da política monetária.
Mas, para limpar o debate de qualquer tentação demagógica, era importante que alguém da equipa económica de Sócrates saltasse desde logo cá para fora deixando bem clara duas verdades factuais.
A primeira é que os juros são os últimos responsáveis pela crise de crescimento de Portugal. Desde que existe união monetária na Europa, ou seja nos últimos seis anos, Portugal e a Irlanda são os únicos países que apresentam taxas de juros reais negativas de forma persistente.
Dito de outra forma, se alguma coisa a política monetária tem influenciado as condições de crescimento da economia portuguesa é no sentido oposto, expansionista, atendendo aos níveis de inflação interna – esses sim, sempre acima da média europeia.
A segunda verdade pedagógica que o Governo português deveria promover junto da população é que também não será esta subida de juros (um quarto de ponto, para 2,25%) o motivo para o frustrante desempenho que a nossa economia continuará a ter no futuro próximo.
Bem sabemos, repito, que é mais fácil a um primeiro-ministro entregar à sua opinião pública a cabeça de um banqueiro central instalado em Frankfurt, do que assumir os verdadeiros motivos do declínio económico interno.
Até porque, em condições monetárias iguais, os doze países têm exibido dinâmicas económicas absolutamente distintas.
A Espanha, a Irlanda e a Finlândia são exemplos de países que ultrapassaram as dificuldades com reformas duras e impopulares, mobilizaram a classe política para um pacto nacional e estão agora a colher os frutos disso.
Portugal está entre aqueles que cresceram sem reformar, viveu da enxurrada financeira provocada pela queda abrupta do juros e, quando o efeito se foi esgotando, os Governos inventaram receitas extraordinárias (para disfarçar o mal do Estado) e os tais inimigos ocultos (para encobrir a perda de competitividade empresarial).
Foi o que fez Guterres no fim da década passada, foi o que continuou a fazer Barroso nos três anos seguintes e, eis-nos agora, diante Sócrates e a obrigação de fugir ao «bode expiatório» – o que seria fácil, porém contraproducente.
A subida de juros é um obstáculo adicional para a tão estafada retoma anunciada. Mas não é uma catástrofe. Este aumento ‘agrava’ apenas em 4,5% os encargos bancários das famílias. E estes pesam um quinto do rendimento disponível médio.
Vivemos com expectativas baixas, as pessoas estão com medo do futuro e o alarmismo não é bom conselheiro para animar o clima de negócios. Há que evitar, portanto, a reedição do discurso da «tanga», com o aumento de impostos agora em versão adaptada aos juros.
TVI - O ministro das Finanças fala do crescimento do próximo ano, mas há aqui um dado que importa referir: nos próximos três anos vamos continuar a crescer abaixo da Europa. MST - Um crescimento muito abaixo daquilo que precisávamos. O nosso grande problema é a baixa produtividade e, por isso, temos uma competitividade das empresas também baixa o que afecta o sector das exportações, por exemplo, e que só é ultrapassável através dos baixos salários, como vem no relatório da OCDE. Mas isso é persistir numa política de crescimento económico baseada em salários baixos, o que não é bom. Não é qualificativo para as pessoas, não é formativo para as empresas, é mau para a economia do país, não apenas em termos sociais mas também em termos económicos. [...] O nosso problema é que nós crescemos, classicamente, no sector das exportações, em sectores onde estamos mortos à partida e que são o calçado, os têxteis e o vestuário, basicamente. É engraçado. Saiu hoje um estudo – da autoria de uma série de economistas chefiados pelo antigo ministro da Economia, Augusto Mateus – que é uma espécie de balanço do que Portugal fez com os dinheiros da Europa nos últimos vinte anos.
TVI - E fez pouco. MST - Não fez pouco, fez mal. Investimos demasiadamente em infra-estruturas como estradas, hospitais, etc., estávamos atrasados, era preciso e praticamente concentrámo-nos aí. Não investimos para a competitividade. E por isso é que nós andámos para trás, comparativamente à Europa. E países que partiram de posições piores que a nossa, como a Irlanda, não apostaram em estradas nem em infra-estruturas, mas sim na formação técnica, na investigação, na tecnologia, etc. e já estão à frente. Ou seja, todo aquele dinheiro que recebemos durante vinte anos, dos Fundos Sociais Europeus, foi dinheiro deitado à rua.
TVI - E a culpa é só do Estado ou é também do empresariado? MST - Eu acho que é mais do empresariado. O Estado fez a sua parte, que era fazer as infra-estruturas. O empresariado, que teve muito dinheiro europeu nestes vinte anos, deveria ter feito também a sua parte, que era dar o salto qualitativo. Mas não. Nós constatamos que o dinheiro que foi para acções de formação –não se percebeu o que é que formaram – que os ‘clusters’ da nossa economia continuam a ser os tradicionais. E já se sabia há muitos anos que o empresariado ia levar com o choque da globalização e com as exportações concorrenciais do Extremo Oriente. Dá ideia de que a nossa economia vive há vários anos a gerir conjunturas. Não há uma visão de fundo, estruturada, sobre de que é que Portugal vai viver daqui a dez ou quinze anos. Isso é que é grave e é o mais negro destes números.
FARMÁCIAS: UM ‘LOBBY’ COM CINQUENTA ANOS
TVI - Muita coisa pode vir a mudar no sector farmacêutico e faz sentido que mude. MST - Faz todo o sentido. Aliás, não há ninguém em Portugal que não o tenha percebido à excepção dos farmacêuticos. Esta lei é uma lei perfeitamente corporativa – do auge do sistema corporativo Salazarista. É uma lei que, no fundo, limita a posse das farmácias a quem seja farmacêutico, o que não faz sentido nenhum. A única coisa que faz sentido, em termos de saúde pública, é que haja um farmacêutico, de serviço, em cada farmácia e que ela não possa funcionar sem ser assim. Mas reservar às pessoas licenciadas em Farmácia a propriedade do negócio é uma coisa que não existe em mais nenhum sector da vida pública portuguesa e não existe paralelo em nenhum país da Europa. É uma situação perfeitamente corporativa, um monopólio privado – ainda pior para os consumidores que um monopólio público – tolerado pelo Estado. Isto que existe é uma protecção a um ‘lobby’ instalado há cinquenta anos, que não tem nenhuma justificação, do ponto de vista do interesse público e, também não tem, do ponto de vista do interesse próprio das farmácias, visto que estamos num mercado concorrencial. Não pode ser o Estado a proteger legislativamente, o negócio.
Contra quase tudo e quase todos, o Banco Central Europeu (BCE) decidiu ontem aumentar a taxa de juro de referência em 0,25%, para 2,25%. Depois de cinco anos de reduções consecutivas da taxa que determina o custo do dinheiro até aos 2%, estabilizando-a depois neste patamar e revelando um conservadorismo justificado pela necessidade de se credibilizar enquanto instituição monetária, chegou a fase da emancipação.
O presidente do BCE, Jean-Claude Trichet, optou, desta vez, por não seguir os conselhos dos que pediam a continuação do conservadorismo que alimentou a condução da política monetária da zona euro nos últimos anos e, temendo os efeitos negativos do petróleo sobre a evolução dos preços, decidiu agravar, já, o preço do dinheiro. E não esperar por 2006 para averiguar se se verifica uma maior consistência da retoma da economia europeia. O problema é que a zona euro, e Portugal em particular, está numa fase de crescimento muito débil, para não dizer outra coisa. É óbvio que um agravamento das condições monetárias torna a vida de José Sócrates e Teixeira dos Santos - e dos portugueses - mais difícil. Por razões de ordem psicológica e por motivos de natureza prática. Como o DE mostra no trabalho que publica na edição de hoje, desde logo o financiamento do défice público vai ser mais caro, depois, as famílias, até mais do que as empresas, estão cada vez mais expostas ao crédito bancário e os seus encargos mensais vão agravar-se. São duas consequências do aumento dos juros para 2,25% que resultarão em mais obstáculos à recuperação da economia e, logo, ao processo de redução da despesa e de aumento da receita, isto é, ao reequilíbrio do défice público.
Há, ainda assim, um sinal positivo no discurso de ontem de Trichet, preocupado em não assustar os agentes económicos. Não está em cima da mesa uma estratégia de aumentos consecutivos das taxas de juro ao longo dos próximos meses, ao contrário do que tem sido feito pela Reserva Federal norte-americana. Mais, a autoridade monetária da zona euro parece estar disponível para reagir em tempo útil, se necessário, a uma eventual necessidade de corte dos juros nos próximos meses, caso os preços não derrapem e a situação económica da Europa não descole de forma consistente.
Fica uma pergunta: qual deve ser a estratégia para 2006? Quer o Estado, quer as famílias, quer as empresas têm de aprender rapidamente a viver com menos dinheiro no bolso, o que quer dizer, gastarem o que recebem e não o que alguém lhes empresta. As medidas de consolidação das contas públicas que resultam do orçamento de 2006, aprovado anteontem no Parlamento, dão o mote, mas também cabe aos agentes económicos privados um comportamento mais racional, nem eufórico em períodos de riqueza aparente, nem catastrofista em fases de potencial empobrecimento da confiança.
A ambição parece-me proporcional ao talento da tribo. Consta assim que o Governo da República está a “analisar” um “plano de investimento” que visa a construção de cinco mil hectares de estufas. Ao abrigo do mundo irão pois medrar os vegetais de folha, as beringelas e as ‘courgettes’, os pimentos e as coloridas plantas ornamentais. A ideia de que a “economia vegeta” ganha pois um novo e inesperado sentido.
Pessoalmente, a ideia não me causa qualquer angústia. A imagem de Portugal como um pequeno “jardim à beira-mar plantado” está perfeitamente enraizada na mentalidade nacional. Mas o “modelo” é antigo, não entusiasma ninguém e causa mesmo irritação a uma classe ilustrada e bem-pensante. A ideia de um paraíso dos legumes parece-me pois um real contributo para a elevação da “auto-estima” dos portugueses. Que importa se os empresários não investem, que importa se a educação se debate em torno de um crucifixo, que importa se a saúde deriva para o caos, que importa se a justiça se resigna à obstinada discussão de um privilégio. Num País em que o verdadeiro “monumento cultural” se resume a uma variante da ignorância, e em que Camões viaja acanhado nas palavras de Soares e Alegre, a perspectiva de um novo Éden poderá ser a eterna felicidade para tão desmazelada ambição.
Insistindo na ambição, também Mário Soares se entrega deliciado à beatitude de um confortável Éden. Não me refiro obviamente à estufa do nosso contentamento. Refiro-me sim à sede de campanha de Mário Soares, melancolicamente instalada no antigo espaço do Éden-Teatro. Confesso que não conheci os dias de glória de tão reputado estabelecimento. Para mim, o lugar sempre se evidenciou pela original arquitectura. Para mim, o edifício sempre simbolizou uma época da vida da cidade. Uma época invocada pela nostalgia de um registo a preto-e-branco, em que as noites de estreia irradiavam o respeitável brilho de um selecto acontecimento social. Uma época em que os Restauradores primavam pela centralidade e pela elegância, um tempo em que os cafés do Rossio eram local de reunião para ilustres e reconhecidos advogados da Oposição.
Ao abrigo do mundo, Mário Soares recolhe-se ao Éden para meditar. E medita sobre a nova política dos “afectos” e da “proximidade”. Mais do que em campanha, Mário Soares parece apostar na “memória afectiva” de outros dias. O mesmo entusiasmo, o mesmo optimismo, as mesmas “recordações adormecidas” espalhadas pelo País. As mesmas “frases assassinas” no campo diário da política. A mesma leveza – a agilidade de um estilo que se eleva da realidade e toca por vezes o registo vácuo da retórica. A mesma retórica que reúne os “amigos” na plateia de um velho cinema para discorrerem sobre Portugal e o Mundo.
Só o cansaço parece ser novo. O cansaço que a agitação juvenil não consegue de todo disfarçar. E no meio de uma tão encenada agitação, a campanha de Mário Soares vai cumprindo o ritual de uma longa despedida
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Há dois tipos de governos na zona euro:
Os que fazem reformas económicas; Os que se queixam dos juros.
Vamos ter esta semana a oportunidade de verificar a qual dos lados o nosso Governo quer pertencer, depois de o Banco Central Europeu ter anunciado a subida da taxa directora.
Evidentemente que a economia portuguesa, a patinar da estagnação para uma nova e iminente recessão, dispensava perfeitamente este «endurecimento» da política monetária.
Mas, para limpar o debate de qualquer tentação demagógica, era importante que alguém da equipa económica de Sócrates saltasse desde logo cá para fora deixando bem clara duas verdades factuais.
A primeira é que os juros são os últimos responsáveis pela crise de crescimento de Portugal.
Desde que existe união monetária na Europa, ou seja nos últimos seis anos, Portugal e a Irlanda são os únicos países que apresentam taxas de juros reais negativas de forma persistente.
Dito de outra forma, se alguma coisa a política monetária tem influenciado as condições de crescimento da economia portuguesa é no sentido oposto, expansionista, atendendo aos níveis de inflação interna – esses sim, sempre acima da média europeia.
A segunda verdade pedagógica que o Governo português deveria promover junto da população é que também não será esta subida de juros (um quarto de ponto, para 2,25%) o motivo para o frustrante desempenho que a nossa economia continuará a ter no futuro próximo.
Bem sabemos, repito, que é mais fácil a um primeiro-ministro entregar à sua opinião pública a cabeça de um banqueiro central instalado em Frankfurt, do que assumir os verdadeiros motivos do declínio económico interno.
Até porque, em condições monetárias iguais, os doze países têm exibido dinâmicas económicas absolutamente distintas.
A Espanha, a Irlanda e a Finlândia são exemplos de países que ultrapassaram as dificuldades com reformas duras e impopulares, mobilizaram a classe política para um pacto nacional e estão agora a colher os frutos disso.
Portugal está entre aqueles que cresceram sem reformar, viveu da enxurrada financeira provocada pela queda abrupta do juros e, quando o efeito se foi esgotando, os Governos inventaram receitas extraordinárias (para disfarçar o mal do Estado) e os tais inimigos ocultos (para encobrir a perda de competitividade empresarial).
Foi o que fez Guterres no fim da década passada, foi o que continuou a fazer Barroso nos três anos seguintes e, eis-nos agora, diante Sócrates e a obrigação de fugir ao «bode expiatório» – o que seria fácil, porém contraproducente.
A subida de juros é um obstáculo adicional para a tão estafada retoma anunciada.
Mas não é uma catástrofe.
Este aumento ‘agrava’ apenas em 4,5% os encargos bancários das famílias. E estes pesam um quinto do rendimento disponível médio.
Vivemos com expectativas baixas, as pessoas estão com medo do futuro e o alarmismo não é bom conselheiro para animar o clima de negócios. Há que evitar, portanto, a reedição do discurso da «tanga», com o aumento de impostos agora em versão adaptada aos juros.
Economia baseada nos salários baixos
Miguel Sousa Tavares
TVI - O ministro das Finanças fala do crescimento do próximo ano, mas há aqui um dado que importa referir: nos próximos três anos vamos continuar a crescer abaixo da Europa.
MST - Um crescimento muito abaixo daquilo que precisávamos. O nosso grande problema é a baixa produtividade e, por isso, temos uma competitividade das empresas também baixa o que afecta o sector das exportações, por exemplo, e que só é ultrapassável através dos baixos salários, como vem no relatório da OCDE. Mas isso é persistir numa política de crescimento económico baseada em salários baixos, o que não é bom. Não é qualificativo para as pessoas, não é formativo para as empresas, é mau para a economia do país, não apenas em termos sociais mas também em termos económicos. [...] O nosso problema é que nós crescemos, classicamente, no sector das exportações, em sectores onde estamos mortos à partida e que são o calçado, os têxteis e o vestuário, basicamente. É engraçado. Saiu hoje um estudo – da autoria de uma série de economistas chefiados pelo antigo ministro da Economia, Augusto Mateus – que é uma espécie de balanço do que Portugal fez com os dinheiros da Europa nos últimos vinte anos.
TVI - E fez pouco.
MST - Não fez pouco, fez mal. Investimos demasiadamente em infra-estruturas como estradas, hospitais, etc., estávamos atrasados, era preciso e praticamente concentrámo-nos aí. Não investimos para a competitividade. E por isso é que nós andámos para trás, comparativamente à Europa. E países que partiram de posições piores que a nossa, como a Irlanda, não apostaram em estradas nem em infra-estruturas, mas sim na formação técnica, na investigação, na tecnologia, etc. e já estão à frente. Ou seja, todo aquele dinheiro que recebemos durante vinte anos, dos Fundos Sociais Europeus, foi dinheiro deitado à rua.
TVI - E a culpa é só do Estado ou é também do empresariado?
MST - Eu acho que é mais do empresariado. O Estado fez a sua parte, que era fazer as infra-estruturas. O empresariado, que teve muito dinheiro europeu nestes vinte anos, deveria ter feito também a sua parte, que era dar o salto qualitativo. Mas não. Nós constatamos que o dinheiro que foi para acções de formação –não se percebeu o que é que formaram – que os ‘clusters’ da nossa economia continuam a ser os tradicionais. E já se sabia há muitos anos que o empresariado ia levar com o choque da globalização e com as exportações concorrenciais do Extremo Oriente. Dá ideia de que a nossa economia vive há vários anos a gerir conjunturas. Não há uma visão de fundo, estruturada, sobre de que é que Portugal vai viver daqui a dez ou quinze anos. Isso é que é grave e é o mais negro destes números.
FARMÁCIAS: UM ‘LOBBY’ COM CINQUENTA ANOS
TVI - Muita coisa pode vir a mudar no sector farmacêutico e faz sentido que mude.
MST - Faz todo o sentido. Aliás, não há ninguém em Portugal que não o tenha percebido à excepção dos farmacêuticos. Esta lei é uma lei perfeitamente corporativa – do auge do sistema corporativo Salazarista. É uma lei que, no fundo, limita a posse das farmácias a quem seja farmacêutico, o que não faz sentido nenhum. A única coisa que faz sentido, em termos de saúde pública, é que haja um farmacêutico, de serviço, em cada farmácia e que ela não possa funcionar sem ser assim. Mas reservar às pessoas licenciadas em Farmácia a propriedade do negócio é uma coisa que não existe em mais nenhum sector da vida pública portuguesa e não existe paralelo em nenhum país da Europa. É uma situação perfeitamente corporativa, um monopólio privado – ainda pior para os consumidores que um monopólio público – tolerado pelo Estado. Isto que existe é uma protecção a um ‘lobby’ instalado há cinquenta anos, que não tem nenhuma justificação, do ponto de vista do interesse público e, também não tem, do ponto de vista do interesse próprio das farmácias, visto que estamos num mercado concorrencial. Não pode ser o Estado a proteger legislativamente, o negócio.
Contra quase tudo e quase todos, o Banco Central Europeu (BCE) decidiu ontem aumentar a taxa de juro de referência em 0,25%, para 2,25%. Depois de cinco anos de reduções consecutivas da taxa que determina o custo do dinheiro até aos 2%, estabilizando-a depois neste patamar e revelando um conservadorismo justificado pela necessidade de se credibilizar enquanto instituição monetária, chegou a fase da emancipação.
O presidente do BCE, Jean-Claude Trichet, optou, desta vez, por não seguir os conselhos dos que pediam a continuação do conservadorismo que alimentou a condução da política monetária da zona euro nos últimos anos e, temendo os efeitos negativos do petróleo sobre a evolução dos preços, decidiu agravar, já, o preço do dinheiro. E não esperar por 2006 para averiguar se se verifica uma maior consistência da retoma da economia europeia. O problema é que a zona euro, e Portugal em particular, está numa fase de crescimento muito débil, para não dizer outra coisa. É óbvio que um agravamento das condições monetárias torna a vida de José Sócrates e Teixeira dos Santos - e dos portugueses - mais difícil. Por razões de ordem psicológica e por motivos de natureza prática. Como o DE mostra no trabalho que publica na edição de hoje, desde logo o financiamento do défice público vai ser mais caro, depois, as famílias, até mais do que as empresas, estão cada vez mais expostas ao crédito bancário e os seus encargos mensais vão agravar-se. São duas consequências do aumento dos juros para 2,25% que resultarão em mais obstáculos à recuperação da economia e, logo, ao processo de redução da despesa e de aumento da receita, isto é, ao reequilíbrio do défice público.
Há, ainda assim, um sinal positivo no discurso de ontem de Trichet, preocupado em não assustar os agentes económicos. Não está em cima da mesa uma estratégia de aumentos consecutivos das taxas de juro ao longo dos próximos meses, ao contrário do que tem sido feito pela Reserva Federal norte-americana. Mais, a autoridade monetária da zona euro parece estar disponível para reagir em tempo útil, se necessário, a uma eventual necessidade de corte dos juros nos próximos meses, caso os preços não derrapem e a situação económica da Europa não descole de forma consistente.
Fica uma pergunta: qual deve ser a estratégia para 2006? Quer o Estado, quer as famílias, quer as empresas têm de aprender rapidamente a viver com menos dinheiro no bolso, o que quer dizer, gastarem o que recebem e não o que alguém lhes empresta. As medidas de consolidação das contas públicas que resultam do orçamento de 2006, aprovado anteontem no Parlamento, dão o mote, mas também cabe aos agentes económicos privados um comportamento mais racional, nem eufórico em períodos de riqueza aparente, nem catastrofista em fases de potencial empobrecimento da confiança.
A ambição parece-me proporcional ao talento da tribo. Consta assim que o Governo da República está a “analisar” um “plano de investimento” que visa a construção de cinco mil hectares de estufas.
Ao abrigo do mundo irão pois medrar os vegetais de folha, as beringelas e as ‘courgettes’, os pimentos e as coloridas plantas ornamentais.
A ideia de que a “economia vegeta” ganha pois um novo e inesperado sentido.
Pessoalmente, a ideia não me causa qualquer angústia.
A imagem de Portugal como um pequeno “jardim à beira-mar plantado” está perfeitamente enraizada na mentalidade nacional. Mas o “modelo” é antigo, não entusiasma ninguém e causa mesmo irritação a uma classe ilustrada e bem-pensante.
A ideia de um paraíso dos legumes parece-me pois um real contributo para a elevação da “auto-estima” dos portugueses.
Que importa se os empresários não investem, que importa se a educação se debate em torno de um crucifixo, que importa se a saúde deriva para o caos, que importa se a justiça se resigna à obstinada discussão de um privilégio.
Num País em que o verdadeiro “monumento cultural” se resume a uma variante da ignorância, e em que Camões viaja acanhado nas palavras de Soares e Alegre, a perspectiva de um novo Éden poderá ser a eterna felicidade para tão desmazelada ambição.
Insistindo na ambição, também Mário Soares se entrega deliciado à beatitude de um confortável Éden.
Não me refiro obviamente à estufa do nosso contentamento.
Refiro-me sim à sede de campanha de Mário Soares, melancolicamente instalada no antigo espaço do Éden-Teatro.
Confesso que não conheci os dias de glória de tão reputado estabelecimento.
Para mim, o lugar sempre se evidenciou pela original arquitectura.
Para mim, o edifício sempre simbolizou uma época da vida da cidade.
Uma época invocada pela nostalgia de um registo a preto-e-branco, em que as noites de estreia irradiavam o respeitável brilho de um selecto acontecimento social. Uma época em que os Restauradores primavam pela centralidade e pela elegância, um tempo em que os cafés do Rossio eram local de reunião para ilustres e reconhecidos advogados da Oposição.
Ao abrigo do mundo, Mário Soares recolhe-se ao Éden para meditar. E medita sobre a nova política dos “afectos” e da “proximidade”. Mais do que em campanha, Mário Soares parece apostar na “memória afectiva” de outros dias.
O mesmo entusiasmo, o mesmo optimismo, as mesmas “recordações adormecidas” espalhadas pelo País. As mesmas “frases assassinas” no campo diário da política.
A mesma leveza – a agilidade de um estilo que se eleva da realidade e toca por vezes o registo vácuo da retórica.
A mesma retórica que reúne os “amigos” na plateia de um velho cinema para discorrerem sobre Portugal e o Mundo.
Só o cansaço parece ser novo. O cansaço que a agitação juvenil não consegue de todo disfarçar. E no meio de uma tão encenada agitação, a campanha de Mário Soares vai cumprindo o ritual de uma longa despedida
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