PORTUGAL SOB ESCUTA
Quando eu era pequeno, em casa dos meus pais, habituámo-nos a viver com o facto de ter o telefone sob escuta da PIDE. Esse conhecimento obrigava-nos a ter uma permanente atenção e contenção naquilo que se dizia ao telefone e, às vezes mesmo, a avisar os interlocutores de que o telefone estava sob escuta, não fossem eles descaírem-se com qualquer frase que permitisse à polícia política de então concluir que estava em marcha qualquer "actividade subversiva". Havia, aliás, um lado de bravata no facto de, volta e meia, dizermos de forma a ser bem entendidos pelo PIDE de escuta que sabíamos que ele estava ali. E, como os meios técnicos eram então bem mais primitivos e a própria PIDE era constituída por gente boçal e estúpida, não era raro que o ouvidor se denunciasse a si próprio, produzindo sons que o traíam: houve mesmo um que certa altura não se conteve e entrou a meio de uma conversa telefónica de uma irmã minha, com um comentário ordinário. Assim era o sentimento de impunidade daquela triste gente.
Eu cresci assim com um instinto de profundo nojo e repulsa pela actividade que consiste em ouvir as conversas alheias, devassar a respectiva intimidade, retirar a alguém o direito essencial a manter íntimo o que é seu e a manter secreta a sua correspondência. Anos mais tarde, trabalhando esporadicamente na Comissão de Extinção da PIDE-DGS, pude confirmar, ao consultar certos processos, que a PIDE mantinha um registo das escutas telefónicas que ultrapassava em muito os aspectos políticos, para se concentrar largamente na devassa total da vida privada dos "suspeitos". Estava ali uma abundante matéria de chantagem e tema de cartas anónimas, que a PIDE também não se coibia depois de enviar às mulheres, maridos, familiares, dos "inimigos da ordem pública". Estava ali também o retrato fiel de um regime moralmente podre e politicamente abjecto. Na ingenuidade dos meus verdes vinte anos, imaginei que nunca mais, num país finalmente livre e democrático, se poderiam voltar a viver coisas semelhantes.
Mas os anos foram passando, os tempos foram evoluindo, o crime internacional e organizado foi-se especializando e, aos poucos, o Código de Processo Penal foi abrindo brechas por onde foram deslizando lentamente as sagradas garantias que a Constituição de 1976 nos tinha dado. Foi primeiro a droga, depois o terrorismo, as associações de malfeitores, o grande crime económico. Foi primeiro as dificuldades da própria investigação de certos crimes, depois a sempre invocada insuficiência de meios, enfim o acumular de processos nas mãos dos juízes. Nunca faltaram os pretextos, as razões ponderosas e "compreensíveis", até que as excepções se transformassem na regra. As escutas telefónicas estão hoje para a investigação criminal em Portugal como antes estava a confissão do suspeito: é a prova absoluta, o método rotineiro de investigação, o meio de prova mágico que dispensa o trabalho e a imaginação de todos os restantes. Se o suspeito se descai numa escuta, há processo - sem necessidade de o complementar com quaisquer outras provas convincentes; se ele não se descai, não há processo - mesmo que abundem os indícios de crime, que não se procura investigar por outra forma. Não admira que a PGR e a PJ se queixem da insuficiência de meios humanos para poderem evitar a escandalosa diferença entre processos abertos e processos concluídos: estão todos ocupados a escutar as conversas telefónicas dos portugueses.
Este é apenas um dos problemas levantados pelas escutas. Mas há pior e bem mais grave. Eu, por exemplo, parto do princípio, hoje como no tempo da PIDE, de que o meu telefone está sob escuta. Não porque seja suspeito de qualquer crime ou tenha qualquer lição de ética a receber da polícia ou do Ministério Público. Mas apenas porque eu, pelo meu lado, suspeito que o que era fatal que acontecesse qualquer dia está a acontecer: as escutas tornaram-se também um instrumento político nas mãos das corporações judiciais. Escutam-se não apenas os suspeitos de crimes, mas também os políticos que podem contrariar as posições e interesses dos magistrados, os jornalistas que os podem comprometer, os fazedores de opinião que os possam contradizer. Se dúvidas houvesse, o recente episódio em que escutas telefónicas feitas a dirigentes do PS e do PP, e cujo tema era a demissão do procurador-geral da República, foram feitas, prosseguidas, transcritas, arquivadas em processo (como se de crime se tratasse!), e posteriormente enviadas para publicação num jornal, são a prova cabal do uso da devassa telefónica como arma de chantagem política.
E esse é apenas o último episódio em data. Nos últimos anos, tem sido crescente o número de casos em que o teor de escutas telefónicas feitas ao abrigo de um processo de investigação e supostamente validadas por um juiz acabaram "sopradas" para os jornais - sempre e sempre, como não podia deixar de ser, por iniciativa dos que promoveram e realizaram as próprias escutas. Como também é fácil de verificar, na maioria desses casos, as escutas acabam por não dar origem a qualquer acusação judicial ou a não conseguirem sustentá-la, funcionando a sua divulgação pública como uma forma de julgamento popular promovido pela magistratura e destinado a compensar, aos olhos da opinião pública, a total incompetência dos investigadores. Noutros casos ainda, a leitura do sentido das fugas de informação nesta matéria indicia claramente uma tentativa de coacção ou chantagem sobre o poder político. Foi assim que, ao abrigo da investigação do processo Casa Pia, as escutas foram ao ponto de abranger dirigentes partidários sem nenhuma relação com o processo e o próprio Presidente da República. À impunidade, à violação grosseira da lei por parte de quem deveria vigiar o seu cumprimento, segue-se o desafio e a provocação, até se chegar ao limite pretendido: o sequestro do poder político por parte do judicial.
Eis aqui uma matéria em que nenhum Presidente da República tem o direito de permanecer calado. Em que nenhum candidato presidencial tem o direito de fugir à resposta. Trata-se de saber, antes de mais, se nós continuamos ou não a ter direito ao sigilo da correspondência, salvo rigorosas excepções, a avaliar, antes e durante as escutas, por um juiz de instrução - e não, como sucede, com horas e horas de escutas a acumularem-se nas mãos dos investigadores, sem que o juiz encontre tempo, dentro do prazo "razoável" de que fala a lei, para as validar ou mandar destruir. E temos o direito de saber se as escutas servem unicamente como meio complementar de prova na investigação criminal, ou também como meio de devassa pública, de disfarçar a incompetência ou de assustar quem interessa.
Há muito que entendo que o Ministério Público funciona em rédea livre, fazendo o que quer e não fazendo o que não quer, sem dar satisfações nem prestar contas. Por isso mesmo, liberto dos constrangimentos dos políticos e ponderando entre dois males efectivos, sou a favor do fim da autonomia total de que actualmente goza. Hoje, confrontado com a deriva antidemocrática a que conduziu a autonomia total do Ministério Público, prefiro o perigo de uma investigação criminal hierarquicamente subordinada a um poder legitimamente eleito do que entregue aos próprios, sem orientação nem controlo democrático externo. E acho que se poderia e deveria começar pelas escutas. Que houvesse um órgão independente, com membros designados pela Assembleia e pelo Presidente, a quem a Procuradoria-Geral da República submeteria regularmente um relatório completo das escutas efectuadas e em curso, quem e porquê as tinha ordenado e com que resultados. E que, ao fim de um prazo a definir por lei, mas nunca mais de seis meses, as operadoras telefónicas fossem obrigadas a informar directamente os clientes, sem passar pelo tribunal, de que o seu telefone estava sob escuta, desde tal data e à ordem de tal magistrado.
Nada fazer é pactuar com a instalação paulatina de um Estado policial onde o direito à intimidade da vida privada deixou de contar.
Miguel Sousa Tavares
Eu cresci assim com um instinto de profundo nojo e repulsa pela actividade que consiste em ouvir as conversas alheias, devassar a respectiva intimidade, retirar a alguém o direito essencial a manter íntimo o que é seu e a manter secreta a sua correspondência. Anos mais tarde, trabalhando esporadicamente na Comissão de Extinção da PIDE-DGS, pude confirmar, ao consultar certos processos, que a PIDE mantinha um registo das escutas telefónicas que ultrapassava em muito os aspectos políticos, para se concentrar largamente na devassa total da vida privada dos "suspeitos". Estava ali uma abundante matéria de chantagem e tema de cartas anónimas, que a PIDE também não se coibia depois de enviar às mulheres, maridos, familiares, dos "inimigos da ordem pública". Estava ali também o retrato fiel de um regime moralmente podre e politicamente abjecto. Na ingenuidade dos meus verdes vinte anos, imaginei que nunca mais, num país finalmente livre e democrático, se poderiam voltar a viver coisas semelhantes.
Mas os anos foram passando, os tempos foram evoluindo, o crime internacional e organizado foi-se especializando e, aos poucos, o Código de Processo Penal foi abrindo brechas por onde foram deslizando lentamente as sagradas garantias que a Constituição de 1976 nos tinha dado. Foi primeiro a droga, depois o terrorismo, as associações de malfeitores, o grande crime económico. Foi primeiro as dificuldades da própria investigação de certos crimes, depois a sempre invocada insuficiência de meios, enfim o acumular de processos nas mãos dos juízes. Nunca faltaram os pretextos, as razões ponderosas e "compreensíveis", até que as excepções se transformassem na regra. As escutas telefónicas estão hoje para a investigação criminal em Portugal como antes estava a confissão do suspeito: é a prova absoluta, o método rotineiro de investigação, o meio de prova mágico que dispensa o trabalho e a imaginação de todos os restantes. Se o suspeito se descai numa escuta, há processo - sem necessidade de o complementar com quaisquer outras provas convincentes; se ele não se descai, não há processo - mesmo que abundem os indícios de crime, que não se procura investigar por outra forma. Não admira que a PGR e a PJ se queixem da insuficiência de meios humanos para poderem evitar a escandalosa diferença entre processos abertos e processos concluídos: estão todos ocupados a escutar as conversas telefónicas dos portugueses.
Este é apenas um dos problemas levantados pelas escutas. Mas há pior e bem mais grave. Eu, por exemplo, parto do princípio, hoje como no tempo da PIDE, de que o meu telefone está sob escuta. Não porque seja suspeito de qualquer crime ou tenha qualquer lição de ética a receber da polícia ou do Ministério Público. Mas apenas porque eu, pelo meu lado, suspeito que o que era fatal que acontecesse qualquer dia está a acontecer: as escutas tornaram-se também um instrumento político nas mãos das corporações judiciais. Escutam-se não apenas os suspeitos de crimes, mas também os políticos que podem contrariar as posições e interesses dos magistrados, os jornalistas que os podem comprometer, os fazedores de opinião que os possam contradizer. Se dúvidas houvesse, o recente episódio em que escutas telefónicas feitas a dirigentes do PS e do PP, e cujo tema era a demissão do procurador-geral da República, foram feitas, prosseguidas, transcritas, arquivadas em processo (como se de crime se tratasse!), e posteriormente enviadas para publicação num jornal, são a prova cabal do uso da devassa telefónica como arma de chantagem política.
E esse é apenas o último episódio em data. Nos últimos anos, tem sido crescente o número de casos em que o teor de escutas telefónicas feitas ao abrigo de um processo de investigação e supostamente validadas por um juiz acabaram "sopradas" para os jornais - sempre e sempre, como não podia deixar de ser, por iniciativa dos que promoveram e realizaram as próprias escutas. Como também é fácil de verificar, na maioria desses casos, as escutas acabam por não dar origem a qualquer acusação judicial ou a não conseguirem sustentá-la, funcionando a sua divulgação pública como uma forma de julgamento popular promovido pela magistratura e destinado a compensar, aos olhos da opinião pública, a total incompetência dos investigadores. Noutros casos ainda, a leitura do sentido das fugas de informação nesta matéria indicia claramente uma tentativa de coacção ou chantagem sobre o poder político. Foi assim que, ao abrigo da investigação do processo Casa Pia, as escutas foram ao ponto de abranger dirigentes partidários sem nenhuma relação com o processo e o próprio Presidente da República. À impunidade, à violação grosseira da lei por parte de quem deveria vigiar o seu cumprimento, segue-se o desafio e a provocação, até se chegar ao limite pretendido: o sequestro do poder político por parte do judicial.
Eis aqui uma matéria em que nenhum Presidente da República tem o direito de permanecer calado. Em que nenhum candidato presidencial tem o direito de fugir à resposta. Trata-se de saber, antes de mais, se nós continuamos ou não a ter direito ao sigilo da correspondência, salvo rigorosas excepções, a avaliar, antes e durante as escutas, por um juiz de instrução - e não, como sucede, com horas e horas de escutas a acumularem-se nas mãos dos investigadores, sem que o juiz encontre tempo, dentro do prazo "razoável" de que fala a lei, para as validar ou mandar destruir. E temos o direito de saber se as escutas servem unicamente como meio complementar de prova na investigação criminal, ou também como meio de devassa pública, de disfarçar a incompetência ou de assustar quem interessa.
Há muito que entendo que o Ministério Público funciona em rédea livre, fazendo o que quer e não fazendo o que não quer, sem dar satisfações nem prestar contas. Por isso mesmo, liberto dos constrangimentos dos políticos e ponderando entre dois males efectivos, sou a favor do fim da autonomia total de que actualmente goza. Hoje, confrontado com a deriva antidemocrática a que conduziu a autonomia total do Ministério Público, prefiro o perigo de uma investigação criminal hierarquicamente subordinada a um poder legitimamente eleito do que entregue aos próprios, sem orientação nem controlo democrático externo. E acho que se poderia e deveria começar pelas escutas. Que houvesse um órgão independente, com membros designados pela Assembleia e pelo Presidente, a quem a Procuradoria-Geral da República submeteria regularmente um relatório completo das escutas efectuadas e em curso, quem e porquê as tinha ordenado e com que resultados. E que, ao fim de um prazo a definir por lei, mas nunca mais de seis meses, as operadoras telefónicas fossem obrigadas a informar directamente os clientes, sem passar pelo tribunal, de que o seu telefone estava sob escuta, desde tal data e à ordem de tal magistrado.
Nada fazer é pactuar com a instalação paulatina de um Estado policial onde o direito à intimidade da vida privada deixou de contar.
Miguel Sousa Tavares
3 Comments:
O Expresso da semana passada titulava na primeira página que o “PS quis afastar Souto Moura”. E referia-se explicitamente a escutas telefónicas que assim o comprovavam.
Essas escutas envolviam directamente alguns políticos de topo, do PS e do CDS e ainda um assessor da PR.
Não referiam qualquer crime; não mencionavam qualquer malfeitoria grave.
Apenas as conversas entre amigos da política e não só, com um desígnio comum: verem o PGR pelas costas quanto mais cedo possível.
Tal notícia, apesar de tudo, causou “frisson” nos meios político-jornalisticos.
Tanto, pelo menos, quanto uma outra notícia, veiculada pela Visão duas semanas antes que informava os leitores fiéis e depois o público em geral, de que “Judiciária faz busca na casa de Jorge Coelho”.
Apenas essa informação simples, complementada depois, no interior com um esclarecimento sui generis do próprio Jorge Coelho que confirmou o facto ( falando sobre algo que estava em segredo de justiça…) e ainda uma fonte anónima ( solicitado pela fonte…)que esclareceu que a busca tinha pouco a ver com investigações ao político. Não obstante, isso bastou para que o próprio Jorge Coelho, se declarasse publicamente impoluto e incorruptível e exigisse esclarecimento público à PGR- que aliás, o deu e atestou para esse caso.
Essas notícias saíram de violações de um segredo que se chama de justiça e que se destina a proteger investigações criminais. A lei penal pune com uma peneca de dois anos de prisão tal infracção ou, menos ainda, com uma pena de multa.
É uma pena tão pesada como a que uma de condução de mota, sem cartão da Câmara. E ao crime que se lhe associa impropriamente e que é o de difamação, a lei penal também dá a importância correspondente, ao afinfar-lhe com uma pena de prisão até…seis meses, ou multa!
Como se pode ver, o legislador distinguiu essas infracções como sendo das mais graves do sistema democrático e por isso, tornam-se tremendamente compreensíveis as preocupações avulsas de comentadores com foto em jornal. Há um, no DN de ontem, um tal Paulo Cunha e Silva que se arroja ao chão da indignação ao saber que haverá para aí 40 mil escutados em Portugal, em processos judiciais! Claro que não foi perguntar a que processos se refere o número e por isso, este só lhe diz o que quer ouvir e que é o terror de poder estar no rol.
Daí o alarme, pela segurança dos cidadãos desprotegidos pelas leis penais.
Neste caso, como nos demais, é notório e público que a culpa reside mais uma vez no malfadado sistema de justiça, “com pinças articuladas com interesses corporativos das próprias instituições que as utilizam” .
Se uma alma caridosa lhe disser que as escutas fazem-se por quem muito bem as quiser fazer, usando sistemas muito mais eficazes e complexos do que os disponíveis no parque tecnológico das polícia judiciária, leva um choque, de certeza.
Assim, prefere chocar basbaques.
Este recado de terror difuso encontra igual eco, nas crónicas de outros iluminados pelo sistema político mediático e que dele vivem: Miguel Sousa Tavares e José Pacheco Pereira.
Na ausência de referências concretas e conhecimento preciso sobre o como, quem, quando, onde e porquê se fazem escutas telefónicas legais, em Portugal, atiram para alguns responsáveis directos, na orgânica do sistema de Justiça, o ónus da prova negativa daquilo de que abertamente os acusam: abuso de poder!
Nem se dão conta da enormidade do gesto, e muito menos da pequenez de raciocínio que comporta e da lama que dispersa.
Em tempos idos, foi o SIS o bode expiatório de escutas ilegais; o SIEDM, a seguir e simultanamente. Nem lhes ocorre de quem dependem, de facto, esses organismos.
Nem lhes ocorre quem eram as majestades que no devido tempo recolheram relatórios oficiais sobre pedofilias e afins e também apanharam com as acusações de escutas ilegais e não se livram das suspeitas de saberem a Verdade.
Agora, na sua suficiência de raciocício abacocado, calham-nas ao Sistema de Justiça e à PGR em particular, atribuindo-lhes as despesas desta nova campanha triste e de arrogância mediaticamente feita.
São eles , assim, os novos mensageiros, da nova cabala em marcha!
Os comentadores encartados, não medram sem cabalas à vista.
Aproveitando o andamento deste comboio malandro em andamento acelerado, e a propalada gravidade dessas infracções, o governo em peso, em majestade ofendida, torna-se compungida e hipocritamente solidário no medo e apresta-se a rever pela enésima vez os códigos penais e até cria uma unidade missionária para reformar o sistema penal.
O mel caiu-lhes na sopa, cozinhada por esta espécie de idiotia inútil, porque não é impunemente que se vem a saber publicamente que um dirigente de um grande partido com vocação de governo, diz abertamente que para ele, o segredo de justiça vale exactamente o que lhe sai pelo buraco dos fundos.
Nem poderia passar sem revisão, a lei que não assegura punição condigna a quem permite que sejam escutados parceiros de clubes secretos ou discretos que por isso mesmo nunca deveriam ser ouvidos.
Não será assim de estranhar que ao ouvir e ler políticos e comentadores encartados e de avença posta, os ouçamos falar da extrema gravidade da mais hedionda das infracções, cuja punição nunca seria satisfeita com menos do que a flagelação pública num pelourinho, se estivéssemos ainda no tempo do Senhor D. José.
El-Rei, no tempo do terramoto.
Nessa perspectiva anacrónica, aliás, verificamos a evidência de uma repristinação ajustada do antigo crime de “lesa-majestade” que fazia furor em qualquer ancien régime.
O crime de lesa majestade era então comparável à lepra e por isso temido com terror, por todos os cortesãos e almocreves da corte, como agora o continua a ser, pelos mesmos.
É por isso que vemos hoje, em Portugal, um movimento disperso mas uniforme, em jornais e artigos de opinião, formado pelos encartados do costume e de avença posta, a reclamar pelourinho e desprezo públicos, para os atentados à majestade instituída; a forca do opróbrio aos ofensores dos bonzos do regime e o cadafalso da demissão, aos que atentem contra os imperadores dos pequenos poderes.
Como este ritual de sacrifício aos pequenos deuses caseiros se tornou norma em jornais e revistas, mesmo de referência, talvez se torne necessário um pequeno exercício de correcção de perspectivas e actualização de lentes de observação de factos.
Aquelas notícias , alguém as forneceu aos jornalistas. E das duas, uma: ou os jornalistas as pediram, pelas vias usuais de ir com o cântaro à fonte; ou a fonte procurou o cântaro e despejou a inquinação em forma de escrita na água que se escoa pelo ralo do anonimato, depois de coada pelo jornalista.
Estes por seu turno, protegem as fontes com o escudo cioso do seu próprio segredo profissional que ninguém ousa beliscar.
São os mensageiros!
Logo, são neutros, não participam nos factos e por isso as fontes ficam a aguardar nova ocasião.
E como se não bastasse, passa a ideia generalizada de que são as fontes que vêm ter com eles, pelo que poupam no cântaro e na jorna.
Assim, limitam-se a recolher o que lhes trazem, coitados, sendo as fontes que os obrigam a publicar o que lhes dizem.
São as fontes que os obrigam a guardar a água inquinada e são as fontes quem os incita a dar de beber a outros.
São vítimas das fontes.
Por isso é que escrevem na água. Nunca são responsabilizados por isso, porque a escrita não é deles- é das fontes.
Compreende-se até este jogo de cumplicidades.
Os aguadeiros ficam aliviadas da água-childra e os jornalistas aliviam-se no público da responsabilidade pela divulgação dos aguaceiros.
Fazem-no através do chamado direito à informação do público leitor.
É essa a normalidade de uma redacção que se preza: ter aguadeiros anónimos que trazem aguadilha para transformar em água-forte.
O que já se torna verdadeiramente interessante, para não dizer sumamente hipócrata, é o cinismo, a roçar desfaçatez com que o mesmos órgãos informativos, às vezes nos mesmos números em que se publicam os escândalos de lesa-majestade, também publicarem artigos de opinião a apontar os aguadeiros, a eito e sem cerimónia e a apontar-lhes as vergonhas de venderem a honra ao desbarato, exigindo pelourinho pelo crime de antimajestático.
Assim, no mesmo Expresso que publicava a notícia sobre as manobras do PS, aparece esta semana, um cronista de Zapping , emailado no sapo como panunciacao , a escrever o seguinte:
“(…) Pacheco Pereira, na Quadratura do Círculo , depois de acentuar o excesso de escutas telefónicas que se fazem em Portugal, virou-se para Jorge Coelho e afirmou:
Você não tenha dúvida nenhuma de que está ser escutado.
Coelho admitiu logo que sim e adiantou que os altos cargos do Estado já contam com isso quando falam ao telefone.
Os jornais divulgam as escutas de políticos com conversas que nada têm a ver com processos investigados.”
Os jornais, caro panunciacao?!!
Os jornais?!
Diga antes: “Este jornal Expresso- que me paga para andar aqui a escrever estas baboseiras”!
Diga, que lhe ficaria muito melhor!
E diga também que o Pacheco Pereira deve ter cá umas fontes e peras!
Para fazer afirmações daquele calibre que são de extrema utilidade para a democracia que lhe deu quase tudo o que tem, - só pode ter- fontes- e peras!E continua o mesmo avençado: “ Os magistrados portugueses devem perder demasiado tempo numa espécie de orgias de voyeurismo auditivo e a seleccionarem partes para partilharem com o público.
É uma velha guerrinha que mantém com a política e que vem mais ao de cima quando são espicaçadas.”
Esta afirmação primorosa também só pode provir de aguadeiros. Porém, a interrogação que se segue já o nega: “ Será que uma reforma do processo civil, através de um pactos de regime e muita formação profissional, resolveria estes problemas”?
Não sei, por mim, não sei.
Sei, porém, que nenhuma formação profissional fará de panuncaicao um comentador atilado destes assuntos.
Isso, é certo.
Tão certo como ter cuspido na própria sopa de letras do Expresso.
O caso da revista Sábado, porém, atinge todos os píncaros da pouca vergonha nesta matéria!
Em 6 de Maio de 2005 ( na verdade, 4 de Novembro de 2005…) a revista noticiava novidades provindas de fontes anónimas sobre o caso de Jorge Coelho e acrescenta a expressão “fontes policiais” para dizer quem lhes dá a água da escrita.
Na pág. 32, noticiava mais novidades das mesmas fontes sobre o caso do furacão aos bancos, com indicações concretas sobre o teor das buscas realizadas.
Pois bem! Na edição de 25 Novembro, depois de uma “local” pitoresca, sobre um tal Reis Martins, inspector da PJ, escreve-se assim no editorial:
“ (…)se este é um processo [caso relatado pelo Expresso das escutas divulgadas] que estava na posse do Ministério Público, como é que Souto Moura pode, de forma ingénua e inocente, vir desculpar-se com a violação do segredo de justiça por parte dos jornalistas?
Esse segredo só pode ter sido violado por alguém que teve acesso ao processo: quem ordenou as escutas, quem as vigiou, quem as fez ou quem as passou cá para fora.
Não precisa de mudar a lei.
Basta-lhe mandar averiguar e punir os culpados.”
Isto é que é o cinismo e a desfaçatez maiores!
A direcção de uma revista que se serve declaradamente de aguadeiros anónimos da PJ para elaborar notícias com novidades em segredo de justiça, vem armar-se em mensageira da pureza das águas límpidas trazidas a caneco, e sujar o nome de instituições e pessoas que nelas trabalham!
Como quem diz: Eh pá!
Eu ando aqui a violar o segredo, mas não tenho culpa nenhuma disso! Vocês guardem-no como deve ser que nós assim já não o violamos!
Nós somos jornalistas! Mensageiros!
Não somos reles violadores de segredos alheios!
Segredos, para nós, só o nosso! E além disso, vocês são uns crápulas, a violar assim os segredos que nos servem a nós - não como água límpida, mas como o próprio maná- para prosperarmos no negócio!
O que você mereciam era ser despedidos! E já tarda, seus incompetentes!
É este o discurso da Sábado do grupo Cofina-Investec!
Secundado, em modo mais subtil pelo próprio Pacheco Pereira, no próprio número em causa e que agora, ao contrário da Quadratura, já não sabe muito bem quem será o responsável pela divulgação das famigeradas escutas.
Escreve que talvez seja importante dar atenção ao que elas revelam, passando por cima do segredo de justiça e outras miudezas éticas. E cita, como exemplo, o caso de Laurentino Dias que foi apanhado em conversa comprometedora com outro grande do futebol: Pimenta Machado!
Diz PP que nesse caso talvez seja caso para dar importância ao assunto, dado tratar-se de um secretário de Estado ( na altura não o era, porém). Laurentino Dias é do PS…
Logo, este segredo é menos importante do que outros que atingem os companheiros de luta de Pacheco.
É um segredo relativo e o crime já não lesa majestades, mas apenas almocreves. E isso, é assunto de estrebaria, como toda a gente percebe.
Como toda a gente já percebeu, “quem nasceu para lagartixa nunca chega a jacaré”!
Não me faz confusão nenhuma que a "Judit" escute telefones e veja contas de suspeitos vários. Mas, e quem é que escuta e vê a "Judite" e afins?
Eu cresci assim com um instinto de profundo nojo e repulsa pela actividade que consiste em ouvir as conversas alheias, devassar a respectiva intimidade, retirar a alguém o direito essencial a manter íntimo o que é seu e a manter secreta a sua correspondência.
Miguel Sousa Tavares,
Imagine que, no seu local de trabalho, recebe um e-mail que não pediu para receber.
Imagine que, quase diariamente, através desse meio electrónico de correspondência, lhe chegam coisas tão extravagantes - e que você não pede para receber - como apelos para achar meninas, meninos e cães perdidos, para dar sangue, para ir ver exposições, para bater no governo, para bater na oposição, no dr. Soares, no dr. Cavaco, no dr. Louçã, no sr. Jerónimo, generosas raparigas como Deus as colocou no mundo, "correntes da sorte" ou, dada a época natalícia, ofertas para comprar bacalhau. Imagine que alguns desses e-mails - que você não pediu para receber - são enviados por colegas ou mesmo por entidades "superiores", vindos originariamente de lugares aparentemente inesperados e extravagantes da República que, por sua vez, os recebem, supôe-se, da estratosfera.
Imagine que, num desses e-mails "generalistas" - e que você não pediu para receber e que normalmente ignora -, vem apenas uma citação qualquer.
Imagine que você responde privadamente à citação com uma ironia, um processo retórico que não está ao alcance de todos. Imagine que o remetente originário "dá troco" à ironia, juntando-lhe mais qualquer coisa proveniente de um terceiro, apanhado igualmente desprevenido pela violação da sua privacidade. Imagine que você, sempre em privado, volta a responder com nova ironia, recorrendo a uma citação alheia como quem diz "ah fulano disse isso?
Isso vale o que vale.
Também fulana também disse isto". Imagine que o remetente originário, servindo-se do conteúdo privado trocado com ele, decide tornar público o e-mail com a sua citação.
Imagine que, por causa disso, Kafka entra inesperadamente na sua vida, transformando a genial metáfora literária do antigo funcionário de seguros numa pequenina e mesquinha realidade onde a devassa continua, desta vez sob a forma "legal" de um "processo".
Imagine que, à falta de melhor argumento, se recorre à cantilena da utilização de correio electrónico profissional em horário de expediente, quando toda a gente sabe em que é que praticamente toda a gente utiliza o correio electrónico profissional em horário de expediente, quando não existem regras claras e pré-estabelecidas para essa utilização, como, por exemplo, em determinadas empresas privadas. Imagine, pois, a quantidade e a qualidade da gente em causa e das "explicações" que teriam de ser dadas, lançando-se desnecessariamente lama para a ventoínha.
Imagine, por uns breves instantes, que toda esta encenação se destina, no essencial, não tanto a criticar o acto ilegal da violação de correspondência privada - traduzido na divulgação pública, não autorizada, de um e-mail privado (que não deixa de ser privado por estar no correio electrónico profissional) - mas antes em tentar arranjar um pretexto para ver, lá onde ele não existe, "delito de opinião", à maneira "antiga" e com propósitos obscuros.
Imagine que a sua (alguma) visibilidade, noutros meios para além dos "profissionais", incomoda sobretudo aqueles que, muito ciosos do "seu" direito e do seu pequeno "mundo", se levam estupendamente a sério.
Imagine que isto se passava no país "aberto e plural" de que falam, por exemplo, todos os candidatos presidenciais sem excepção, trinta anos depois da "democracia" e da Constituição da República Portuguesa. Imagine, é certo, mas tenha a certeza de que, apesar disso tudo, "neste país em diminutivo, respeitinho é que é preciso".
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