segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006

O QUE ESTÁ A ACONTECER ÀS NOSSAS LIBERDADES?

AMEAÇAS




É confrangedor o silêncio [perante o ataque ao jornal 24 Horas] do Presidente da República, do Parlamento e do Governo. Escudados pela "separação de poderes" e pela "independência da justiça", esses órgãos de soberania revelam um comportamento condenável: há assuntos que não dispensam opinião e a que os mais importantes dirigentes políticos não podem ficar indiferentes

Que está a acontecer às nossas liberdades? Que ameaças nos cercam? Será que existem, de facto, ameaças? Ou será que, mais uma vez, uns tantos visionários, à falta de matéria para escrever, inventam ameaças às liberdades onde apenas se verificam garantias à segurança e melhoramentos de eficiência na gestão pública?

Falar de ameaças "portuguesas" às liberdades "portuguesas" pode parecer insensato. Na verdade, há ameaças reais que nos espreitam a todos, portugueses, europeus e de muitas outras nacionalidades, perante as quais os assuntos caseiros são aparentemente de menor importância. A começar pelo terrorismo. Este, depois de ter tomado, ao longo das últimas décadas, vários rostos (de minorias, de nacionalidades, de extrema-esquerda, de Estado), toma agora os contornos de terrorismo religioso, sendo certo que nunca é só religioso, talvez nem sequer essencialmente religioso. Passando pelas medidas de muitos Estados que não hesitam em cercear direitos para combater o terrorismo. E a acabar no armamento nuclear de alguns países localizados nas regiões de maior conflito.

Ao pé disso, que importância têm as ameaças que se podem detectar em Portugal? Toda. Na verdade, o "caldo de cultura" ameaçador é o mesmo. O sacrifício de direitos e liberdades é todos os dias invocado pelos dirigentes políticos. Uma maior eficiência da justiça contra o terrorismo, o branqueamento de capitais e o tráfico de droga parece exigir medidas excepcionais que vêm para ficar. A defesa do bom nome e da segurança dos políticos implicaria dispositivos extraordinários de protecção de uma casta profissional. A investigação sobre a corrupção crescente nas áreas da construção, das obras públicas, das administrações autárquicas, das actividades desportivas e dos grandes negócios de Estado necessitaria de diligências que ferem a dignidade individual e a privacidade. O melhoramento da Administração Pública e a procura de maior eficiência só seriam possíveis com mecanismos especiais que atentam contra a reserva pessoal.

Estes são alguns dos argumentos que todos os dias nos vão sendo servidos e que, paulatinamente, vão fazendo o seu caminho. Todos eles escondem, ou nem sequer, tentativas de limitar as liberdades e os direitos individuais. Todos eles aumentam os poderes dos Estados e das polícias. Um a um, nenhum parece excessivo, mas, em conjunto, denotam uma gradual ascensão dos poderes, em detrimento dos direitos. E um robusto esforço de limite às liberdades. As ameaças são insidiosas e furtivas. Sub-reptícias. De aparente bondade e supostamente ditadas pela necessidade. Mas são cada vez mais reais.

O ataque ao jornal 24 Horas é um exemplo flagrante. Protegidos pela lei, pois claro, um juiz, vários procuradores, a PJ, a PSP e a GNR assaltaram a redacção do jornal, confiscaram computadores e discos informáticos e entregaram notificações a vários jornalistas entretanto acusados de crime e constituídos arguidos. Como não se trata de um jornal benquisto pelas elites, o caso passou relativamente à margem dos grandes escândalos. Mas é um caso muito sério e grave. O regime de escutas telefónicas é absurdo? O âmbito de competências das escutas telefónicas é excessivo, vago e descontrolado? As fugas de informação no sistema judicial são a regra? A violação do segredo de justiça, por parte dos operadores, é prática corrente? A Procuradoria é cada vez mais atabalhoada e impotente? Há, em simultâneo, incompetência e intenção dolosa por parte dos autores das fugas de informação? O despotismo de alguns magistrados é incontrolável? Não existe autoridade disciplinar efectiva no sistema de justiça? O Governo e o Parlamento mostram ser incapazes de reformar os procedimentos e a legislação? Tudo isso é secundário. A nada disso se responde. Mas acusam-se os jornalistas, procura-se violar a confidencialidade das fontes e intimida-se a imprensa. É talvez, em vinte ou trinta anos, o mais violento ataque contra a liberdade de expressão e o direito à informação, sem falar nos direitos profissionais dos jornalistas.

É confrangedor o silêncio do Presidente da República, do Parlamento e do Governo. Escudados pela "separação de poderes" e pela "independência da justiça", esses órgãos de soberania revelam um comportamento condenável: há assuntos que não dispensam opinião e a que os mais importantes dirigentes políticos não podem ficar indiferentes. Seria bom que percebessem que os direitos dos jornalistas são instrumentais, isto é, garantem os direitos dos cidadãos e a liberdade de expressão e informação. É por isso que o caso é grave.

Certamente incomodado com o seu próprio silêncio, o Governo, por intermédio do ministro da Justiça, teve uma invenção. Clássica. Reveladora de desnorteamento. Criou uma comissão de acompanhamento das escutas telefónicas! Com bondade, é inútil, não resolve nenhum problema. O mais certo é que seja prejudicial e venha blindar o absurdo. Parece destinada a equilibrar os poderes dos corpos dentro do sistema e a defender, não os cidadãos, mas os políticos e os magistrados.

As ameaças vêm de outros lados. Agora, também perante silêncio quase total, o Governo quer introduzir o cartão único de identidade. Único ou quase único. Que incluiria dados pessoais de identidade, de saúde, da segurança social, de eleitor e não se sabe que mais. A vontade é antiga, a decisão parece ser de agora. Dado que a Constituição proíbe explicitamente, e bem, que se crie um "número único de cidadão", a esperteza consiste em criar um "cartão único"! Pode não ser um limite à liberdade? Há quem o pense. Mas é um reforço dos poderes de Estado contra os cidadãos. E uma diminuição de privacidade e reserva. Ainda por cima não ditada pela "liberdade dos outros", limite clássico e aceite, mas pela invasão do Estado e pelo acrescido controlo dos cidadãos. Se isso não é um limite à liberdade...

Ameaças ainda e finalmente as que nos chegaram do Governo, por intermédio do ministro dos Negócios Estrangeiros. É perigosa a associação da liberdade de expressão à religião, aos interesses conjunturais da política externa e à luta contra o terrorismo. É ameaçadora a tentativa de escrever a história, com erros de palmatória, à medida das conveniências políticas do dia.

"Isto anda tudo ligado", dizia o poeta. Anda mesmo.

António Barreto

4 Comments:

At 20 de fevereiro de 2006 às 11:14, Anonymous Anónimo said...

Na crónica que o Miguel Sousa Tavares escreveu no passado sábado no "expresso" diz muito:

...«Note-se que eu não digo que Jorge Sampaio seja o responsável, ou sequer co-responsável, por este retrocesso do país. Digo simplesmente que presidiu a ele e que o fez à sua maneira, aliás semelhante à forma como dirigiu os destinos de Lisboa durante seis anos: sempre consciente e preocupado com os problemas, e sempre impotente para os ajudar a enfrentar. Houve uma única e notável excepção, que teve a ver com o desenlace da questão de Timor, onde Sampaio - juntamente com Guterres e contra a resistência de Durão Barroso - teve uma intervenção firme e decisiva para que se tenha podido pôr fim à ocupação de Timor pela Indonésia. Em tudo o resto, mesmo na área da justiça, que melhor dominava e que mais intervenções lhe inspirou, os seus discursos viveram sempre dessa contradição insanável e desesperante entre o acerto do que dizia e a sensação de absoluta inutilidade do que dizia. Basta atentarmos no último exemplo em data: o que sucedeu com o ultimato dirigido ao procurador-geral da República para que «num prazo curtíssimo», esclarecesse como é que, no âmbito do processo Casa Pia, o Ministério Público entrou na posse da lista dos telefonemas particulares efectuados por um vasto leque de políticos que nada liga ao processo, naquilo que o próprio Presidente classificou como «uma forma intolerável de intromissão na reserva privada dos portugueses, que não pode passar em claro»? Sucedeu que, uma semana decorrida, Souto Moura foi a Belém segredar qualquer coisa ao Presidente, que aparentemente se deu por satisfeito, nunca mais tendo falado no assunto. E, entretanto, o «curtíssimo prazo» já ultrapassou um mês e, como é habitual, o procurador confundiu o que está em causa: em vez de investigar quem obteve e quem facultou essa lista, resolveu investigar o jornal que deu a notícia. E, com isso, o dr. Souto Moura conseguiu o que queria, que era fazer Sampaio esquecer a sua ameaça de extrair do caso «as adequadas consequências», transferindo o ónus de nos livrar de Souto Moura para o Presidente que se segue...»

 
At 20 de fevereiro de 2006 às 11:16, Anonymous Anónimo said...

O Fiscalista Saldanha Sanches escreve mais isto no mesmo semanário:

...«Ao centrar a investigação de tais atropelos nos jornais e jornalistas que revelaram aquilo que nunca deveria ter acontecido (sem que ninguém fosse responsabilizado) a acusação pública agiu com os governos ditatoriais que processam os que denunciam crimes ou escândalos porque afectam a imagem do país: não se trata de saber se houve ou não atropelos. O que importa é que a divulgação dos atropelos prejudica a imagem da justiça...»

 
At 20 de fevereiro de 2006 às 11:18, Anonymous Anónimo said...

ONTEM ANDARAM:

O que a Igreja Católica fez com o cadáver da irmã Lúcia não foi mais do que uma evidente operação e aproveitamento da morte da última das supostas evidente de Fátima. Andaram a passear o cadáver da irmã Lúcia com o único objectivo de estimular o fervor religioso.

 
At 20 de fevereiro de 2006 às 11:23, Anonymous Anónimo said...

E SE TIVESSE SIDO NA REDACÇÃO DO EXPRESSO


Alguém imagina um agente da PJ a entrar pela redacção do Expresso a berrar isto é uma busca, como se fosse um bandoleiro do far-west a entrar num banco a gritar isto é um assalto? É vidente que não, as televisões não se calariam, os poderosos opinion-makers do grupo Impresa teriam feito tremer o país, Cavaco Silva teria quebrado o silêncio e é muito provável que Sampaio tivesse chamado Souto Moura a Belém para mais um chá.

 

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