sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

UM ESTADO IRRESPONSAVELMENTE DEMISSIONÁRIO...


Regionalização, pois, mas como?

A regionalização é um dos ió-iós da vida nacional, um desses temas pendulares que vêm e que vão para mais tarde regressarem exactamente na mesma. Quando menos se espera, a regionalização volta à ribalta, sempre fugazmente, para logo em seguida discretamente se dissolver no caldo de indiferenças, enfados e lamúrias em que sempre bóiam as causas eternas.

Sugeri isto mesmo num artigo que aqui publiquei. Era apenas uma questão de tempo. Eis senão quando, ao jeito de estrebucho de final de mandato, num certo jeito piedoso, o Presidente da República evocou de novo a saga da criação das regiões administrativas, assunto a que os media deram o eco da praxe. Certezas, só duas: o assunto já está novamente a esmorecer; mas, tal como o sol nasce todos os dias, há-de voltar.

Escrevi já diversas vezes em prol da descentralização e desconcentração de serviços e estruturas da administração central, na convicção - que mantenho intacta - de que a hipercentralização de meios, recursos e elites na região de Lisboa é típica de uma concepção terceiro-mundista de Nação que só encontra paralelo em paragens menos recomendáveis da América Latina ou de África.

Insisti - e insisto, tal é a escala da evidência - que a centralização «à portuguesa» atenta contra a melhor tradição da União Europeia, centrada na subsidiariedade, na diversidade, na desconcentração de centros de decisão públicos pelos vários Estados-membros, numa gestão equilibrada do ordenamento do território e na promoção de políticas activas de convergência e atenuação de disparidades regionais.

Sustentei - e continuo a sustentar, na profunda convicção de que a soberania não se exerce sem pessoas, sem emprego qualificado e sem elites regionais - que a desertificação do território nacional se está lentamente a transformar numa severa ameaça à própria independência nacional. Escrevi também - e assim mantenho - que, a par de todos os malefícios causados sobre todo o país, a macrocefalia da capital atenta em primeira linha e perversamente contra o conforto e bem-estar dos próprios lisboetas.

Considero-me profundamente crente no livre mercado enquanto regulador natural da afectação de recursos. Acredito na iniciativa privada, na concorrência regulada na dose certa e nos estímulos que a liberdade económica incute na criatividade dos indivíduos.

Por isso mesmo, insurjo-me contra um Estado que insiste em manter pés assentes em domínios onde nunca deveria estar, seja na vida das empresas, seja sob a forma de uma intromissão excessiva em domínios «tabu» como a Educação ou a Saúde, sectores que os princípios fundamentais da diversidade, da autonomia e da concorrência deveriam penetrar muito mais fundo.

Mas também me insurjo contra um Estado irresponsavelmente demissionário dos seus deveres fundamentais. Tal como providenciar serviços ágeis e eficazes de justiça, de segurança pública, de regulação atenta das condições de concorrência nos mercados, a promoção de um desenvolvimento regional equilibrado é uma missão indissociável de um papel activo do Estado na sociedade. O desenvolvimento harmonioso e equilibrado do território jamais poderá emergir da ordem espontânea das coisas. Muito pelo contrário, exige regulação e intervenção pública muito atentas. As políticas regionais encontram a sua razão de ser na presença daquilo que os economistas designam de «falha de mercado». É que, por si só, o mercado não conduzirá a uma afectação óptima de recursos.

Vem tudo isto a propósito do fugaz reacender do debate sobre a regionalização.

Confesso, caro leitor, que em muitos temas e causas a vida me foi ensinando a caldear certas certezas do passado, temperando-as por dúvidas. Alguns chamam a isso «experiência». Não sei. Mas sinto uma enorme dificuldade em entender polémicas e a maior relutância em participar de discussões absolutamente vácuas de conteúdo. Temo que a regionalização seja um desses casos.

A questão, para mim, é clara: não há - nunca houve - um debate sério e esclarecido sobre a regionalização em Portugal. Até hoje, ainda não consegui encontrar em nenhum documento minimamente estruturado a substância concreta do que seria "uma" regionalização - o conceito, definido, desenvolvido e ensaiado com a devida plenitude e profundidade.

O que é - como seria - «uma» regionalização em Portugal? Alguém sabe ou tem uma proposta concreta para apresentar? Pondo as coisas em termos claros: Que regiões? Que órgãos políticos? Com que composição e funções? Legitimados politicamente, mas como? Com que poderes e atribuições? Com que novas competências e meios a transferir das administrações central e municipal (convirá não esquecer esta última) para as ditas «regiões»? Sob que regime e instrumentos de controlo, fiscalização, regulação e supervisão da administração central? Com que financiamento e orçamento? Mediante que articulação com a restante organização administrativa do território? Com que implicações para a estrutura distrital e concelhia do país? Com que consequências em matéria de lei eleitoral? Seguramente, não se trata apenas de um miserável mapa riscado por divisórias.

Temos, assim, um debate totalmente vazio, versando sobre um objecto indefinido que cada um molda à luz de um ideário íntimo mais ou menos esclarecido, mas profundamente abstracto. Continuamos a padecer dessa obsessiva tentação de nos enganarmos a nós próprios. «Tapar o sol com a peneira», dizem os brasileiros. Embora não a tome por imperativa, até poderei acreditar numa regionalização, se definida em concreto no seu alcance e conteúdo, mas jamais numa tontaria vácua, imposta a qualquer custo, ao saber do «depois se vê».


É por isso que, desejando embora um país muito diferente daquele que vou tendo, nada me surpreendeu o inequívoco «não» com que os portugueses brindaram a proposta de criação das regiões administrativas no referendo de Novembro de 1998. Não só a proposta - resumida a um mapa idiotamente traçado, ao arrepio de qualquer tradição histórico-cultural - não era séria, como o debate se afundou num miserável pantanal de argumentos profundamente demagógicos, a favor ou contra. E se algo emerge do comportamento eleitoral dos portugueses, é que estes se recusam, a pouco e pouco mas cada vez mais, ao frete da emissão de «cheques em branco» em favor da classe política. Pudera? só os tolos podem querer aquilo que desconhecem.


Ricardo Cruz

1 Comments:

At 17 de fevereiro de 2006 às 18:05, Anonymous Anónimo said...

O pintinho queria era ir para a CDRAlentejo, mas os pares dele socialistas conhecendo o cromo como o conhecem madaram à codelaria de Alter.

 

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