quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

ONDE ISTO CHEGOU

Estado de menoridade democrática

Enquanto o ministro dos Negócios Estrangeiros insistia em desculpabilizar o fanatismo islâmico, o parlamento regional da Madeira aprovava um requerimento do PSD/M que pretende avaliar a "sanidade mental" de um deputado socialista. São casos diferentes, mas a moral da história aponta num sentido comum. E a questão põe-se será possível que isto aconteça num país democrático onde os valores da liberdade - e da liberdade de expressão, em particular - fazem parte do próprio código genético da civilização a que pertencemos? A esta questão importa, porém, acrescentar outras interrogações.

Será admissível que a política externa de Portugal esteja entregue aos estados de alma, aos caprichos e às obsessivas fixações pessoais do prof. Freitas do Amaral, que não fala na condição de cidadão mas de ministro dos Estrangeiros? Será compreensível que o primeiro- -ministro, o Governo e a maioria parlamentar não manifestem nenhuma incomodidade visível com tamanha exorbitância ou que um medíocre burocrata de serviço do PS não distinga entre os autores das caricaturas de Maomé e os incendiários de embaixadas? E como aceitar que nos tomem a todos por tolos quando se pretende que entre o recente discurso do Presidente da República em Évora, em defesa da liberdade de expressão, e as declarações de Freitas do Amaral, justificando a fúria islâmica contra o agressor ocidental, não existe nenhuma contradição ou dissonância, pondo em causa a credibilidade externa do país?

Por outro lado, como é imaginável que a avaliação da "sanidade mental" de um deputado, proposta pelo PSD/M, não só não tenha suscitado nenhuma reacção de qualquer instituição responsável como, além disso, seja acolhida benevolamente por deputados nacionais do PSD e do CDS? Por mais caricatural, grotesca e até inconsequente que seja a atitude dos sequazes de Alberto João Jardim no parlamento regional e dos seus apaniguados no parlamento nacional, não é claro que a cumplicidade e a complacência com essa atitude são, em si mesmas, uma caricatura vergonhosa do regime em que vivemos? O Presidente da República, tão certeiro e justo na defesa das liberdades ameaçadas pelo fanatismo religioso, admitirá que em Portugal a liberdade de expressão de um deputado possa ser punida com o internamento psiquiátrico num qualquer "goulag" insular? Dir-se-á que se trata apenas de uma brincadeira de mau gosto, mas isso não absolve o carácter sinistro da proposta jardinista. Ou será que a inimputabilidade de Jardim é um dado definitivamente adquirido da nossa normalidade democrática?

A obsessão com a crise nacional fez-nos esquecer, porventura, uma questão incómoda será que vivemos num estado de menoridade democrática? Não têm faltado, infelizmente, no passado, motivos para colocar essa questão. Mas ela já não pode ser iludida quando se considera aparentemente "normal", por acção ou omissão, o desprezo reiterado dos valores essenciais da liberdade, seja qual for a situação em que eles forem ameaçados e agredidos. Não é a mesma coisa desculpabilizar o fanatismo muçulmano ou propor a avaliação da sanidade mental de um deputado, mas ambos os casos ilustram essa menoridade democrática a que chegámos.

Pense-se o que se pensar das caricaturas dinamarquesas que estão na origem da actual crise internacional - e embora reconhecendo a sua natureza premeditadamente provocatória - só por cegueira ideológica ou por abdicação do direito à liberdade de expressão se pode confundir essa suposta causa da vaga incendiária islamita com os propósitos efectivos dos manipuladores das multidões "ofendidas". Também podemos discordar totalmente do teor das palavras do deputado socialista madeirense que estiveram na origem do requerimento de avaliação da sua "sanidade mental", mas em nenhum caso é tolerável que o seu direito a exprimir-se dê lugar a uma monstruosidade tão grotesca.

A liberdade de expressão não é um valor instrumental, sujeito a exercícios de "geometria variável". Ou existe ou não existe. A sua existência não tem apenas efeitos benévolos e pressupõe até perversões condenáveis. Mas o que os islamitas querem não é que nos limitemos a autocensurar o que possa ferir a sua susceptibilidade religiosa - é que pensemos e sejamos como eles. Num outro plano, o que pretende Jardim é que a liberdade de expressão na Madeira se reduza apenas à liberdade que ele oferece aos habitantes das ilhas a de lhe obedecerem.


Vicente Jorge Silva