O CONTRATO SOCIAL
Há pessoas que, vivendo exclusivamente do seu trabalho, pagam ao Estado em IRS 42% do que ganham: o escalão mais alto. A isto somam Segurança Social, imposto municipal sobre a casa, IA sobre o carro, imposto sobre a gasolina e 21% de IVA sobre tudo e mais alguma coisa. Contas feitas, entregam ao Estado metade do que ganham. Repito: metade do que ganham. Por incrível que vos pareça, existem pessoas que pagam isto tudo e que, ainda por cima, não subtraem ao Fisco um cêntimo dos seus rendimentos: declaram tudo e pagam tudo. Não têm fundações ou empresas para fazer escoar as despesas domésticas, familiares, as do carro ou outras, e não pedem nem têm isenções fiscais de qualquer ordem. Pode-vos parecer inverosímil, mas eu juro que estas pessoas existem entre nós: eu conheço algumas.
É certo que estamos a falar de uma minoria, embora não tão pequena como isso, visto que não é preciso ganhar nenhuma fortuna para ir parar ao escalão mais alto do IRS: basta ganhar bem e não fazer batota. O que esta gente tem de notável não é o facto de não fazerem batota com o Fisco ou de aguentarem sem um queixume a voracidade fiscal sem que ninguém lhes preste atenção. (Por exemplo, fala-se constantemente em descer o IRC para as empresas, mas nunca se fala em descer o IRS para os que vivem só do trabalho e que pagam quase o dobro das empresas.) A única coisa de notável em pagar tudo o que se deve ao Estado é que, entre nós, só uma minoria o faz. Mas isso não torna heróis os membros dessa minoria. Não, o que eles têm de notável é que o contrato social que mantêm com o Estado e a filosofia que lhe está subjacente é o oposto do que vigora em relação a quase todos os outros. Em Portugal, dos empresários aos sindicalistas, dos trabalhadores no activo aos reformados, dos jovens aos velhos, dos funcionários públicos aos artistas, todos vivem a reclamar, a pedir e a exigir do Estado. Estes não: estes apenas pagam e nada exigem em troca. Em muitos casos, aliás – porque podem e porque nada esperam –, com o dinheiro que o Estado lhes consente que guardem, tratam de pagar do seu bolso a saúde, a reforma, o ensino dos filhos.
Porque assim é, não admira que seja entre esta categoria de portugueses que vamos encontrar os que se revoltam com os casos dos gestores que saem de uma empresa pública com uma indemnização milionária para a seguir entrarem noutra. Ou com os autarcas que inventam empresas municipais para desempenharem as tarefas que cabem à Câmara e depois acumulam o ordenado de vereadores com o de gestores municipais. Ou com a arrogância e a falta de maneiras com que Alberto João Jardim acha que pode gastar livremente o dinheiro que lhe enviamos. Ou com os técnicos que, ao mudarem à bolina dos governos, ora nos propõem um TGV em L, em T deitado, em A sentado ou em B de cócoras, como se cada quilómetro de linha não nos viesse a custar milhões. Ou, enfim, com o ministro que, à míngua de argumentos que convençam, nos quer vender um aeroporto porque faz disso um capricho pessoal.
O povo da Madeira adora o dr. Jardim e com certeza que tem razão: tudo o que ele faz não lhes custa um tostão. Pela mesma razão, o povo daqui também se está nas tintas para a Ota, o TGV ou o destino do Alqueva. Todos os dias escuto reclamações de toda a gente: contra os salários na Função Pública, contra as pensões de reforma, contra o abono de família, contra a participação do Estado nos medicamentos, etc. Nunca nada é suficiente. Acredito que, em muitos casos, tenham razão, mas nunca os oiço pôr em dúvida a Ota ou reclamar contra os gastos públicos inúteis ou sumptuários. Porque, para quem não está habituado a pagar impostos a sério, uma coisa não tem que ver com a outra. Para quem está habituado a nada pagar ou a receber de volta mais do que paga, é-lhe indiferente se os outros vão pagar a Ota ou os aumentos das pensões de reforma. Aliás, às vezes tenho feito um exercício de curiosidade política para confirmar as minhas suspeitas na matéria. Consiste em perguntar a alguém que, por exemplo, se me queixa de que o aumento da reforma não lhe chega quanto é que acha que seria um aumento justo. Respondam-me 5 ou 10%, eu faço as contas de cabeça e digo: “Sabe quanto é que isso custaria a mais ao Estado? Xis. Sabe onde é que o Estado teria de ir buscar esse dinheiro? Ao bolso dos que pagam impostos, aumentando-lhes o imposto. Portanto, a senhora não deveria queixar-se do governo por não lhe aumentar a pensão. Deveria era dizer-me a mim que eu tenho de pagar mais para a sua pensão”. A resposta deixa invariavelmente os meus interlocutores espantados e a mim também. Eles, porque nunca tinham imaginado que o dinheiro do Estado pudesse vir todo do bolso dos que se cruzam com eles na rua. Eu, porque o espanto deles é, em parte, o retrato do país, e esse retrato mostra como temos pouco sentido de comunidade de direitos e deveres recíprocos.
Espero não cometer nenhuma indelicadeza nem injustiça comentando uma história que vi há dias na televisão. Uma senhora algarvia, ainda nova, beneficiária do Subsídio de Reintegração, queixava-se de que o dinheiro não lhe dava para nada. Entre o subsídio do Estado e mais outros rendimentos, cuja origem não consegui entender, recebia ela mil euros por mês, com dois filhos a cargo. De facto, mil euros por mês, com dois filhos, é menos que pouco. Mas conheço, todavia, quem ganhe o mesmo... trabalhando. O que me fez espécie é que a senhora em questão, além de ainda jovem e sem aparentes problemas de saúde, percebia-se que era inteligente e, pela forma como se expressava, não era propriamente alguém desqualificado. Ora, basta percorrer o Algarve para ver em todo o lado ofertas de trabalho, desde as mais visíveis e evidentes até outras que basta procurar. Porque é que ela não trabalha? Porque não aprende inglês ou informática ou hotelaria, aproveitando o subsídio e o tempo disponível para se requalificar? Porque prefere ficar em casa a queixar-se de que o subsídio é pouco?
O problema não está no Estado assistencial. Não está no Subsídio de Reintegração ou no Subsídio de Desemprego, que são mais do que justos. Também não está no que o Estado cobra de impostos para poder pagar isto, mais as pensões de reforma, a saúde, o ensino, os centros de dia e as creches públicas e tudo o resto. O problema está na falta de consciencialização de muitos de que o Estado só deve acorrer a quem precisa e enquanto precisa. E de que não é possível, nem seria justo, subir o IRS para 50 ou 60% para que a maioria dos portugueses vivesse bem à conta da assistência pública. O contrato social obriga a todos: obriga a que quem pode e ganha bem pague os impostos mais altos. Mas também obriga a quem não pode e recebe tudo fazer para deixar de precisar de ajuda. Se eu fugir ao Fisco, estarei a roubar um trabalhador que teve a infelicidade de ir para o desemprego e que precisa de ser ajudado. Mas se alguém recebe o Subsídio de Desemprego e por fora trabalha sem passar recibo para não perder o subsídio (e há tantos assim!), é ele que me está a roubar a mim. Talvez fosse útil explicar isto de vez em quando.
Miguel Sousa Tavares
É certo que estamos a falar de uma minoria, embora não tão pequena como isso, visto que não é preciso ganhar nenhuma fortuna para ir parar ao escalão mais alto do IRS: basta ganhar bem e não fazer batota. O que esta gente tem de notável não é o facto de não fazerem batota com o Fisco ou de aguentarem sem um queixume a voracidade fiscal sem que ninguém lhes preste atenção. (Por exemplo, fala-se constantemente em descer o IRC para as empresas, mas nunca se fala em descer o IRS para os que vivem só do trabalho e que pagam quase o dobro das empresas.) A única coisa de notável em pagar tudo o que se deve ao Estado é que, entre nós, só uma minoria o faz. Mas isso não torna heróis os membros dessa minoria. Não, o que eles têm de notável é que o contrato social que mantêm com o Estado e a filosofia que lhe está subjacente é o oposto do que vigora em relação a quase todos os outros. Em Portugal, dos empresários aos sindicalistas, dos trabalhadores no activo aos reformados, dos jovens aos velhos, dos funcionários públicos aos artistas, todos vivem a reclamar, a pedir e a exigir do Estado. Estes não: estes apenas pagam e nada exigem em troca. Em muitos casos, aliás – porque podem e porque nada esperam –, com o dinheiro que o Estado lhes consente que guardem, tratam de pagar do seu bolso a saúde, a reforma, o ensino dos filhos.
Porque assim é, não admira que seja entre esta categoria de portugueses que vamos encontrar os que se revoltam com os casos dos gestores que saem de uma empresa pública com uma indemnização milionária para a seguir entrarem noutra. Ou com os autarcas que inventam empresas municipais para desempenharem as tarefas que cabem à Câmara e depois acumulam o ordenado de vereadores com o de gestores municipais. Ou com a arrogância e a falta de maneiras com que Alberto João Jardim acha que pode gastar livremente o dinheiro que lhe enviamos. Ou com os técnicos que, ao mudarem à bolina dos governos, ora nos propõem um TGV em L, em T deitado, em A sentado ou em B de cócoras, como se cada quilómetro de linha não nos viesse a custar milhões. Ou, enfim, com o ministro que, à míngua de argumentos que convençam, nos quer vender um aeroporto porque faz disso um capricho pessoal.
O povo da Madeira adora o dr. Jardim e com certeza que tem razão: tudo o que ele faz não lhes custa um tostão. Pela mesma razão, o povo daqui também se está nas tintas para a Ota, o TGV ou o destino do Alqueva. Todos os dias escuto reclamações de toda a gente: contra os salários na Função Pública, contra as pensões de reforma, contra o abono de família, contra a participação do Estado nos medicamentos, etc. Nunca nada é suficiente. Acredito que, em muitos casos, tenham razão, mas nunca os oiço pôr em dúvida a Ota ou reclamar contra os gastos públicos inúteis ou sumptuários. Porque, para quem não está habituado a pagar impostos a sério, uma coisa não tem que ver com a outra. Para quem está habituado a nada pagar ou a receber de volta mais do que paga, é-lhe indiferente se os outros vão pagar a Ota ou os aumentos das pensões de reforma. Aliás, às vezes tenho feito um exercício de curiosidade política para confirmar as minhas suspeitas na matéria. Consiste em perguntar a alguém que, por exemplo, se me queixa de que o aumento da reforma não lhe chega quanto é que acha que seria um aumento justo. Respondam-me 5 ou 10%, eu faço as contas de cabeça e digo: “Sabe quanto é que isso custaria a mais ao Estado? Xis. Sabe onde é que o Estado teria de ir buscar esse dinheiro? Ao bolso dos que pagam impostos, aumentando-lhes o imposto. Portanto, a senhora não deveria queixar-se do governo por não lhe aumentar a pensão. Deveria era dizer-me a mim que eu tenho de pagar mais para a sua pensão”. A resposta deixa invariavelmente os meus interlocutores espantados e a mim também. Eles, porque nunca tinham imaginado que o dinheiro do Estado pudesse vir todo do bolso dos que se cruzam com eles na rua. Eu, porque o espanto deles é, em parte, o retrato do país, e esse retrato mostra como temos pouco sentido de comunidade de direitos e deveres recíprocos.
Espero não cometer nenhuma indelicadeza nem injustiça comentando uma história que vi há dias na televisão. Uma senhora algarvia, ainda nova, beneficiária do Subsídio de Reintegração, queixava-se de que o dinheiro não lhe dava para nada. Entre o subsídio do Estado e mais outros rendimentos, cuja origem não consegui entender, recebia ela mil euros por mês, com dois filhos a cargo. De facto, mil euros por mês, com dois filhos, é menos que pouco. Mas conheço, todavia, quem ganhe o mesmo... trabalhando. O que me fez espécie é que a senhora em questão, além de ainda jovem e sem aparentes problemas de saúde, percebia-se que era inteligente e, pela forma como se expressava, não era propriamente alguém desqualificado. Ora, basta percorrer o Algarve para ver em todo o lado ofertas de trabalho, desde as mais visíveis e evidentes até outras que basta procurar. Porque é que ela não trabalha? Porque não aprende inglês ou informática ou hotelaria, aproveitando o subsídio e o tempo disponível para se requalificar? Porque prefere ficar em casa a queixar-se de que o subsídio é pouco?
O problema não está no Estado assistencial. Não está no Subsídio de Reintegração ou no Subsídio de Desemprego, que são mais do que justos. Também não está no que o Estado cobra de impostos para poder pagar isto, mais as pensões de reforma, a saúde, o ensino, os centros de dia e as creches públicas e tudo o resto. O problema está na falta de consciencialização de muitos de que o Estado só deve acorrer a quem precisa e enquanto precisa. E de que não é possível, nem seria justo, subir o IRS para 50 ou 60% para que a maioria dos portugueses vivesse bem à conta da assistência pública. O contrato social obriga a todos: obriga a que quem pode e ganha bem pague os impostos mais altos. Mas também obriga a quem não pode e recebe tudo fazer para deixar de precisar de ajuda. Se eu fugir ao Fisco, estarei a roubar um trabalhador que teve a infelicidade de ir para o desemprego e que precisa de ser ajudado. Mas se alguém recebe o Subsídio de Desemprego e por fora trabalha sem passar recibo para não perder o subsídio (e há tantos assim!), é ele que me está a roubar a mim. Talvez fosse útil explicar isto de vez em quando.
Miguel Sousa Tavares
Etiquetas: Emprego
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