quinta-feira, 29 de março de 2007

O MÍTICO LORCA NUM LIVRO MAGISTRAL



Obra Poética traduzida por José Bento

Já está nas livrarias a magnífica «Obra Poética» de Federico García Lorca, com tradução, prólogo e notas do nosso grande poeta e tradutor José Bento, que tanto tem contribuído para divulgar entre nós autores de língua castelhana. Distinguido em Dezembro último com o Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura, José Bento traz-nos mais um nome de «grandeza mítica» da Literatura universal, o frémito do malogrado Lorca, que em Agosto de 1936, com apenas 38 anos, se «tornou um dos símbolos da Espanha martirizada» pela Guerra Civil.

«En la bandera de la libertad bordé el amor más grande de mi vida», escreveu Lorca. Mas o sonho tropeça na realidade e esta sua era de amor e morte, que ele assim pressagiou:
«Eu vi dois meninos loucos

que a chorar empurravam as pupilas de um assassino.


Mas o dois não foi nunca um número

porque é uma angústia e uma sombra,

porque é a guitarra onde o amor se desespera».

Editada pela Relógio D´Água, a presente Antologia é bilingue, com a tradução portuguesa na página contígua do original castelhano, o que permite ao leitor poder envolver-se plenamente com os textos. Aliás, esta é a metodologia das edições bilingues desta editora, que muito aplaudimos, ao invés de outras que trazem o original numa secção à parte.

Verdadeira cartografia histórica e emocional da Guerra Civil de Espanha, a poética de Lorca irradia a grandeza da palavra daquele de quem foi dito ser «mais perigoso com a caneta do que outros com o revólver». Com efeito, a desdita de Lorca foi viver no tempo do franquismo, o tempo da «agonia com flores de terror», das «rosas de enxofre». Sem que a História o explique, Lorca volta a casa, em Granada, ao encontro do centro do conflito. Todavia, as razões desse regresso podem estar na sua poesia:

«Quero descer ao poço,

quero subir aos muros de Granada,

para fitar o coração vazado

pelo buril escuro que há nas águas».

Na madrugada de 18 de Agosto de 1936 era fuzilado. O seu corpo nunca apareceu. Um corpo enterrado num catavento, como ele parece ter previsto:

«Quando eu morrer,

enterrai-me com minha guitarra

debaixo da areia.

Quando eu morrer,

entre as laranjeiras

e a hortelã.

Quando eu morrer,

enterrai-me, se quiserdes,

num catavento.

Quando eu morrer!».

Nos seus poemas e na prosa poética, são feitas inúmeras referências bíblicas com a recriação instigada pelos tempos cruéis que testemunhava, o cruel e «branco muro de Espanha», o desamparo de um «Deus fechado na custódia», como nos extractos que transcrevemos, primeiro da «Degolação de Baptista», a seguir da «Degolação dos inocentes»:

«(…)Por fim venceram os negros. Mas as pessoas tinham a convicção de que ganhariam os vermelhos. A recém-parida tinha um medo terrível do sangue, mas o sangue dançava lentamente com um urso tingido de cinábrio sob suas varandas. Não era possível a existência dos panos brancos, nem era possível a água doce nos vales (…) A degolação foi horripilante. Mas maravilhosamente realizada. A faca era prodigiosa. Ao fim e ao cabo, a carne é sempre pança de rã. Tem que ir-se contra a carne. Tem que levantar-se fábricas de facas. (…) o especialista da degolação (...)conhece o pescoço tenríssimo da perdiz viva. O Baptista estava de joelhos. O degolador era um homem minúsculo. Mas a faca era uma faca. Uma faca chispante, uma faca de chispas com os dentes apertados»;

«(…)Às seis da tarde já não restavam mais que seis meninos por degolar. Os relógios de areia continuavam a sangrar mas já estavam secas todas as feridas.

Todo o sangue estava já cristalizado quando começaram a surgir os candeeiros. Nunca será no muro outra noite igual. Noite de vidros e mãozinhas geladas. Os seios enchiam-se de leite inútil.

O leite maternal e a lua sustentaram a batalha contra o sangue triunfante. Mas o sangue já se apodera dos mármores e ali cravava as suas últimas raízes enlouquecidas.».

No grandioso poema «Cidade sem sono», feito à maneira exaltada e vibrante de Walt Whitman – que também influencia Álvaro de Campos, o futurista, heterónimo de Fernando Pessoa –, Lorca denuncia o tempo de castração e violência e lança o alerta para a necessidade de se estar com os olhos sempre bem abertos:

«(...)

Não dorme ninguém no mundo. Ninguém, ninguém.

Não dorme ninguém.

Há um morto no cemitério mais longínquo

que se queixa três anos

porque tem uma paisagem seca no joelho

e o menino que enterraram esta manhã chorava tanto

que foi preciso chamar os cães para que se calasse.

A vida não é sonho. Alerta! Alerta! Alerta!

Caímos pelas escadas para comer a terra húmida

ou subimos ao gume da neve com o coro das dálias mortas.

Mas não há esquecimento nem sonho:

carne viva. Os beijos atam as bocas

num emaranhado de veias recentes

e a quem dói a sua dor doerá sem descanso

e o que teme a morte tem de levá-la sobre os ombros.

(…)

Alerta! Alerta! Alerta

aos que guardam ainda pegadas de garra e aguaceiro!

Àquele rapaz que chora porque não sabe a invenção da ponte

ou àquele morto que já não tem mais que a cabeça e um sapato,

há que levá-los ao muro onde iguanas e serpentes esperam,

onde espera a dentadura do urso,

onde espera a mão mumificada do menino

e a pele do camelo se eriça com violento calafrio azul.

Não dorme ninguém no céu. Ninguém, ninguém.

Não dorme ninguém.

Mas se alguém fecha os olhos,

acoitai-o, meus filhos, açoitai-o!

Haja um panorama de olhos abertos

E amargas chagas acesas.

Não dorme ninguém no mundo. Ninguém, ninguém.

Já o disse.

Não dorme ninguém.

Mas se alguém de noite tem excesso de musgo nas têmporas,

abri os alçapões para que veja sob a lua

as falsas taças, o veneno e a caveira dos teatros.»


Obra Poética - Federico García Lorca; Relógio D´Água Editores

Teresa Sá Couto
KA


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1 Comments:

At 27 de julho de 2007 às 17:01, Anonymous Anónimo said...

Muito obrigada por ler as minhas sugestões.
Um abraço
Teresa Sá Couto

 

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