O MÍTICO LORCA NUM LIVRO MAGISTRAL
Obra Poética traduzida por José Bento
«En la bandera de la libertad bordé el amor más grande de mi vida», escreveu Lorca. Mas o sonho tropeça na realidade e esta sua era de amor e morte, que ele assim pressagiou:
«Eu vi dois meninos loucos
que a chorar empurravam as pupilas de um assassino.
Mas o dois não foi nunca um número
porque é uma angústia e uma sombra,
porque é a guitarra onde o amor se desespera».
Editada pela Relógio D´Água, a presente Antologia é bilingue, com a tradução portuguesa na página contígua do original castelhano, o que permite ao leitor poder envolver-se plenamente com os textos. Aliás, esta é a metodologia das edições bilingues desta editora, que muito aplaudimos, ao invés de outras que trazem o original numa secção à parte.
Verdadeira cartografia histórica e emocional da Guerra Civil de Espanha, a poética de Lorca irradia a grandeza da palavra daquele de quem foi dito ser «mais perigoso com a caneta do que outros com o revólver». Com efeito, a desdita de Lorca foi viver no tempo do franquismo, o tempo da «agonia com flores de terror», das «rosas de enxofre». Sem que a História o explique, Lorca volta a casa, em Granada, ao encontro do centro do conflito. Todavia, as razões desse regresso podem estar na sua poesia:
«Quero descer ao poço,
quero subir aos muros de Granada,
para fitar o coração vazado
pelo buril escuro que há nas águas».
Na madrugada de 18 de Agosto de 1936 era fuzilado. O seu corpo nunca apareceu. Um corpo enterrado num catavento, como ele parece ter previsto:
«Quando eu morrer,
enterrai-me com minha guitarra
debaixo da areia.
Quando eu morrer,
entre as laranjeiras
e a hortelã.
Quando eu morrer,
enterrai-me, se quiserdes,
num catavento.
Quando eu morrer!».
Nos seus poemas e na prosa poética, são feitas inúmeras referências bíblicas com a recriação instigada pelos tempos cruéis que testemunhava, o cruel e «branco muro de Espanha», o desamparo de um «Deus fechado na custódia», como nos extractos que transcrevemos, primeiro da «Degolação de Baptista», a seguir da «Degolação dos inocentes»:
«(…)Por fim venceram os negros. Mas as pessoas tinham a convicção de que ganhariam os vermelhos. A recém-parida tinha um medo terrível do sangue, mas o sangue dançava lentamente com um urso tingido de cinábrio sob suas varandas. Não era possível a existência dos panos brancos, nem era possível a água doce nos vales (…) A degolação foi horripilante. Mas maravilhosamente realizada. A faca era prodigiosa. Ao fim e ao cabo, a carne é sempre pança de rã. Tem que ir-se contra a carne. Tem que levantar-se fábricas de facas. (…) o especialista da degolação (...)conhece o pescoço tenríssimo da perdiz viva. O Baptista estava de joelhos. O degolador era um homem minúsculo. Mas a faca era uma faca. Uma faca chispante, uma faca de chispas com os dentes apertados»;
«(…)Às seis da tarde já não restavam mais que seis meninos por degolar. Os relógios de areia continuavam a sangrar mas já estavam secas todas as feridas.
Todo o sangue estava já cristalizado quando começaram a surgir os candeeiros. Nunca será no muro outra noite igual. Noite de vidros e mãozinhas geladas. Os seios enchiam-se de leite inútil.
O leite maternal e a lua sustentaram a batalha contra o sangue triunfante. Mas o sangue já se apodera dos mármores e ali cravava as suas últimas raízes enlouquecidas.».
No grandioso poema «Cidade sem sono», feito à maneira exaltada e vibrante de Walt Whitman – que também influencia Álvaro de Campos, o futurista, heterónimo de Fernando Pessoa –, Lorca denuncia o tempo de castração e violência e lança o alerta para a necessidade de se estar com os olhos sempre bem abertos:
«(...)
Não dorme ninguém no mundo. Ninguém, ninguém.
Não dorme ninguém.
Há um morto no cemitério mais longínquo
que se queixa três anos
porque tem uma paisagem seca no joelho
e o menino que enterraram esta manhã chorava tanto
que foi preciso chamar os cães para que se calasse.
A vida não é sonho. Alerta! Alerta! Alerta!
Caímos pelas escadas para comer a terra húmida
ou subimos ao gume da neve com o coro das dálias mortas.
Mas não há esquecimento nem sonho:
carne viva. Os beijos atam as bocas
num emaranhado de veias recentes
e a quem dói a sua dor doerá sem descanso
e o que teme a morte tem de levá-la sobre os ombros.
(…)
Alerta! Alerta! Alerta
aos que guardam ainda pegadas de garra e aguaceiro!
Àquele rapaz que chora porque não sabe a invenção da ponte
ou àquele morto que já não tem mais que a cabeça e um sapato,
há que levá-los ao muro onde iguanas e serpentes esperam,
onde espera a dentadura do urso,
onde espera a mão mumificada do menino
e a pele do camelo se eriça com violento calafrio azul.
Não dorme ninguém no céu. Ninguém, ninguém.
Não dorme ninguém.
Mas se alguém fecha os olhos,
acoitai-o, meus filhos, açoitai-o!
Haja um panorama de olhos abertos
E amargas chagas acesas.
Não dorme ninguém no mundo. Ninguém, ninguém.
Já o disse.
Não dorme ninguém.
Mas se alguém de noite tem excesso de musgo nas têmporas,
abri os alçapões para que veja sob a lua
as falsas taças, o veneno e a caveira dos teatros.»
Teresa Sá Couto
KA
1 Comments:
Muito obrigada por ler as minhas sugestões.
Um abraço
Teresa Sá Couto
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