LOBOS E CORDEIRINHOS
1. Por causa das gravuras supostamente paleolíticas de Foz Coa (algumas desenhadas há 30 anos) deixou de se fazer uma barragem que era importante para a regularização do Douro; e, por não se ter feito essa barragem, vai avançar-se agora com a respectiva compensação, que é uma barragem no Sabor - um dos últimos rios despoluídos e em estado natural do país - que terá consequências ambientais desastrosas.
Mas, na altura, Guterres e Carrilho queriam inaugurar o seu Governo com uma caução cultural, cavalgando uma onda de demagogia imaginada por uma inteligente máquina propagandística de interessados em arranjar um tacho no futuro Parque Paleolítico do Coa.
As gravuras não sabem nadar, gritavam eles. E, porque as gravuras não sabem nadar, destrói-se o rio Sabor.
Tempos depois, foi a vez das pegadas da passagem de um dinossauro na CREL.
Achado arqueológico de extrema importância, arranjou logo os seus acérrimos defensores.
Fez-se então um túnel, para preservar por cima as marcas indeléveis da passagem do dinossauro excelentíssimo.
Tal como em Foz Coa, as boas almas que se encarregam de desbaratar dinheiros públicos a qualquer pretexto juraram que o local seria ponto de permanente romaria de criancinhas das escolas, levadas compulsivamente, e de milhares, milhões de adultos, idos voluntariamente, em súbito fervor histórico-cultural. E só a chegada do défice evitou que ao túnel se juntasse ainda um museu do dinossauro.
Mesmo assim, milhões e milhões e milhões depois, duvido que mais de uma dúzia de curiosos por ano se preocupe em ir ver as pegadas do bicho; e, quanto a Foz Coa, retenho a exclamação sentida de uma habitante local, aqui há tempos: Até agora, ainda não ganhámos nada com as gravuras!
Pois não , minha senhora, mas isto de ganhar dinheiro sem fazer nada, apenas abrindo a torneira do Estado, não acontece todos os dias.
Agora, li aqui que, por cima da A-24, entre Chaves e Vila Pouca de Aguiar, se fez um loboduto, para que os distintos animais (que não se sabe ao certo quantos são) não vejam interrompidos os seus supostos territórios de passagem na serra da Falperra.
Eu acho o lobo um animal interessante e Deus me livre de não os querer preservar.
Mas, francamente, 100 milhões de euros (20 milhões de contos!) por um loboduto - onde, ainda por cima e segundo testemunhos locais, é improvável que venha a passar algum lobo, porque não só não se sabe se eles existem mesmo ali como ainda se sabe que ao lado existe uma pedreira que costuma fazer explosões - parece-me um bocadinho, como direi, talvez exagerado?... Vamos admitir que existem por ali dez lobos, a quem aquilo facilita a vida; vamos mesmo admitir que existem vinte: um milhão de contos por lobo não será de mais?
Quantos anos, e sempre com gravíssimos problemas de saúde e assistência, não teria de viver um português para que o Estado gastasse com ele um milhão de contos?
Como se conseguiu chegar a este verdadeiro deboche contabilístico? Segundo conta o Expresso, da maneira mais simples e mais habitual: através da contratação de estudos e pareceres técnicos a especialistas.
A consultadoria para o Estado - um dos mais prósperos negócios que existem em Portugal.
2. Pela mesma altura de Foz Coa - governava Guterres e era ministro da Economia Pina Moura -, a consultadoria externa levou o Estado a celebrar outro extraordinário negócio. Existia uma empresa privada, a Grão Pará, que parece que tinha o mau hábito de se esquecer de pagar à Segurança Social. Já uma vez tinha conseguido negociar de forma a que o Estado lhe pusesse as dívidas a zero, mas, anos depois, estava outra vez na mesma situação. Como resolver o problema?
Por dação em pagamento.
Acontece que a dita empresa tinha dois bens, qual deles o mais valioso.
Um era um hotel no Funchal, construído ao lado do que dava para imaginar facilmente que um dia seria o prolongamento da pista de aterragem do aeroporto.
Quando a pista foi mesmo prolongada, o hotel ficou condenado à falência, porque não há muitos hóspedes que queiram dormir onde aterram aviões.
O outro era o Autódromo do Estoril, onde sucessivas injecções de dinheiros públicos não tinham conseguido o milagre de o tornar rentável nem sequer de lá manter a Fórmula 1. E foi com estes dois bens falidos que o Estado se contentou em troca do perdão da dívida.
Na altura escrevi um artigo perguntando como é que um Governo que tudo queria privatizar se lembrava de nacionalizar um autódromo e como é que o Estado transformava um crédito num encargo financeiro para si.
Respondeu no mesmo jornal o ministro Pina Moura.
Dizia que o autódromo era essencial para o turismo e para o interesse público e que, feitas umas pequenas obras de melhoramento, logo regressaria a Fórmula 1 e lucros a perder de vista.
Passaram-se dez anos e o Autódromo do Estoril, depois de dezenas de milhões de euros de dinheiros públicos gastos em melhoramentos, manutenção e honorários dos seus administradores (e, obviamente, sem jamais voltar a ver a Fórmula 1 ou qualquer coisa que se parecesse), foi esta semana posto em leilão público por 35 milhões de euros.
Não apareceu nenhum interessado.
Pelo que, das duas uma: ou se arrasa e urbaniza tudo aquilo (fazendo mais uma alteração legislativa, porque os terrenos são de construção proibida), ou teremos de continuar a suportar eternamente os custos deste brilhante acto de governação.
3. E sabem porque é que estas coisas acontecem?
Porque há um poderosíssimo lóbi de consultadoria instalado à mama do Estado, há anos sem fio, que dita, influencia e condiciona as decisões dos executivos. Para 2008, o Governo orçamentou 370 milhões de euros (!) para gastar com eles em estudos, pareceres, projectos e consultadoria.
Eles, quem?
Pois, isso é segredo de Estado, há um ano que o semanário Sol tenta obter, ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos, a lista dos beneficiários deste bodo.
Em vão.
O Governo fecha-se em copas e os tribunais administrativos protegem-lhe a manha.
É que, se visse a público a lista das eminentes personalidades, dos ilustres técnicos e dos influentes escritórios de advogados e consultores que entre si fazem assessoria aos governos - seja para comprar armas, submarinos ou autódromos ou para dar parecer técnico sobre lobodutos ou contratos com Angola -, uma grossa fatia da respeitabilidade pública desabaria por terra.
Repito o que de há muito venho dizendo: em termos de cidadania, há duas espécies de portugueses - os que vivem a pagar ao Estado e os que vivem a tirar ao Estado. E o resto é conversa de comendadores ou de benfeitores.
Miguel Sousa Tavares
Mas, na altura, Guterres e Carrilho queriam inaugurar o seu Governo com uma caução cultural, cavalgando uma onda de demagogia imaginada por uma inteligente máquina propagandística de interessados em arranjar um tacho no futuro Parque Paleolítico do Coa.
As gravuras não sabem nadar, gritavam eles. E, porque as gravuras não sabem nadar, destrói-se o rio Sabor.
Tempos depois, foi a vez das pegadas da passagem de um dinossauro na CREL.
Achado arqueológico de extrema importância, arranjou logo os seus acérrimos defensores.
Fez-se então um túnel, para preservar por cima as marcas indeléveis da passagem do dinossauro excelentíssimo.
Tal como em Foz Coa, as boas almas que se encarregam de desbaratar dinheiros públicos a qualquer pretexto juraram que o local seria ponto de permanente romaria de criancinhas das escolas, levadas compulsivamente, e de milhares, milhões de adultos, idos voluntariamente, em súbito fervor histórico-cultural. E só a chegada do défice evitou que ao túnel se juntasse ainda um museu do dinossauro.
Mesmo assim, milhões e milhões e milhões depois, duvido que mais de uma dúzia de curiosos por ano se preocupe em ir ver as pegadas do bicho; e, quanto a Foz Coa, retenho a exclamação sentida de uma habitante local, aqui há tempos: Até agora, ainda não ganhámos nada com as gravuras!
Pois não , minha senhora, mas isto de ganhar dinheiro sem fazer nada, apenas abrindo a torneira do Estado, não acontece todos os dias.
Agora, li aqui que, por cima da A-24, entre Chaves e Vila Pouca de Aguiar, se fez um loboduto, para que os distintos animais (que não se sabe ao certo quantos são) não vejam interrompidos os seus supostos territórios de passagem na serra da Falperra.
Eu acho o lobo um animal interessante e Deus me livre de não os querer preservar.
Mas, francamente, 100 milhões de euros (20 milhões de contos!) por um loboduto - onde, ainda por cima e segundo testemunhos locais, é improvável que venha a passar algum lobo, porque não só não se sabe se eles existem mesmo ali como ainda se sabe que ao lado existe uma pedreira que costuma fazer explosões - parece-me um bocadinho, como direi, talvez exagerado?... Vamos admitir que existem por ali dez lobos, a quem aquilo facilita a vida; vamos mesmo admitir que existem vinte: um milhão de contos por lobo não será de mais?
Quantos anos, e sempre com gravíssimos problemas de saúde e assistência, não teria de viver um português para que o Estado gastasse com ele um milhão de contos?
Como se conseguiu chegar a este verdadeiro deboche contabilístico? Segundo conta o Expresso, da maneira mais simples e mais habitual: através da contratação de estudos e pareceres técnicos a especialistas.
A consultadoria para o Estado - um dos mais prósperos negócios que existem em Portugal.
2. Pela mesma altura de Foz Coa - governava Guterres e era ministro da Economia Pina Moura -, a consultadoria externa levou o Estado a celebrar outro extraordinário negócio. Existia uma empresa privada, a Grão Pará, que parece que tinha o mau hábito de se esquecer de pagar à Segurança Social. Já uma vez tinha conseguido negociar de forma a que o Estado lhe pusesse as dívidas a zero, mas, anos depois, estava outra vez na mesma situação. Como resolver o problema?
Por dação em pagamento.
Acontece que a dita empresa tinha dois bens, qual deles o mais valioso.
Um era um hotel no Funchal, construído ao lado do que dava para imaginar facilmente que um dia seria o prolongamento da pista de aterragem do aeroporto.
Quando a pista foi mesmo prolongada, o hotel ficou condenado à falência, porque não há muitos hóspedes que queiram dormir onde aterram aviões.
O outro era o Autódromo do Estoril, onde sucessivas injecções de dinheiros públicos não tinham conseguido o milagre de o tornar rentável nem sequer de lá manter a Fórmula 1. E foi com estes dois bens falidos que o Estado se contentou em troca do perdão da dívida.
Na altura escrevi um artigo perguntando como é que um Governo que tudo queria privatizar se lembrava de nacionalizar um autódromo e como é que o Estado transformava um crédito num encargo financeiro para si.
Respondeu no mesmo jornal o ministro Pina Moura.
Dizia que o autódromo era essencial para o turismo e para o interesse público e que, feitas umas pequenas obras de melhoramento, logo regressaria a Fórmula 1 e lucros a perder de vista.
Passaram-se dez anos e o Autódromo do Estoril, depois de dezenas de milhões de euros de dinheiros públicos gastos em melhoramentos, manutenção e honorários dos seus administradores (e, obviamente, sem jamais voltar a ver a Fórmula 1 ou qualquer coisa que se parecesse), foi esta semana posto em leilão público por 35 milhões de euros.
Não apareceu nenhum interessado.
Pelo que, das duas uma: ou se arrasa e urbaniza tudo aquilo (fazendo mais uma alteração legislativa, porque os terrenos são de construção proibida), ou teremos de continuar a suportar eternamente os custos deste brilhante acto de governação.
3. E sabem porque é que estas coisas acontecem?
Porque há um poderosíssimo lóbi de consultadoria instalado à mama do Estado, há anos sem fio, que dita, influencia e condiciona as decisões dos executivos. Para 2008, o Governo orçamentou 370 milhões de euros (!) para gastar com eles em estudos, pareceres, projectos e consultadoria.
Eles, quem?
Pois, isso é segredo de Estado, há um ano que o semanário Sol tenta obter, ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos, a lista dos beneficiários deste bodo.
Em vão.
O Governo fecha-se em copas e os tribunais administrativos protegem-lhe a manha.
É que, se visse a público a lista das eminentes personalidades, dos ilustres técnicos e dos influentes escritórios de advogados e consultores que entre si fazem assessoria aos governos - seja para comprar armas, submarinos ou autódromos ou para dar parecer técnico sobre lobodutos ou contratos com Angola -, uma grossa fatia da respeitabilidade pública desabaria por terra.
Repito o que de há muito venho dizendo: em termos de cidadania, há duas espécies de portugueses - os que vivem a pagar ao Estado e os que vivem a tirar ao Estado. E o resto é conversa de comendadores ou de benfeitores.
Miguel Sousa Tavares
Etiquetas: Dinheiro Lançado no Cano de Esgoto, Estudos e Pareceres, Influentes Escritórios de Advogados, Lobi da Consultadoria, Técnicos Ilustres
2 Comments:
Parabéns pela crónica.
Só não percebo porque motivo é que a sociedade civil não se revolta contra esta e outras situações.
Será que estão todos a comer da gamela?
Para quem queira ler mais que demagogia barata sobre os lobos aconselho:
http://ambio.blogspot.com/
henrique pereira dos santos
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