segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

ARMAS DE ARREMESSO

Tal como outras actividades humanas, a política tem as suas regras.
Assim como tradições, hábitos, leis e rotinas.
Quase tudo se sabe e conhece.
É difícil haver surpresas.
Mesmo assim, há ilusões e as pessoas, muitas pessoas, acreditam ou vivem nelas.

Os políticos falam verdade e mentem indiferentemente.
Realizam o prometido ou não, sem qualquer dúvida ou remorso.
Defendem, sucessiva e metodicamente, o interesse geral, o partidário e o pessoal, sem nunca deixar de garantir que se trata do interesse nacional. Procuram sobretudo os votos e tentam conquistar, manter e renovar o poder, afirmando sempre que o essencial é o bem-estar da população.
Acusam os adversários, ora no poder, ora na oposição, de tudo
quanto fazem eles próprios, exibindo sempre a pureza original dos servidores do público. Com os impostos e o emprego na função pública, fazem quase sempre o contrário do que disseram, acusando-se mutuamente de mentira e hipocrisia. Demitem impiedosamente os adversários e até os amigos, em nome da transparência e da legitimidade democrática, sem esquecer de denunciar o despotismo dos opositores quando fazem exactamente o mesmo.
Em nome da modernidade e da eficácia, favorecem as empresas, os capitalistas e as associações civis que os ajudam e prejudicam os que a tal se negam, estando sempre disponíveis para, na oposição, expor a promiscuidade dos adversários.
No poder, interferem discretamente na justiça e na investigação policial, actuação que, na oposição, desvendam prontamente.
No governo, condicionam e tentam manipular a informação, mas, na oposição, proclamam-se os mais inocentes defensores da liberdade de expressão e do pluralismo.

Tudo isto é sabido.
Mesmo assim, os políticos persistem no seu comportamento e o público vai acreditando.

Como no amor, na economia e no futebol, o facto de haver regras e de se conhecerem os hábitos não impede que se viva na ilusão e se mantenha um comportamento dúplice.
No amor, é frequente interditar ao parceiro aquilo que se permite a si próprio. E acreditam na sedução mesmo os que conhecem as suas regras.

Na economia, ganhar e vencer são os únicos critérios válidos, enquanto roubar ou trair só são criticáveis se foram vistos.
Com o dinheiro, a moral é quase sempre para uso alheio.
No futebol, fracturar a perna de um adversário temível só é condenável se não for bem feito.
São estranhos estes comportamentos.

Conhecem-se as regras, percebem-se os interesses, sabe-se que é ilusão e tem-se a exacta consciência da encenação.
Mesmo assim, vive-se como se estivéssemos diante de factos genuínos e situações novas.
Faz pensar naqueles filmes que vimos dezenas de vezes e que guardam toda a sua capacidade de nos comover e até talvez de surpreender.


Terminada a presidência portuguesa da União, atiraram-se imediatamente as armas de arremesso. Entre outras, o referendo e a remodelação.
O primeiro é já usual.
Só se lembram dele quando pretendem agredir ou incomodar o adversário.

Sócrates e o PS garantiram, durante anos, que se faria referendo europeu.
A direcção nacional do PSD prometeu, por unanimidade, realizar um referendo.
Agora que não vêem nenhuma vantagem puramente partidária, ambos negam o que garantiram.
Para o que recorrem aos conhecidos argumentos defensivos.
Os resultados são previsíveis.
O referendo é tão democrático quanto o Parlamento.
Não é uma constituição, é um tratado.
Este tratado é igual ao anterior.
Um referendo é caro.
A participação dos cidadãos é reduzida.
Os outros parceiros europeus também não fazem.
Não se pode pôr em causa a eficácia da União.
Não os choca o facto de ser evidente que não há referendo porque não interessa directamente a um partido.
Nem os incomoda saber-se que a Nomenclatura europeia combinou não o realizar e força quem tem dúvidas.
Aos dois grandes partidos é-lhes totalmente alheia qualquer preocupação relativa à participação política ou à identificação dos cidadãos com os ideais europeus.
Interessa-lhes, isso sim, o que pode ajudar o seu próprio partido e prejudicar o adversário.

Quanto à remodelação, é o habitual.
Os partidos da oposição não querem que o Governo a faça, pois seria sinal de que ainda tem energia.
Para tal conseguir, dizem depressa que é necessária, na esperança de a ver recusada pelo primeiro-ministro que não quer remodelar sob pressão.
Caso se faça, os partidos da oposição já sabem exactamente o que dizer: é insuficiente, foi só cosmética, o essencial não foi feito.
É sempre assim.
Sempre foi assim. E assim será.
Os socialistas fizeram-no sempre.
Os sociais-democratas também.
Tal como os outros. Sabemos isso.
Eles sabem isso.
Mesmo assim, o jogo de espelhos continua.
A ilusão vigora.
Muitos acreditam nela.
O mais provável é que não haja remodelação. Ou simplesmente uma substituição casual.
Nenhum ministro faz sombra ao primeiro.
Nenhum tem peso suficiente, nem sequer para o disparate, para inquietar o primeiro.
Todas as políticas são suas.
Como exclusivamente suas são as inaugurações, as distribuições, os aumentos e os subsídios.
Nada disto impede que a remodelação ocupe primeiras páginas e telejornais durante uns tempos.
A ilusão funciona assim.
É este o jogo de espelhos.
É contra os espelhos que se atiram pedradas.


António Barreto

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1 Comments:

At 18 de dezembro de 2007 às 21:48, Anonymous Anónimo said...

É este, exactamente o problema: “São mais os portugueses que estão preocupados em saber qual o casal a quem a TVI vai pagar as despesas do casamento do que em saber se terão que ir às mesas de voto cumprir com a sua obrigação cívica”.

E o drama, é que esta é, efectivamente, a posição da generalidade dos portugueses; o estar-se nas tintas, o deixar que outros decidam por si, o descartar-se sistematicamente de tudo o que se revele necessário de dar uso ao cérebro, o que em muito contribui para que continuemos este estado de alienação colectiva, pobreza, incultura e irresponsabilidade, generalizadas.

Contrariamente ao estimado amigo, autor do Jumento, eu sou a favor do referendo. O povo, essa massa de retórica que serve para tudo justificar, ignora a totalidade do que diga respeito à Europa, razão pela qual, é necessário falar dela, discutir as vantagens e desvantagens da integração, reflectir profundamente as oportunidades que se abrem, bem como enumerar as portas que se fecham.

O que de todo me parece insustentável é esta maneira de ser e estar na vida e no mundo, vivendo de telenovelas e, passando ao lado da vida real.

 

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