sexta-feira, 24 de dezembro de 2004

NÃO HÁ PRESSA





1. Há cerca de um mês que Jorge Sampaio anunciou que iria dissolver a Assembleia e convocar novas eleições, mas só anteontem é que assinou o respectivo decreto. Isto finalmente feito, poderíamos perfeitamente ter eleições daqui a 12 dias, como sucede em Inglaterra, mas não, vamos ter de esperar ainda dois meses, porque a lei eleitoral assim o exige. Considerando que a dita campanha já começou na prática, são três meses de desgaste político para que, no final, tudo se resuma a uma questão que já toda a gente percebeu ser a única coisa que está em jogo: saber se queremos ou não continuar a ser desgovernados por Santana Lopes e a sua gente.

Simultaneamente, um grupo de cidadãos lisboetas, usando uma prerrogativa legal que caracteriza os países democráticos, requereu a realização de um referendo ao mais que controverso túnel do Marquês de Pombal. Aceite a realização do referendo, seria lógico e recomendável que se aproveitasse a ida às urnas, em 20 de Fevereiro, para se consultar sobre este ponto os eleitores de Lisboa. Nos Estados Unidos, até as presidenciais são aproveitadas para um sem-número de referendos e eleições locais. Nós, porém, somos mais avançados: a lei proíbe expressamente a realização de referendos locais entre a data da convocação de eleições legislativas e a sua realização. Por outro lado, como o processo de convocação de um referendo precisa de 110(!) dias úteis, a contar, neste caso, de 20 de Fevereiro, a data possível para o referendo iria cair em cima das autárquicas de Outubro - o que também é vedado. Conclusão: esmiuçadas todas as possibilidades legais e desvendados os meandros secretos da vontade do legislador, os lisboetas só poderão dar a sua opinião sobre o túnel do Marquês quando ele estiver já previsivelmente acabado.

Eis o sistema jurídico-político em que vivemos, objecto de grande orgulho dos seus autores. Junte-se a isto uma Constituição tão prolixa quanto bloqueadora - em nome da qual é possível, por exemplo, continuar a exigir a regionalização que os portugueses já recusaram - e temos o retrato paradigmático do edifício legal que dá corpo a um país eternamente suspenso, paralisado e sem pressa alguma de recuperar o tempo perdido.

2. O folheto de autopropaganda do Governo, a pretexto do Orçamento, publicado com alguns jornais diários de anteontem, custou muito mais do que os cem mil euros de que fala Morais Sarmento. Cem mil euros terá sido apenas o custo da publicação: falta os custos do papel, da impressão e da redacção e concepção, sem dúvida a cargo de uma dessas empresas de assessoria e imagem que sempre vivem junto de Santana Lopes e prosperam com as suas necessidades de promoção pessoal e disponibilidades de dinheiros públicos.

O folheto não é, como diz Morais Sarmento, apenas um meio de explicar aos portugueses onde é gasto o dinheiro dos seus impostos - para além do próprio folheto. É um despudorado instrumento de propaganda política, ridícula e até pirosa, pensada para ignorantes ou patetas - os tais "portuguesas e portugueses" a quem Santana Lopes gosta de se dirigir no início dos seus discursos, convencido, como está, que continua a derramar mel sobre eles.

É também uma antevisão daquilo que irá ser a substância da mensagem política desta maioria, daqui até 20 de Fevereiro. José Luís Arnault está convencido (estará mesmo?) de que é quanto baste para evitar o desastre anunciado. Ele conta com o "espectacular" fenómeno circense constituído pelos números de oratória de Santana Lopes. Espera que o líder faça o que for necessário para compensar a ausência do essencial, sobejamente demonstrado nestes abissais quatro meses: a total ausência de ideias e projectos para o país, o desconhecimento profundo de qualquer assunto da governação, a falta de sentido de Estado e o brio do serviço público. Para tal, vamos ter um Santana "estadista", um Santana tragicamente humano, pontapeado na incubadora, esfaqueado pelas costas, armadilhado pelo Presidente, o próprio partido, a banca e os "lobbies", um Santana "em combate" ou em lágrimas, abandonado por todos ou acompanhado pelo "país profundo", pelo espírito de Sá Carneiro e pelas terras já imensamente beneficiadas pelo seu Governo de secretários de Estado "descentralizados". O que for preciso.

3. Mas é preciso também que, daqui até Fevereiro, o PS e José Sócrates mostrem que aprenderam a lição profunda que estes últimos anos e, em especial, estes últimos quatro meses encerram. O país está farto destes "políticos-proveta", saídos directamente dos bancos da escola, das associações de estudantes e das sibilinas juventudes partidárias para o poder. Está farto dos caciques autárquicos, dos cabos eleitorais e dos animadores de congressos partidários, confundidos com estadistas. Está farto de pseudopolíticos que nunca sobreviveram na vida civil, fora da protecção partidária e do abrigo do Estado, que nunca souberam o que era terem de ganhar a vida por si mesmos, terem de pagar a casa, o carro e o sustento dos filhos sem os dinheiros públicos. Está farto de gente que se serve da política em lugar de servir na política. Está farto dos oportunistas da democracia, que circulam entre a Assembleia da República, o Parlamento Europeu, o governo, os escritórios da advocacia de interesses, a administração das empresas públicas (que muitas delas existem apenas para os servir), ou a administração de empresas privadas cujos interesses favoreceram enquanto governantes.

E até agora, a avaliar pela gente de sempre, que já se empurra para tomar lugar no autocarro de Sócrates (e que mal que alguns diziam dele, há uns meses atrás...), nada faz crer que o provável futuro primeiro-ministro esteja disposto à ruptura ética que se impõe.

4. Num mês apenas, Bagão Felix destruiu a imagem de sentido de Estado que tinha conquistado no Governo anterior e na pasta da Segurança Social e a imagem de competência e distanciamento em relação às trapalhadas do primeiro-ministro que Portas e o PP queriam levar para a campanha eleitoral. Permitiu que Santana Lopes decretasse o fim da austeridade, a subida de pensões e salários e a descida de impostos, ao mesmo tempo que agravava o défice e transformava estes quatro meses num descontrolo indisfarçável dos gastos do Estado. Ameaçou pôr a banca, o "off-shore" da Madeira e os clubes de futebol a pagar impostos e recuou perante todos. Disse uma coisa numa semana e o seu contrário na semana seguinte, prometeu isto e fez aquilo, argumentou contra números, desmentiu contra as evidências, foi humilhado por Bruxelas, perdeu-se à vista de todos. Rapinou os fundos de pensões de gente que acreditou, após uma vida de trabalho, que os seus descontos estavam a salvo de um assalto do próprio Estado e não olhou a meios para salvar a imagem de gestor rigoroso, que não foi. Na hora do salve-se quem puder, não se envergonhou de aparecer, ao lado do primeiro-ministro, a lançar as culpas para o anterior Governo (de que ele próprio fez parte e onde foi o maior gastador!) e a acusar a sua antecessora nas Finanças de malfeitorias que ele próprio também fez no Orçamento que leva a sua assinatura. E, no fim, juntou-se a Santana Lopes para prometer que em 48 horas sacaria da cartola mais uma medida de génio para que, pelo terceiro ano consecutivo, o Governo aldrabe as contas públicas e ainda saia a gabar-se de ter mantido o défice abaixo dos 3 por cento. Um falhado David Copperfield no fracassado papel de ministro das Finanças. É bem feito, para quem aceita ser ministro das Finanças de um governo chefiado por Santana Lopes, o maior "big spender" da República (logo após, claro, o dr. Jardim, do Funchal.)

Miguel Sousa Tavares

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