terça-feira, 21 de dezembro de 2004

OS NOVOS PARADIGMAS DA REPRESSÃO



A criação cultural, nomeadamente artística, não é um epifenómeno da história das mentalidades e das Ideologias. A repressão a que foi sujeita no passado, a visar alvos precisos e identificados, bem a prova: artistas silenciados, condenados à prisão, ao exílio ou assassinados, de que Garcia Lorca foi trágico exemplo, entre outros.
O estatuto da agressão mudou no entanto nestas últimas décadas, a qual atinge hoje, difusamente, todo o tecido social, com outras modalidades de intervenção, outros actores, na era dos circuitos imateriais, do imperialismo da imagem, da banalização e da desierarquização da informação. Não se trata mais de alvejar pontualmente a criatividade, mas de desvitalizar os seus alicerces. Seria longo proceder ao inventário dessa trajectória.
Procurarei situar alguns marcos, antes de pôr em evidência as novas modalidades de vitimização acima referidas e tomarei como modelo a criação artística.
A afirmação de novos valores criativos tem caminhado lado a lado com os combates pela Liberdade. Mais ainda: as ditaduras políticas instalaram-se, não raramente, após terem sido desmantelados os valores culturais e da Criatividade, o que por si só deveria constituir um sério alerta para o presente e o futuro.

O “Déjeuner sur l’ Herbe” de Manet, provocou um motim, de tal modo eram intoleráveis, para a época, a mancha larga do artista francês, as cores ousadas, o estilo espontâneo, contrário às regras académicas e à Tradição.
O Impressionismo foi penalizado pelas suas ousadias, ao dar uma maior importância ao contorno das coisas, ao contrariar o que imobiliza e define, ao privilegiar mais a matéria pictórica que a representação, ao considerar a visão do artista e a maneira de pintar mais decisivas que a coisa pintada. No primeiro Salão de 1859, foram desde logo afastadas pelo júri as obras de Manet e Millet. Pissaro e Sisley foram, também eles, proibidos nos Salões.
Cézanne, que já participara na primeira exposição dos Impressionistas franceses, e que veio a marcar decisivamente a história da Pintura, ficou amargamente confinado ao “Salão dos Recusados”, em 1863, tendo-lhe sido impedido o acesso aos Salões oficiais de 1864 e 1870. Apenas reconhecido em 1900, só em 1903 é que foi permitido ao pintor francês o acesso ao “Salão de Outono”, três anos antes de morrer.”
A exposição de 1874, que reuniu Cézanne, Degas, Monet, Pissaro e Sisley foi um escândalo, provocou injúrias e sarcasmos.

Os Cubistas, um pouco mais tarde, viriam, por seu turno, a ser violentamente fustigados pelo seu anti-academismo, desde as célebres “Meninas d’Avignon”, de Picasso, no “Bateau Lavoir”, em 1907. Que de Avignon não eram, pois que as meninas - prostitutas retratadas por Picasso eram originárias de um bairro de Barcelona.
Uma violência anti-cubista que atingiu o seu auge em 1912. Maus cidadãos, agentes anti-nacionais, assim foram provocatoriamente apelidados os pintores cubistas pela imprensa francesa da época. Calúnias que foram politicamente exploradas, de seguida, no decorrer da Grande Guerra de 1914-18, quando essa mesma imprensa escrevia “Kubismo”, com “K”, a insinuar uma colaboração entre o cubismo e os “boches”. Uma Arte acusada pois de anti-semitismo.
Mais tarde os novos alvos foram os Abstractos e os Surrealistas.
Por seu turno, nos Estados Unidos, em Nova York, a 16 de Abril de 1914, assistiu-se ao linchamento das efígies de Brancusi, o grande escultor romeno, e de Matisse, no dia do fecho da exposição em que ambos participavam. Com efeito a cor, instrumento privilegiado duma metamorfose pictórica (cf. “Banhistas com tartaruga”, 1908), sufocada desde o Renascimento pelos imperativos do modelo e do sombreado, renascia com Matisse. Inaceitável, a nova mensagem cromática do mestre francês, aos olhos do júri e da Academia americana. A França aliás, Pátria de Matisse, alimentou durante longo tempo grande desprezo pela sua obra, a tal ponto que o artista só vendia para a Rússia, Inglaterra mas também para a América. Ridicularizados foram ainda Derein e Vlaminck.

As considerações xenófobas eram uma constante, comprovadas nas colunas do quotidiano “Gil Blas”, pela pena de um crítico de serviço, ao escrever que no “Salão de Outono” e nos “Independentes”, os Muniquenses, os Eslavos e os Guatemaltecos pululam, uma pretalhada que coloniza Montrouge e Vaugirard”.
Inadmissíveis pois as cores puras desses artistas, a falta de classicismo do trabalho, a suposta ignorância da arte de desenhar. Inadmissíveis as representações não convencionais de naturezas mortas, a maneira diferente como eles analisavam a cor e a luz, o olhar não fotográfico sobre as coisas, tal como fez Delaunay. Insuportável, em suma, que esses artistas se aventurassem a decompor e a elaborar de outro modo a realidade exterior. Os dizeres do conselheiro Lampué, por ocasião desses "Salões de Outono”, são a este propósito, esclarecedores, numa carta que enviou ao Secretário de Estado francês para as Belas Artes, carta na qual se interrogava sobre o “direito de alugar um monumento público a malfeitores que se comportam no mundo das Artes como os Apaches na vida de todos os dias”, e em que perguntava “se alguma vez a natureza e a forma humana tinha sofrido tamanhos ultrajes”. Lampué referia-se ainda nessa carta às fealdades e às vulgaridades expostas e comentava que a dignidade do Governo francês fora duramente atingida com tais feitos de arte, ao albergar semelhantes horrores no “Grand Palais”, um monumento nacional. Mais uma vez se voltou a falar, por esta ocasião, de manifestações anti-artísticas e anti-nacionais, um discurso que será tragicamente retomado pelos nazis em 1933.
Voltemos à França do princípio do século: em 1917, concretamente a 3 de Dezembro, a polícia francesa investe a “Galeria Berthe Weil”, 50 Rue Taitbout, em Paris, onde Modigliani expunha pela primeira vez. Isto na sequência de uma denúncia feita pelos pequeno- burgueses do bairro, que não suportavam o “atentado ao pudor” dos “Nus” apresentados pelo o artista italiano e ali expostos. Isto passou-se três anos antes da sua morte, ocorrida em 1920.
Em 1922, a Arte abstracta é proibida na Rússia Soviética e, algum tempo depois, o Suprematismo de Malevitch, acusado de formalismo, é denunciado coma a expressão típica da arte da época do imperialismo e do industrialismo burguês. Uma espécie de arte degenerada, conceito que os nazis virão a manipular mais tarde com arrogância. Será que Malevitch, após 1927, regressou a uma figuração “reaccionária”? Parece ter sido essa a leitura dos censores, porquanto o pintor russo acabou por ser expulso em 1929 do “Instituto Nacional da História das Artes”, com Estaline no poder.
Em 1934 é proclamado o realismo socialista, denunciam-se os Impressionistas, pede-se aos artistas que a Arte seja compreensível. Um realismo socialista, que não deixou de fazer obstáculo à criatividade revolucionária, prisioneiro que ficou duma concepção estética redutora.
continua...
A.B.

Etiquetas: ,