segunda-feira, 20 de dezembro de 2004

A VOTOS




É possível que, até ao Ano Novo, a virulência do debate político e da campanha eleitoral seja reduzida. Os conselheiros devem ter advertido os chefes de que, durante a "quadra", é de mau gosto ser muito grosso nos argumentos. Passada aquela, vai ser o bom e o bonito. Nada que nos faça descrer nas potencialidades da democracia que, como toda a gente sabe, tanto desperta a inteligência como a estupidez. E tanto pode contribuir para os bons modos como para a vulgaridade.

Em quem vou votar, se é que vou votar, é, por enquanto, só comigo. Uma coisa é certa: voto contra este governo e esta maioria. O que estes, nos últimos dois anos, destruíram e desperdiçaram é incalculável. Vai ser difícil, no futuro, fazer pior. Da economia ao bom nome, do método de governo à estabilidade, da segurança nas instituições ao crédito externo, da credibilidade à esperança, esta gente errática, mal preparada, amadora e narcisista deixa o país em estado tal que nem artes divinas ou diabólicas manhas conseguirão, em pouco tempo e com relativa facilidade, reparar. Raramente vivemos momentos tão confrangedores como estes. Nem durante o estertor do marcelismo, nem com as loucuras da fase final da revolução, nem com os últimos meses do guterrismo. A desordem mental e a demagogia atingiram picos até hoje considerados inacessíveis.

Vamos, pois, a votos. Já que, com este sistema eleitoral, não posso escolher pessoas, preparo-me para ver os programas e as promessas com excepcional minúcia. Como há muito perdi a inocência, já não voto em partidos, nem sequer em famílias políticas, muito menos em lugares comuns. Os últimos governos, de Guterres, de Barroso e de Santana, serviram-nos um medonho rol de mentiras e decepções que, tendo embora destruído qualquer réstia de candura, tiveram um mérito, o de acicatar o espírito crítico e a boa e saudável desconfiança. Além dos sarilhos políticos em que se meteram, ou antes, em que nos meteram, aqueles primeiros-ministros deram exemplos de carácter que deixarão sequelas. Foram a demonstração de que é possível, mau grado o linguarejar virtuoso, ignorar a responsabilidade e desprezar o bem público. A covardia de Guterres, a leviandade de Barroso e o destempero de Santana foram tão nefastos quanto a incompetência. Em sucessão e conjunto, deram verdadeiro sentido a uma frase feita, coloquial e plebeia, cujo alcance é agora mais claro: "parece que estão a brincar com o Pagode".

Como, a tudo isto, acrescem a pobreza e as dificuldades económicas, está criado o ambiente para as grandes fugas em frente e para o caricato sebastianismo do costume, refúgio dos pobres de espírito. "Isto já não vai lá sem autoridade", ouve-se. "É preciso alguém que ponha isto nos eixos", murmura-se. "Há que mobilizar as pessoas para um projecto nacional", proclama-se. "Chegou a altura de estabelecer um pacto entre as principais forças políticas", afirma-se. Daqui a inventar blocos centrais ou governos de salvação vai um passo. Que me recuso a dar. Prefiro confiar na liberdade de expressão e no voto, arriscados mas seguros meios de decisão.

Quando decidir o meu voto, fá-lo-ei depois de ter encontrado respostas a perguntas simples e práticas. Como já sei que todos, ou quase todos, são a favor da Europa, do mercado regulado, dos pobres, dos verdadeiros empresários, da imprensa livre, do "melhor Estado", da justiça pronta, da prioridade à educação e da saúde para todos, não vale a pena perder tempo com a grandiloquência ideológica que, em Portugal, tem tomado a forma do "cliché" e a melodia da banalidade. Como já sei que todos são contra o capitalismo selvagem, a corrupção, a promiscuidade da política com o futebol, a droga, a evasão fiscal, a criminalidade de colarinho branco ou de outra cor, o racismo, os privilégios fiscais, a manipulação da comunicação social, o caos urbano, o declínio da agricultura e a quase extinção das pescas, também não vale a pena perder tempo e paciência com as "grandes causas" nem com as "bandeiras fortes" que os partidos nos vão apresentar. A ridícula "Geração Portugal" não é pior do que o patético "Voltar a acreditar".

Dêem-me respostas simples a perguntas simples, planos claros para questões práticas, e o meu voto, como o de tantos outros, tomará forma. O que vão fazer, no concreto, para reduzir os prazos da justiça? Como vão abrir, à sociedade, os sistemas fechados da Justiça e da Educação? Permitem que os Institutos Politécnicos confiram doutoramentos e se transformem em Universidades? Como pretendem organizar a colocação de professores? Continuarão a gerir, a partir do Ministério da Educação, as doze mil escolas ou vão entregá-las às autarquias? O que vão fazer com as portagens das auto-estradas e das SCUT? Mantém a uniformidade das formas de governo das Universidades? Permitem ou não que cada universidade tenha as suas regras próprias de selecção de professores e estudantes, os seus critérios de promoção, a sua autonomia de gestão e os seus órgãos de direcção? Que destino darão aos hospitais públicos e aos hospitais ditos SA? Que medidas práticas e concretas tomarão para lutar contra a evasão fiscal? Como vão cuidar dos miseráveis resultados escolares portugueses, nomeadamente dos desastres que constituem os ensinos da matemática, do português, da física e da química? Como lidar com as centenas de cursos e licenciaturas existentes em cada área disciplinar? Alteram ou mantém a actual legislação do aborto? São favoráveis ou adversários a um referendo sobre o aborto? Em qualquer dos casos, que voto recomendam? Como vão votar e que pergunta propõem para o referendo europeu? São contra ou a favor da integração da Turquia na União?

Sei que podem ser temas difíceis e que, para tratar deles convenientemente, serão necessários anos de trabalho cuidado e inteligente. Mas também sei que as respostas são simples. Necessário é escolher e assumir os respectivos riscos. Os políticos que continuarem a acreditar nos reflexos condicionados e no voto automático nunca perceberão o que lhes está a acontecer. É bom que se preparem para a escolha racional, fenómeno que já hoje guia a intenção de voto de muita gente, mas que os políticos caseiros têm dificuldade em aceitar. Já é tempo de compreenderem que a sociedade mudou e que o voto tribal é cada vez menos importante. Se o não fizerem, aprenderão à sua custa.
António Barreto

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