quinta-feira, 23 de dezembro de 2004

OS NOVOS PARADIGMAS DA REPRESSÃO [ II ]

A “Bauhaus”


Em matéria de Criatividade revolucionária e de repressão que sobre ela se abateu, uma referência particular deve aqui ser feita à escola alemã da “Bauhaus”, onde ensinaram Klee e Kandinsky, e que marcou uma viragem na ideologia e na prática estética. Fundada em 1919 pelo arquitecto alemão Walter Gropius, em Weimar, o seu estatuto era polivalente: bem mais arquitectónica que pictórica, a “Bauhaus” reunia ateliers para trabalhar a madeira, o metal, a pedra, o vidro; incluía espaços para a litografia, a encadernação, a tipografia, a impressão.
Um dos seus objectivos consistia justamente em romper com o ensino académico e uma certa forma de profissionalismo. Daí as acesas discussões entre professores e alunos. Tinha como premissa, por um lado, que a Arte não era ensinável, por outro lado considerava não haver diferenças entre o artesão e o artista, numa tentativa de valorizar o trabalho manual e de instituir capilaridades entre o artista e o artesão que assim mutuamente se enriqueciam.
A admissão dos alunos era aliás feita na base da apresentação de uma obra, não sendo exigido, à partida, nenhum diploma. Os alunos eram convidados a libertarem-se de todo e qualquer entrave à sua capacidade criadora. Oiçamos Gropius nalgumas passagens do programa de que foi o autor: “...o objectivo final de toda a actividade plástica é a construção. Arquitectos, pintores, devem reaprender a formalização da construção no seu conjunto e nos seus elementos, - as antigas escolas não conseguiram realizar esta unidade, e como teriam podido fazê-lo se a Arte não é ensinável ?- e devem voltar-se de novo para o atelier... Não há arte profissional”.
A “Bauhaus” passou em 1927 para Nassau, cidade operária, por dificuldades materiais, acabando por ser desmantelada em 1933, em Berlim, no mesmo ano em que Hitler subiu ao poder.

Seguidamente, vários pintores foram exonerados das suas docências, nomeadamente Dix, Klee, Beckman, Baumeister, alguns forçados ao exílio. Em 1935 vociferava Hitler num dos seus discursos: “ É necessário que a Arte seja anunciadora do nobre e do belo, que seja a portadora do natural e do são”. O Führer diferenciava efectivamente duas Artes, um factor de saúde, de reconstrução e de perenidade, a outro sinal de degenerescência. Juiz da Arte degenerada, apóstolo da Arte ariana, Hitler qualificou de criminosos os criadores da Arte moderna.
Milhares de livros foram queimados também por ordem de Goebbels, o ministro da Propaganda. Ora, como dizia Heinrich Heine, “onde se queimarem os livros, queimam-se os homens”.
Goebbels decretou a pilhagem sistemática dos museus alemães, numa tentativa de pôr fim a essa “Arte degenerada”, que não exaltava os valores arianos. Numa lista de mais de 100 pintores condenados, acusados de criminosos, figuravam Picasso, Klee e Max Ernst, os Expressionistas, os Abstractos (Kandinsky) e os Judeus, (Chagall, Freundlich).

A guerra de anexação nazi não tinha ainda iniciado e já os valores estéticos e culturais alemães tinham sido profundamente atingidos. Antes da penetração das divisões alemãs e dos bombardeamentos, Goebbels sabia serem os valores estéticos e culturais alvos prioritários. A estratégia da solução final nazi incluía, à partida, a morte da criatividade alemã.
A 20 de Março de 1939, no mesmo mês da invasão da Checoslováquia, cerca de 5000 obras de artistas, consideradas não negociáveis, foram queimadas, em Berlim, numa caserna de bombeiros, no coração do Reich e, alguns meses mais tarde, a 30 de Junho, eram leiloados em Lucerna, na Suíça, cerca de 1250 obras de arte provenientes dos museus alemães, em proveito da Alemanha nazi. Um leilão que os artistas no exílio tentaram boicotar.
O alerta não fora escutado, porquanto o tema da “decadência cultural” figurava já, nos anos 20, no programa político da “Mein Kampf” de Hitler. O sacrifício dos valores artísticos culturais alemães já aí estava inscrito e anunciado. Houve vítimas em todas a frentes, e não só nas Artes. Literatura, Ciências, todo o pensamento crítico sofreu brutalidade e castração.

Não está de modo algum excluído que os livros voltem hoje a ser queimados, os museus pilhados e a Arte excomungada no Ocidente europeu, apesar de os tempos serem outros. A vitimização da Cultura não é coisa do passado, ela continua, e em força, na ordem do dia, só que essa vitimização se apresenta com outras roupagens.
No promíscuo e sórdido universo televisivo imperam Baião, Quim Barreiros ou Lili, entre outros, sem esquecer Herman José, que foi quem deu visibilidade social aos Pimbas. Sem esquecer a “Roda dos Milhões” e os “Big Brothers” de todos os matizes, mais ou menos acorrentados. Enfim, toda uma programação agressiva dos valores culturais, dos direitos humanos e da cidadania, nas vestes dum entretenimento populista de fancaria.
Herman José, o “dono da corte”, fez-se o protagonista, nos seus programas, de múltiplas agressões culturais, com a complacência, a cumplicidade e a participação de governantes deste país nessas emissões. Não tenho memória de a mulher ser tão achincalhada publicamente, como nesses programas. Que se recorde a Marylin Monroe dos “Parabéns”de triste memória. Quanto a Quim Barreiros, curiosamente figura top das festas académicas, basta recordar as suas interpretações no /" Bacalhau quer alho”/, ou ainda no /“Volta minha vaca louca/ Tenho saudades do teu bife"/, expressão gritante da zoomorfização da mulher portuguesa, da mulher “tout court”, e que não motivou qualquer protesto significativo! É certo que Maria Lamas morreu e Natália Correia também já foi a cremar... E o país real lá se vai rindo com estas peixeiradas!... A factura virá mais tarde, amargamente, duma maneira ou de outra.
Parafraseando Heinrich Hein, poder-se-ia dizer que onde se acanalha a mulher, para além de se matarem as mães, abrem -se covas para todos. Sem epitáfio. O que está em causa, note-se, não é pretender aqui fazer a educação de Herman José ou de Quim Barreiros, simples acidentes de percurso. O que importa é proceder à desmontagem e à desmistificação dos inconfessados agentes da fascização do tecido social.

Caducaram, por ora, os velhos paradigmas repressivos, tornados anacrónicos. O porrete cedeu o lugar à cenoura. Por isso as estratégias de resistência também não podem ser as mesmas. O xadrez mudou... e globalizou-se. A diplomacia do canhão cede cada vez mais o lugar à diplomacia dos circuitos (Brzeninsky). A repressão exercida pelos sistemas autoritários foi substituída, nas democracias, por outro tipo de agressão, difusa e sistemática.
continua...
A.B.

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