quinta-feira, 9 de dezembro de 2004

UMA VIDA - AS DECISÕES DE MÁRIO SOARES


Entrar para o PCP (1942) - O jovem Mário Soares entra para o PCP no momento em que o PCP é o, o e não um, grande partido nacional, quando se percebe a queda inevitável do nazismo. Era uma decisão que se tomava para uma vida, com riscos e um sentido de resistência que marcou a sua geração. Com ele, e como ele, entraram quase todos os jovens do seu tempo, uma geração que se formou no antifascismo comunista.
Sair do PCP (1951) - Soares mais do que sair foi empurrado para sair, numa altura em que o PCP estava em plena depuração política no início da guerra fria. Soares sempre disse que saiu do PCP por não querer entrar na clandestinidade e "pela direita". Pelo menos no que diz respeito à "saída pela direita" não é verdade: queria reconstruir as Juventudes Comunistas e acabar com o MUDJ, e apoiou, numa altura de já grande divisão, o Movimento Nacional Democrático pró-comunista e a candidatura de Rui Luís Gomes, em vez de alinhar na oposição moderada que apresentou Quintão Meireles. Partilhou este caminho com Piteira Santos, Ramos da Costa, Salgado Zenha e outros.
Entrar para as organizações da oposição moderada e anticomunista (1954) - Soares e os seus amigos e companheiros de ruptura comunista foram-se associando à oposição moderada, com crescente autonomia estratégica do PCP: União Socialista, Resistência Republicana, Acção Socialista, Directório Democrata-Social. Com ele foi Ramos da Costa e Piteira, que se juntaram a Manuel Mendes.
Denunciar o crime da morte de Delgado (1958) - Como advogado, Soares teve um papel importante em investigar e denunciar as circunstâncias em que Delgado e a sua secretária foram assassinados.
Denunciar a hipocrisia do regime e escrever o "Portugal Amordaçado" (depois de 1968) - Os "ballets rose", o grande escândalo de costumes do regime salazarista, encontrou em Soares um eficaz denunciador. Mais tarde, o livro "Portugal Amordaçado" levou para fora de Portugal um conhecimento mínimo da repressão e da resistência portuguesa. Soares pagou com o exílio em São Tomé e depois em Paris estas suas acções de oposição que atingiram eficazmente o regime.
Ter "esperança" em Marcelo Caetano (1969) - Soares acreditou que Marcelo Caetano era capaz de liberalizar o regime salazarista. Enganou-se, e com ele muita gente, porque a guerra colonial não o permitia. Mas esta esperança acentuou a divisão com o PCP nas primeiras eleições do caetanismo.
Fundar o PS (1973) - Dotar a área da oposição pró-socialista de um partido e, mais importante do que isso, filiar esse partido na Internacional Socialista foi decisivo para ter uma cobertura internacional que pudesse rivalizar com a que o PCUS dava ao PCP. Soares foi o primeiro a conseguir um verdadeiro enquadramento internacional da oposição não comunista, o que foi importante no pós-25 de Abril e na "Europa connosco". Partilhou esta decisão com Ramos da Costa e Tito de Morais.
Reaproximar-se do PCP (1973) - Em vésperas do 25 de Abril, o PS e o PCP assinam um acordo político que mostra pequena diferença estratégica entre ambos os partidos. As linhas fundamentais desse acordo correspondem às posições tradicionais do PCP que, se não fossem os esquerdistas, mantinha a sua hegemonia solitária na oposição. Não foi um bom começo para o PS, mas reflectia o fim da esperança em Caetano.
Forçar a paridade com Cunhal no 1º de Maio de 1974 - Embora Soares mostrasse um respeito quase reverencial por Cunhal nos primeiros dias do 25 de Abril (e quem conhece a história da oposição percebe a genuinidade desse sentimento), não deixou de forçar contra o PCP a paridade dos socialistas na legitimidade da oposição ao regime. Tudo começou no primeiro 1º de Maio.
Resistir ao PCP (1974-5) - O sim de Soares a que Cunhal responde com o seu célebre "Olhe que não", foi o sinal de uma resistência corajosa e dura à tentativa do PCP de tomar o poder em Portugal. Com ele Zenha, Raul Rego, Alegre, Edmundo Pedro.
Trabalhar com Carlucci (1974-5) - Soares e Carlucci trabalharam em conjunto para negar razão a Kissinger, que lhe chamava o "Kerensky português". Soares fez bem: participou em todas as conspirações, assumiu todas as responsabilidades para organizar uma resistência, mesmo armada, à tomada do poder pelo PCP. Sem esta sua atitude, os comícios da Fonte Luminosa não chegariam no momento decisivo, porque o PCP só reconhecia força real, espingardas, e não apenas pessoas em manifestação.
Descolonizar (1974-5) - A acção de Mário Soares como "descolonizador" é controversa, mas seria injusto atribuir-lhe responsabilidades numa situação que não tinha qualquer margem de manobra. Depois do desastre colonial do regime de Salazar e Caetano e sem forças armadas disciplinadas em 1974-5, pouco havia a fazer e o que havia a fazer Soares fê-lo. Com ele esteve Almeida Santos e Melo Antunes.
"Meter o socialismo na gaveta" (1978) - Soares percebeu que a democratização política não se sustentava sem uma economia de mercado sólida, e tudo fora feito no PREC para a impedir. Com arranques e paragens bruscas, os governos de Soares fizeram alguma coisa para diminuir a estatização da economia, mas, apesar da gaveta onde meteu o socialismo, foram sempre governos do PSD que fizeram as reformas fundamentais. A Constituição era o grande obstáculo a essa plenitude da economia de mercado e Soares sempre hesitou, adiando a sua revisão, só conseguida pelo Governo de Cavaco Silva.
Opor-se ao intervencionismo eanista (1976-1985) - Como Sá Carneiro, Soares lutou contra a tentativa de Eanes de manter, a partir da Presidência, um "droit de regard" militar sobre o poder civil. Soares combateu pelo fim das veleidades de um qualquer "socialismo militar" justicialista, que teve os seus últimos momentos no PRD e na candidatura de Zenha.
Entrar na UE (1985) - Entrar na então Comunidade Europeia foi uma decisão em primeiro lugar política, antes de ser económica. Estabilizava a democracia portuguesa num enquadramento internacional sólido, no espaço de onde de há muito nos tínhamos afastado, a Europa. Com ele esteve Rui Machete e Ernâni Lopes.
Fazer as primárias da esquerda (1985-6) - Quando Soares partiu para a sua candidatura de 1985, as sondagens davam-lhe 8 por cento. Zenha, com o apoio do PRD, e Pintasilgo com os restos do basismo "participativo" da esquerda radical, opunham-se-lhe com um estatuto que parecia de quase igualdade. Vencendo-os na primeira volta, acabou com as veleidades de terem o mesmo peso político do socialismo moderado, e ajudou a acabar com o pintasilguismo e outros ismos da esquerda radical.
Dissolver a Assembleia em 1987 - Recusando o acordo PS-PRD-PCP, que lhe oferecia a hipótese de um governo de maioria parlamentar, Soares decide dissolver a Assembleia e assim abrir as portas à primeira maioria absoluta de Cavaco e ao "cavaquismo". Com ele esteve o PSD de Cavaco.
Emaudio, Macau, etc. (1987) - O momento mais difícil de Soares depois do 25 de Abril foi todo o processo chamado "Emaudio", que incluía ramificações com o financiamento do PS e histórias de corrupção macaenses, o feudo que a sua Presidência deu aos socialistas, quando estes estavam fora do governo em Portugal. A história nunca foi verdadeiramente esclarecida, nem o envolvimento pessoal de Soares, que gozou sempre de uma impunidade ímpar na vida política portuguesa, por boas e más razões.
Ser Presidente da "magistratura de influência" (1986-1991) - Durante todo o seu primeiro mandato, Soares desenvolveu uma teoria que, por contraponto ao intervencionismo de Eanes, era de não interferir na governação, colocando a acção presidencial essencialmente no terreno da "influência". Teve com ele o PSD, que não apresentou nenhum candidato presidencial, permitindo a sua reeleição quase unânime.
Ser Presidente da oposição e do "direito à indignação" (1991-1996) - Reeleito Soares, os seus velhos demónios vieram ao de cima: estava cansado de estar sossegado. Preparou o retorno ao poder dos "seus", tornando-se o principal dirigente da oposição a Cavaco Silva. Teve sucesso.
Fundar a Fundação Mário Soares (1996) - A Fundação que Mário Soares criou a partir dos seus arquivos pessoais tornou-se uma referência para os estudos da contemporaneidade. A decisão de tratar os documentos com celeridade, digitalizá-los e colocá-los acessíveis quase de imediato arrepia os arquivistas profissionais, mas é saudada pelos investigadores.
Ser deputado europeu (1999-2004) - Incapaz de se "reformar" e entusiasmado com a Europa, Soares aceitou encabeçar a lista do PS para o Parlamento Europeu, provavelmente o último cargo político que exerceu. Desse mandato fica um militantismo europeu acrescido.
Tirar o socialismo da gaveta (2000) - Desde os últimos anos do século XX que Soares vinha tirando o socialismo da gaveta. Falando agora sem censuras, dizendo o que lhe apetece dizer, desde descrever o Presidente Bush como um bêbado incorrigível, que fala com Deus e que pôs o seu Governo a rezar antes de se reunir, até à defesa de negociações com Bin Laden, Mário Soares tornou-se um porta-voz de um socialismo radical antiglobalização, visceralmente antiamericano mais próximo do Bloco de Esquerda do que do PS.
Viver (sempre) - Mário Soares tem uma força, que, no passado, chamaríamos renascentista. De falar, contar, resistir, conviver, gostar, odiar, fazer e não fazer, de acção e preguiça, boa e má educação, abrir e fechar portas, tudo. Os seus valores percebem-se bem no modo como classifica o mundo e os outros: admira a inteireza, o estar bem consigo próprio, os prazeres. Admira a coragem, como os homens da sua geração a percebem, e percebem-na bem como sendo física antes de tudo. O resto vem por acrescento. Com ele esteve Maria Barroso.
José Pacheco Pereira

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