sexta-feira, 25 de fevereiro de 2005

O FIM DE UM PESADELO

1.A imagem mais marcante que retive da noite eleitoral foi a da ministra da Educação, Maria do Carmo Seabra, com o seu ar de tia incomodada, a declarar que não conseguia entender nem explicar as razões da monumental varrida que o país deu a Pedro Santana Lopes, suas santanetes e seus santanaboys.
É natural: da mesma forma que até hoje não conseguiu compreender o que correu mal no mais desastrado concurso de colocação de professores a que o país já assistiu e que a senhora dirigiu, assim também ela não conseguiu entender que 78 por cento dos eleitores não se tenham rendido à excelência da governação do Governo de que ela fez parte.
As razões pelas quais não percebeu uma coisa estão intimamente ligadas às razões pelas quais não percebeu a outra.
Mas a "síndroma Seabra" atinge pessoas que eu achava que, por maior que fosse o seu comprometimento santanista, não tinham ainda e apesar de tudo perdido toda a capacidade de auto-análise crítica.
Embarcaram num navio onde o "deck" estava sempre em festa mas a casa das máquinas metia água por todos os lados.
Confundiram o jogo de aparências com a realidade, julgando que navegar é o mesmo que flutuar à tona e que, no fim de tudo, nem que fosse de jangada ou de salva-vidas, chegariam a bom porto.
No limite, mesmo com um capitão completamente errático e sem sentido de responsabilidade ou competência de serviço, acharam que, como profetizou José Luís Arnaut, quando viesse a verdadeira borrasca (isto é, a campanha eleitoral), o capitão revelaria os seus imbatíveis dotes de lobo do mar e todos se safariam juntos com ele, arribando a uma praia onde uma multidão de indígenas esperava para lhes colocar coroas de flores aos ombros.
Enganaram-se: mesmo para Portugal, como escreveu Vasco Pulido Valente, o embuste era demasiado.
Quando, enfim, sobreveio o inevitável naufrágio, não resisitiram a procurar, entre o estupor geral, outros culpados, que não eles: o Presidente da República, a data das eleições, os comentadores, os jornalistas e, enfim, se necessário, os próprios eleitores, o próprio país, que não está ao nível de entender a magnífica equipa de servidores públicos que tinha ao leme. Dentro de alguns anos, seguramente, haveremos de estudar este momento irracional da história política portuguesa em que um primeiro-ministro em fuga por interesse pessoal nos deixou entregues a um sucessor que ele próprio sempre desprezara, chegando a compará-lo ao Zandinga.
E tentaremos então perceber também como foi possível que um dos partidos fundadores do regime e tradicional baluarte da governação se tenha deixado arrastar, por demissão ou por oportunismo, até ao abismo e até à humilhação às mãos dos eleitores, sob a condução de um D. Quixote sem fidalguia nem sonho.
Apenas pesadelo - previsível, confirmado e quase paranóico na sua cruzada contra os mais improváveis moinhos de vento: a banca, "os interesses", os "poderosos", as sondagens, a comunicação social e, valha-nos Deus, o "sistema".
Numa palavra, tudo aquilo que, desde sempre, construiu, ergueu e alimentou o mito político chamado Pedro Santana Lopes.
2. A pior escolha que se pode fazer perante o destino, como disse Heidegger, é "chegar tarde de mais para os homens, cedo de mais para os deuses".
As 48 horas que Pedro Santana Lopes demorou a decifrar os sinais da fuga dos ratos do navio em perdição assinaram a sua definitiva sentença de morte política.
Evitou o enxovalho final às mãos do mesmíssimo partido e da mesmíssima gente que ainda há dois meses o apoiou quase unanimemente, mas não evitou que o país inteiro o visse ainda - e logo a seguir ao exemplo oposto de Paulo Portas - esbracejar à tona de água, tentando ler os números ao contrário, esforçando-se por fingir não ter reparado que um país inteiro se levantou, revoltado, para lhe gritar a seu rejeição pela forma de governar, de fazer campanha e de habitar a política que é a dele. Poderá ainda ser tentado a regressar à Câmara de Lisboa, o que seria verdadeiramente notável para quem abandonou a câmara a meio por razões de ambição pessoal e para quem teve em Lisboa, justamente, a maior perda eleitoral, em percentagem, do país inteiro - sinal de que em Lisboa funcionou, embora ao contrário, a mensagem daquele cartaz que dizia: "A este conhecem-no!"
Pois conhecemos: por isso é que perdeu 120 mil votos no círculo eleitoral de Lisboa.
Sendo certo que ninguém o imagina a abandonar a única forma de vida que conhece, pelo menos antes de esgotar todas as possibilidades, o que lhe resta?
Regressar ao Parlamento não, porque já declarou (embora isso nunca faça fé definitiva) que é coisa que o aborrece.
Tentar a aventura presidencial seria puro suicídio, tanto mais que não se imagina agora a banca e os "poderosos" motivados para lhe financiarem a campanha.
O que fará, então?
Pois, sobre isso, estou como a Teresa Guilherme: "Isso agora não interessa nada."
3. Foi vê-los sentados nas primeiras filas do Altis: alguns apenas felizes, outros expectantes, outros claramente já postulantes.
Os socialistas alinhados para escutar o discurso de vitória de José Sócrates começaram por tudo aplaudir, sem critério.
Depois, foram rareando as palmas, à medida que se foi tornando nítido que dali não sairia nada que a rua não dissesse melhor e mais sentidamente. E, no fim, foi já perante um embaraço constrangente que José Sócrates terminou um discurso onde, afinal, se percebeu a mais inacreditável das coisas: que ele não tinha nada para dizer.
O homem tivera dias, semanas, meses, para pensar no discurso de vitória; acabara de saber que vai ser o próximo primeiro-ministro de Portugal, no que isso representa de honra e de responsabilidade; acabara de conduzir o PS a uma vitória histórica e o país acabara de lhe dar a tão almejada maioria absoluta: e ele não tinha nada para dizer, para além de lugares-comuns tão absurdos como "o meu desejo é formar um governo de gente competente".
Foi puro gelo.
Frustrante, desesperante, pior ainda: preocupante.
Para bem de Portugal, todos desejamos que o que lhe falta em capacidade oratória, em inspiração e em "alma", lhe sobre em capacidade de orientação e de clarividência governativa. E todos desejamos que muitas daquelas caras ali presentes e que ele fez cabeças de lista pelo país fora não sejam reencontradas no próximo Governo.
As primeiras informações sobre isso são animadoras, mas é preciso ver para crer.
Com as condições que tem para formar governo, não há a mais pequena desculpa nem a mais pequena razão para que seja a própria composição do Governo a servir para prolongar a descrença.
Os portugueses fizeram a sua parte; o PS e José Sócrates não podem fugir a fazer a sua.
Seria como reanimar um morto apenas para lhe comunicar que ele não tem esperança de sobrevivência. Jornalista
P.S. - Por motivo de ausência do país, este texto é escrito terça-feira à noite e sujeito a encontrar-se desactualizado, naquilo que se baseia em informação corrente, esta sexta-feira de manhã. Ossos do ofício. E, por falar em ossos do ofício, faço questão de dedicar este texto à Dª Ana Costa Almeida, em breve ex-chefe de gabinete do primeiro-ministro cessante, e que aqui há tempos teve o desplante de enviar uma carta a este jornal, acusando-me de mentir quando eu tinha mencionado um episódio verdadeiro e revelador da leviandade com que o seu chefe julgou poder dirigir os destinos deste país.
Queria dizer-lhe que ficou provado, uma vez mais, que é possível enganar muitos durante muito tempo, mas não é possível enganar todos durante todo o tempo.
Essa é a lição profunda a extrair deste pesadelo que - estava escrito nas estrelas - tivemos de viver.
Miguel Sousa Tavares